27 maio 2025

Close encounter

Na expectativa de encontrar umas moedas, meteu a mão no bolso. Nada!...

Convencido de que estava certo, afirmou uma conclusão. Estava errada!...

Abriu um guarda-chuva e esperou pela queda da chuva. Enganou-se, pois quem caiu foi ele!...

Desesperado, levantou o olhar para o céu em busca de orientação. Trocou-se nos azimutes e em vez de ir para Norte, foi para Sul!...

Ainda não descobriu o que está a fazer, mas tem esperança. No entretanto, sentou-se num banco e caiu!...

 

 


Comentário de ET123321, algures no espaço sideral ou arredores: Continuam a não acreditar no que vos digo!?... Depois, não digam que não vos avisei!... O escriba está fora de controlo, para não dizer em órbita!... Será que ainda vamos vê-lo a olhar para a Terra da Estação Internacional Espacial (ISS)?... Para as pessoas com bom coração, como eu, é uma dor de alma, no mínimo, que só ande a dizer disparates, mas a coisa já se vinha a adivinhar há muito, mas tem tendência a piorar à medida que a temperatura aumenta!... Minha Nossa Senhora!...

 

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10 abril 2025

Necessidade(s)

Passeando tranquilamente pela rua, o homem cruza-se com alguém que lhe chama a atenção. E razão não era para menos: aparentemente, tinha-se cruzado, à falta de melhor definição, com um extra-terrestre (ET), dado o visual que se destacava da cara da criatura, uma espécie de armação ocular, tipo pára-brisas. Não sabendo como lidar com este «encontro de 3.º grau», que poderia ser ilusório, ou, até, uma partida do programa «Apanhados», o homem só ficou convencido da realidade do encontro quando, carregando num botão, o suposto ET lhe perguntou, com aquela voz típica dessas criaturas popularizada pelas séries televisivas e películas cinematográficas «Onde é que se podia fazer uma mija (sic)?»...


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27 novembro 2023

Duas luas

Caíra a tarde e apresentara-se a noite. Tempo ligeiramente frio, mas seco, avenida e passeio a convidar a um desenferrujar das pernas e da cabeça, criando condições a um fluir de passos e de pensamentos, cadenciados, ambos, como personagens que se conhecem e apreciam. A lua estava cheia, constatou o passeante, virando o rosto para a esquerda e usufruindo de um espectáculo que sempre lhe agradou, sorrindo também pela recordação do que essa fase da lua pode representar para algum imaginário popular, não aquele com que tinha de lidar agora, que passeava avenida abaixo, mais urbano e citadino, não melhor ou pior, mas diferente. Acabado de ver a lua cheia à sua esquerda, de súbito se apercebeu de algo estranho à sua direita, a mesmíssima lua cheia em pose, praticamente simétrica àquela que vira fracções de segundos atrás, pouquíssimas, quando a localizara à sua esquerda, tendo como resultado a visualização em simultâneo, parecia-lhe, de duas luas cheias!.. 

Das duas, uma: ou entrara num mundo de ficção científica, onde se recordava de que esta duplicação de  imagens da lua eram, de alguma maneira, frequentes, ou, então, definitivamente perdera o juízo, não era arriscado concordar, pois tudo à volta lhe indicava o cenário mais quotidiano possível, com pessoas, carros, lojas e, claro, só com uma lua... constatação reforçada pela descoberta do acrílico, à sua direita, acima da sua cabeça, que ardilosamente o induzira em erro, funcionado como espelho da lua vista à esquerda, a única  e verdadeira... Afinal, a twilight zone passara (mas não parara) por ali...



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30 abril 2022

De(talhe) 3

Não era para ter sido assim. Desta vez, ao contrário das outras, não saíra para fins de investigação, mas de sustento. A despensa esvaziara e era preciso repô-la. Mas a sina do investigador (lá está, mais um detalhe, sempre um detalhe!...) é destinada, é fatal, como se diz, e não é com duas cantigas que se sacode para detrás das costas, ou trás das costas, já nem sabia bem, mas que era para as costas tinha a certeza... E isto porquê, pergunta o «estimável público»? E a resposta era simples, para não dizer pueril: porque sim!

Certo é que, com mais ou menos detalhe, poderíamos dizer que já estávamos na dimensão que lhe interessava, desde há algum tempo, que era a da investigação que se propusera fazer sobre o «detalhe», aquele je ne sais quoi que os franceses aplicam quando a coisa está difícil de responder ou de fugir, mas que fica sempre bem quando se pretende fazer uma figura de profundo e habilitado conhecedor das profundezas e das especificidades da alma humana, mas não só, pois aqui também estamos a pensar no cérebro, no esqueleto, e nos músculos, numa descrição anatómica mais ou menos arrevesada, mas necessária para dar conteúdo e espevitar as mentes de quem nos segue ou ouve falar, caso seja essa a situação. E era este o caso, se bem que me tenha perdido um pouco na sequência argumentativa...

Retomando a inspiração inicial, complementada com mais três ou quatro expirações, para ganhar balanço e sossegar o ânimo, a frase entrou de supetão, à laia de míssil (desculpem, mas é a palavra adequada à caracterização), aquando da expedição para repor a despensa, atirada para o ar, assim como quem não a quer a coisa, por uma de duas passeantes com quem se cruzara: «A dor da perna passou-me. Tal como veio, assim foi...». E foi como uma espécie de click (não daqueles que estão pensar, credo!), daqueles habitualmente associados à nobre e sempre necessária actividade da investigação e afins, aquela que eu julgara ter abandonado, sossegado em casa, fazendo inspirações e expirações, alternadas, como convém...

O dilema era claro: a que perna, se referia a transeunte: a direita...? Ou a esquerda? 

E aparecera como: à boleia...? Ou em veículo próprio?

Rematando para canto, já agora: e porque é que a dor se fora embora: não gostara da perna...? Ou, gostando, talvez estivesse a enganar a dona da perna para voltar a aparecer mais tarde?

Como se vê, tudo questões pertinentes e claramente adequadas ao tema da investigação/tese. Teria que ver, era óbvio. Até lá, porém, uma coisa era premente: saber, porque raio, é que ficara com uma dor num dos braços, era estranho, só para fugir ao padrão!...



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02 abril 2022

De(talhe) 2

Alguém lhe terá dito que a melhor abordagem talvez fosse a do camuflado... Ficou intrigado, para não dizer ligeiramente incomodado, receoso de que ainda não fosse desta que a sua investigação/inquérito sobre o detalhe tivesse avanço ou desenvolvimento. Mesmo assim, teria de confiar no que lhe disseram ou julgara ouvir, não conseguia responder a esta dúvida, sob pena de a coisa nunca mais se concretizar. Tinha de avançar, pois não queria problemas com a entidade que lhe adiantara a verba para a investigação. O problema era decidir como se adaptar a esta imposição do camuflado... O melhor era começar por uma loja especializada no artigo.

_ Bom dia.

_ Bom dia. O que vai ser, então...?

_ Ainda não sei muito bem... Dê-me só alguns minutos para dar uma vista de olhos pela loja e ver um ou outro artigo. Depois falo consigo, pode ser...?

_ Claro. Quando quiser.

A loja estava muito bem composta, não havia dúvidas: botas, sapatos, anoraks, pullovers, malhas, meias, luvas, gorros, chapéus, polares, impermeáveis, mantas, e muitos mais artigos de que não sabia para que serviam, mas serviriam para alguma coisa, decerto, de toda a qualidade e feitio, incluindo preço. Obviamente, alguns tinham-lhe despertado mais a atenção do que outros, mas sentia-se confortável para decidir sobre o escolha do «camuflado». Procurou o funcionário que o atendera ao entrar na loja e foi falar com ele, decidido a efectuar a compra.

_ Ora viva, desde há bocado, encontrou alguma coisa de que tivesse gostado...? Posso ajudá-lo...?

_ Sim, certamente. Ando à procura de um camuflado...

_ Para que fim: caça, pesca, fuga, rebuliço, despercebimento...?

_ Não sei... Despercebimento, talvez...? É para um inquérito/investigação...

_ Como nos detectives...?

_ Não. Mais para uma tese/ensaio...

_ Deixe-me ver... Tem prazo...?

_ Sim. Uma bolsa.

_ Há risco...?

_ Só se for de chumbo, parece-me...

_ Muito bem. Por favor experimente esta, a do despercebimento. Que tal...?

_ Boa, sim senhor. Muito confortável. Levo esta!

_ ?... Onde diabo é que o cliente se meteu...!? Colega, ó colega: viste alguém com um camuflado de despercebimento...!?

_ Não, pá. Não ficaste com o talão...!?



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20 março 2022

De(talhe)

Achou que poderia ser um bom dia para desenvolver a sua pesquisa/investigação acerca do «detalhe», matéria que de há muito lhe andava a percorrer as sinapses (bonita imagem, não...?), apenas com dúvidas sobre se deveria fazê-lo antes ou depois do pequeno-almoço. Como estava com fome, fá-lo-ia depois... E assim fez, ingeridos que estavam os dois croissants de queijo e fiambre e uma bola de mistura, com pouca manteiga, arrematados com um copo de sumo de laranja caseira e tudo coroado com uma chávena de café de máquina, perfumado e forte. Estava pronto.

O dia estava assim para o acinzentado, com algumas pingas e outras mais pingas ainda, talvez um sinal que deveria ter em conta, razão pela qual voltara atrás para ir buscar uma capa impermeável, que deixara algures, mas que encontraria, de certeza. E lá estava ela, a capa, com o seu cartaz sinalizador, «Estou aqui!», ou não fosse ele um cartaz de pergaminhos ancestrais, comprovados por testemunhos que se perdiam «na bruma dos tempos», não esquecer as aspas, que esta expressão tinha paternidade registada, era o que constava... Agora, sim, estava pronto!

O seu olhar de águia, um pouco pitosga, é certo, mas ainda bastante confiável, rapidamente identificou uma alma com todo o perfil para ser envolvido no estudo a propósito do detalhe, pois levava um sacho e um saco, sinal inequívoco de que o seu destino era o que lhe interessava, era melhor abordá-la e questioná-la da forma mais adequada, por via das dúvidas, não suas, mas dela. 

_ Ilustre alma, bom dia. Por obséquio, poderia dar-me uns momentos do seu precioso tempo...?

A alma, que deveria ser um pouco surda, pois se limitara a responder «Hã!...», voltara-se para ele e, de certo por algum pequeno desconforto no braço que o levava, erguia o sacho e volteava-o acima da cabeça, dizia «O que é que este quer...!?», certamente não se apercebendo de que, àquela hora, não existia a plateia que pressupunha a interrogação que ela lançara, estava visto que teria que fazer uma abordagem mais terra-a-terra, não fosse perder-se a oportunidade. E isso não aconteceria...

_ Bom dia. Vai aos detalhes...?

A boa alma, disso não tinha dúvidas, olhou para ele e convidou-o, era uma pessoa educada, reconhecia, a que «se pusesse a milhas, não fosse o sacho abrir-lhe a cabeça!», completando o convite com uma rajada de termos plebeus que, a custo, lhe custaram a decifrar, mas indicadores de que era capaz de ser boa ideia esquecer esta alma para a auscultação sobre o detalhe...

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31 outubro 2021

Muda a hora, fica o relógio

Olha bem para as letras. De frente e sem medo. O que vês? Provavelmente não vês nada, até porque estás de lado e não de frente... Vá lá, vê-las de perfil. Ainda se fosses desenhador... Ou pintor... Ou ilustrador... Tentemos de novo, não vás esquecer-te: «Olha bem para as letras! De frente e sem medo! O que vês?». Continuas a não ver nada, está visto, e agora não estás de lado... Preferias antes um bife, não era...? Compreendo. Mas tens que te contentar com a sopa...



Comentário: antes que me dê alguma coisa ou não vá esquecer-me e deixar passar a ocasião, também sem medo e de frente mando a seguinte mensagem ao autor desta reflexão letra-filo-gastro-treta: não escrevas para aquecer. Queima antes uns toros!


 

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13 março 2021

Ao vivo e a cores

Desentorpecia as pernas, rua acima, rua abaixo, quando olhou para a tarja dependurada numa das casas, apontando para a entrada.

O anúncio à porta era convidativo: «Reunião de Cromos. Faça favor de entrar». Olhou lá para dentro e constatou que a assistência era escassa, se bem que fossem nítidas as separações entre as diversas famílias de cromos (explicaram-lhe depois): a dos desportistas, a dos artistas, a dos das tecnologias e afins, a dos sem actividade reconhecida e a dos curiosos sem apelo.

Sondou os organizadores a propósito do número de participantes, que lhe disseram que não era fácil reuni-los, até porque alguns recebiam esse reconhecimento precisamente por terem essa particular característica de parecerem a leste de qualquer tipo de orientação, como o de conseguirem encontrar o local da reunião, por exemplo, daí o investimento na tarja e no cartaz. Tomou nota e captou a seguinte conversa:

_ Quantos cromos é que temos hoje?

_ Está fraco. Só meia-dúzia deles. 

_ Só meia...!? Não dá para arranjar uma dúzia completa...?

_ É difícil. Compatibilidades diferentes, percebes?

_ Percebo. Não temos quórum, assim. Vamos apanhar uns poucos.

(Para quem não sabe ou já não se lembra, os cromos não são uma invenção moderna, supostamente pelas gerações mais novas, mas já com uns anitos, dedicados a consagrar as vedetas do que era popular na altura, estamos a falar de artistas, cantores, actores, desportistas, sobretudo). 

Era pena que nesse dia aparecessem tão poucos, lamentavam-se-lhe, pois contava-se com um convidado especial, representante da associação dos cromos, que iria fazer uma palestra sobre o «Ser Cromo, esse desconhecido», que previa a tradução simultânea, na eventualidade da presença de cromos de outras partes do planeta ou extra-terrestres, na sequência da recepção de sinais rádio captados dias atrás, solicitando a reserva de três, quatro cadeiras, junto do palco. Como o representante da associação não dava sinais, perguntaram-lhe se não quereria fazer uma perninha para desenrascar, coisa ligeira e apenas para cromo ver, agora que tinham apanhado a meia-dúzia que faltava e já tinham quórum. Perguntou se era preciso cartão ou licença e garantiram-lhe que não, mas ajudava se tinha alguma competência atribuível ao universo cromo, como um super-poder, ou algo semelhante. Disse que talvez, se conseguir fazer um medley de assobio de cantigas brejeiras, muito populares na altura, servia e se era adequado, pois dispunha de tempo até ter que ir para um concerto. Disseram que sim, que era óptimo e vinha a calhar. E que ficasse descansado, que lhe pagariam a actuação. Era só escolher a colecção de cromos que quisesse.





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01 janeiro 2021

Ao jeito da dança

A prosa começou por lhe sair enrolada, para não dizer chocha. Ainda pensou em dar-lhe com um pau, a ver se a esticava, mas achou que era despropositado. Apesar de tudo, sempre era ano novo. Quanto aos votos, não sabia como convencê-los ou mobilizá-los. Uns queriam mais dinheiro, outros mais regalias, outros mais saúde, paz e amor. Era um clássico. Um tudo ou nada desbotado, mas um clássico. Mesmo assim, achava pouco satisfatório, mais a mais porque tinha estado a dar uma vista de olhos por entradas de outros anos e pareciam-lhe com mais peito. Se calhar porque teriam feito mais exercício ou comido ou bebido mais, não se sabia e não se podia agora confirmar. Voltou a equacionar o pau, mas de novo recusou, talvez porque se estava a deixar enfeitiçar por uma música que passava na televisão, dedicado a valsas e típico desta data. Ainda tentou ensaiar uns passos, mas rapidamente desistiu porque começou a sentir uma dor na barriga das pernas, uma típica dor de quem não está habituado a dançar a valsa, mas sim a bater o pé no sofá e a abanar a mão ao som do compasso. Fora do devaneio, talvez haja uma luz. Ténue, frágil, assustadiça, mas com algum brilho. Compete-nos dar-lhe o calor e a protecção que lhe possam faltar. Foi isso que explicou ao pau e, aparentemente, terá conseguido demovê-lo de fins menos apropriados para com a vassoura, que não tinha culpa nenhuma das atribulações da prosa e do seu autor. Veremos se as coisas melhoram. Até lá, dancemos o vira. Virou!

 


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12 dezembro 2020

Moleskine Neurasténico

Abriu a porta do armário e olhou para os títulos de histórias pendurados nas cruzetas. Não eram muitos, o que levou a interrogar-se se não haveria necessidade de dar uma volta pelas feiras para comprar meia dúzia ou mais, dependeria das promoções. Iria pensar e depois decidiria. Até lá, havia que escolher um e pô-lo ao sol. Estava indeciso entre o «Full Mind, Free spirit» e o «Moleskine Neurasténico». O primeiro era mais moderno e adequado às novas tendências, mas o outro tinha precedência, apesar de ser mais old school, aparentemente. O «Full» não estava contente, notava-se pela cara, e ia ruminando qualquer coisa como: «É sempre a mesma coisa... Rai's partam esta m****!». A custo, lá foi convencido a voltar para o armário, que a sua vez chegaria, não se preocupasse, e para arrasar!, garantia-lhe o autor, mas que agora era capaz de ainda não ser boa altura para o seu aparecimento e o «Molesk» estava a precisar mais, até porque começava a ficar com manchas do excesso de resguardo e da falta de sol. E era um bocadinho neurasténico, também, aliás uma das suas marcas distintivas. O «Full» que compreendesse, era a vez do «Molesk».

Estando decidido que seria o «Molesk», o sacana recusava-se a sair, todavia, dizendo que não se sentia bem, que estava fraco e deprimido, com dores de cabeça, etc., e apontando o dedo ao autor, acusando-o de ser o responsável pela sua neurastenia, que começara, segundo ele, quando lhe mudara o nome de «Bloco de Folhas de Papel Recicladas Dobradas» para «Moleskine Artesanal», aparentemente para agradar a uma balzaquiana que achava que assim era mais giro e blasé, que nem pensasse em que fosse de outra forma, se estava a pensar num compromisso sério... E o nome mudou, também porque o autor achava que era um bom sinal dos tempos, onde é que estava o mal...?

Estava-se num impasse. O autor compreendia que o nome antigo mandava peso e correspondia a uma determinada forma de ser e de estar, cultivada e mantida, desde sempre, pelo «Bloco», mas, que diabo!..., não se tinha queixado muito quando a proposta de mudança de título lhe tinha sido sugerida, com o incentivo adicional de que isso lhe daria um sainete supra junto dos caderninhos às bolinhas e de corações cor-de-rosa... 

Ainda resmungou que não, que estava farto e cansado, mas que lá faria o favor ao autor... Mas que não fossem para longe!, advertiu, pois tinha marcado uma reunião numa sala de videoconferência com um grupo de admiradoras dos caderninhos...

E foi este facto que o convenceu, não tenham dúvidas... Ficou logo com outra cara!

 


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08 novembro 2020

Ghost writer (memórias de escritor-fantasma)

Era um escritor-fantasma (ghost writer), detentor da cédula profissional 3001.
Entrara numa multinacional de ghost writer, a Ghostwriter Inc.,por selecção curricular. Fora um processo anódino e vulgar, de resposta a um anúncio. De invulgar só o endereço de correio electrónico, de domínio etéreo.com. Poderia ser uma pista, é certo, mas para ele não o fora. Pelo contrário, pois pensava que estava a responder a uma empresa do sector da música. Estava enganado, como facilmente constataria na entrevista...
Começou como começam todos os estagiários: por baixo e a ganhar o mínimo. Monetariamente era um retrocesso, mas tinha cumprido o sonho: ser escritor, ainda que fantasma e anónimo. Esta é a sua história: curta, seca e incisiva.
A professora da escola não se enganara: iria ser escritor, só não sabia de quê e quando. Mas o jeito estava lá, dissera ela. Por onde andou, entretanto, não fazia ideia. A escrever não foi, a tocar guitarra também não. Muito menos a jogar a bola ou a ser estrela de cinema. Mas lá apareceu um dia, parece, ao responder ao anúncio. Estava perro, notava-se, mas lá se conseguiu safar. E com uma redacção sobre a Primavera, desta vez em tons cinzentos. Gostaram e marcaram-lhe uma entrevista. A meio da manhã. E que correu bem, supõe-se, pois deram-lhe logo uma secretária, um bloco e um computador, dizendo-lhe «Bem-vindo!». Não fizeram vénia, pois eram informais, e prepararam-no para o que se seguiria: escrever o que aparecesse, em part ou fultime, e com cumprimento dos prazos. Podia ser qualquer coisa: redacções, biografias, novelas, romances, sermões, discursos para jantares e vivas para ceias e congressos. Aceitou, claro. Quanto a poesia iriam ver, mas não era bem o negócio da casa. À cautela, no entanto, começou a treinar quadras. Pícaras, mas não só. Custavam-lhe mais, mas divertiam-no. Com sorte, talvez montasse um negócio paralelo, tendo em vista o mercado universitário, que estava florescente e começava a apostar nas teses em verso, uma novidade a despontar. Teria de ver como se desenvolveria.
Primeiro trabalho: fazer uma redacção para um aluno do preparatório sobre um tema de pecuária. Por formação e hábito, escolhera a vaca. O primeiro rascunho não foi bem aceite. Foi chamado à supervisão e teve de se justificar. Lá o deixaram apresentar uma segunda versão, mas com uma advertência: que cuidasse do estilo e arejasse mais as coisas. A princípio não compreendeu, mas depois fez-se luz, fazendo saltar a vaca dos prados verdejantes para o mundo das start-up e deixou a questão do ruminar e do leite para outra ocasião... Desta vez não desgostaram, mas o professor que a avaliou deu-lhe um suficiente menos, o que deixou a família descontente e uma recomendação ao patrão dele de que não estavam interessados nos seus serviços, que lhe arranjassem outro futuramente.
O trabalho seguinte correu melhor, graças aos deuses. E também ao assunto, note-se. Tratava-se de escrever uma colectânea de cartas em tom de epístola pós-moderna, com possibilidade de adaptação aos requisitos do twitter e das redes sociais, de forma geral. Teve um sucesso mediano, mas sustentado, responsável pelo aumento das conversões. Foi positivo e benéfico para a sua carreira.
Mas o salto maior ocorreu no domínio das biografias, sobretudo nas daqueles que se faziam passar por ascendência e pergaminhos finos, com profusão de tios e tias, eventos e mais algumas outras coisas desses mundos, inacessíveis por natureza e pedigree.
Agora estava na área dos elogios fúnebres, matéria que é sensível e potencialmente crítica, sujeita a mais convulsões do que um tremor de terra, mas muito apetecível para familiares e próximos dos falecidos ou falecidas. Florescente, também, atendendo ao país, cada dia mais velho. Até começou a escrever o seu. Desta vez, em nome próprio.

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01 novembro 2020

Contando com a incerteza, fica igual

De tanto a ouvir, acreditava nela. Mas nunca a tinha posto em causa... Antes que fosse tarde, decidira que hoje sairia à rua e iria fazer um teste, uma verdadeira prova de fogo, e concluir ou não se a frase ou a convicção feitas de que a virtude estava no meio era válida ou não. Faria uma amostragem nas zonas baixa, média e alta do sítio por onde costumava poisar e analisaria os resultados antes do almoço. Mais do que o bloco e o gravador, era importante que levasse a fita métrica, daquelas certificadas pelo comité do atletismo para as provas de salto em comprimento ou do triplo. Podia começar.

O teste era muito simples. Identificado o respondente, mostrava-se-lhe um quadro com uma lista de pecadilhos (para não assustar) e pedia-se-lhe que se posicionasse a virtude numa escala de 0 a 10, anotando-se as respostas. Como os pecadilhos eram de alcance e impacto diversos, não surpreendia que o posicionamento da virtude oscilasse consoante a sensibilidade e o entendimento de quem estava a ser inquirido. Por exemplo: quem fosse apreciador de cozido, raramente colocaria a virtude em valores inferiores a 8-9 para o pecadilho gula. Já os não apreciadores de nabo a colocariam mais perto do 6. Quanto a dizer sempre a verdade, havia um desconto para a mentira piedosa.

Em tese, o estudo tinha tudo para correr bem e de forma desejável. Na prática, porém, as coisas eram um pouco diferentes, mais não seja porque a reacção das pessoas a um artista barbudo e cabeludo a perguntar-lhes onde é que localizavam a virtude, se a meio ou mais deslocada para os extremos da escala, e com uma fita métrica a estender-se, para medir a resposta, conduzia a comportamentos no mínimo bizarros, desde os esperados «Socorro, acudam!» até ao clássico «Vai trabalhar, malandro» ou, na versão mais prosaica «Vai dar banho ao cão, mas para longe!», e até meia dúzia deles que começavam a querer tirar a roupa, supõe-se que por uma inexplicável sensação de temperatura efervescente ou para lá encaminhada...

Aproximando-se o almoço, tinha que reconhecer que os resultados eram pífios. Mas era o que havia. Feitas as contas, os resultados tinham sido mais ou menos inconclusivos. Até prova em contrário, a frase feita continuava a ter que adoptar-se, continuando a virtude a situar-se no meio. Uns centímetros mais para a direita ou mais para esquerda, não punham em causa a tese. Encaixavam-se dentro da margem de incerteza, confidenciara-lhe a fita métrica...

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05 setembro 2020

O cluster dos lançamentos

A esposa perguntou-lhe que camisa, gravata e meias queria levar, e que não se esquecesse de pôr um pouco de perfume. A mãe também lhe telefonara a desejar boa sorte e que não se esquecesse de levar um agasalho (estava-se em Agosto e a temperatura prevista era de 35 graus) pois estava fresco, e se queria que lhe fizesse uma merendinha com uma omoleta, duas bananas, um sumo e um yogurte de morango, pois a cerimónia podia demorar ou, quem sabe?, não haver nada para comer. Agradeceu e com ternura relembrou à mãe de que já não era propriamente um menino e que tinha 72 anos. Que não se preocupasse.

Uma política consistente e estruturada permitira chegar ali com estes resultados: praticamente todo o habitante daquele país estava habilitado para publicar livros! Começando no jardim-escola e prosseguindo até à formação superior, todos estavam munidos de conhecimento e ferramentas que os credenciavam como autores de livros. Fora um investimento enorme do governo, com o inevitável recurso aos fundos comunitários, e o apoio generalizado e entusiástico das forças e actores sociais, transformando o sector editorial num cluster elogiado e invejado em todo o mundo, sem excepção, sob o lema: «Fazer de cada habitante um autor publicado, uma visão de e para o futuro». Como lema não era original, reconheça-se, mas os resultados tinham sido espectaculares! No espaço de duas gerações, o país tinha arrasado em todos os indicadores micro e macroeconómicos, transformando toda a santa alma daquele pedaço num autor publicado com direito a constar no catálogo da biblioteca nacional, e participante em sessões de autógrafos, animações culturais e afins, festas e romarias várias. E isto, era um facto: inquestionável, objectivo e animador.

Certo que nem tudo eram rosas, mas um ancestral hábito para o desenrasca, outra competência inata, trabalhada em todos os domínios do país, fazia com que as coisas acontecessem, umas vezes melhor, outras pior, contribuindo para o incrementar da performance e orgulho nacionais, cada vez mais à frente. E nesse dia, como em tantos outros anteriores e, seguramente, posteriores, essa verdadeira máquina editorial iria dar mostras, mais uma vez, do que fazia e era capaz de fazer. Mas não havia tempo a perder, pois as coisas estavam já marcadas há muito e tudo teria que ser feito como estava previsto e delineado: concentração, entrada no recinto, distribuição pelo espaço, apresentação, debate, beijos, abraços, palmadinhas nas costas ou nos ombros, autógrafo de dimensão e profundidade várias.

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04 setembro 2020

Em jeito de lançamento...

Para ser simpático, o autor era um tudo ou nada chato. Durante dias, massacrou a cabeça do editor com pormenores acerca da cerimónia do lançamento do seu livro de ficções de dimensão curta. «Que poderia ser assim ou assado, frito ou estufado», com muito simbolismo e pouco juízo, como a ideia de cada livro ser vendido com uma mini-lupa e que a cerimónia propriamente dita só tivesse a duração equivalente ao tempo gasto a sentar, desdobrar uma folha, levantar e ir embora, lançando um hip, hip, hurra!... Com bonomia, o editor lá ia descartando cada uma das bizarras propostas, dizendo-lhe que ia pensar nisso, que não se preocupasse… Mas não contava com uma partida do deus dos lançamentos, esse mesmo, o da organização de eventos e afins, vulgo Agenda, que lhe remetera uma proposta, por carta registada, a propor o esboço da cerimónia. Quando a leu ia caindo para o lado, só não acontecendo isso porque se tinha sentado junto a uma parede e o espaço não era suficiente para uma queda para o lado. Quando muito, em frente, mas aí tinha o domínio da situação, eventualmente recorrendo a uma queda controlada, com rolamento ventral. Estava estupefacto! A proposta da organização era ainda mais bizarra do que a do bizarro autor, aquele que era um tudo ou nada chato. Dizia assim: «O lançamento de um livro representa um marco na carreira de um autor. Para uns, um objectivo, para outros um desígnio, para alguns um pagode, mas respeitável. E que depende da adesão dos participantes, queiram ou não. Por tudo isto, há que inovar. Sempre! No caso presente, o que irá acontecer é o seguinte: concentração dos participantes 15 minutos antes da cerimónia de lançamento, para distribuição de dorsais com um número, para não se confundirem, e realização de um pequeno footing à volta do auditório, entoando uma canção dos Beatles (a seleccionar); depois, início simbólico da cerimónia do sentar, com música de fundo, de preferência de câmara (trata- se de um tipo de música, não haja confusões); apresentação do livro por um artista convidado, em formato acústico, sem encore; por último, agradecimento do autor através de uma rapsódia em assobio, estreia mundial e também local; aplausos, vivas e avancemos para o próximo!... (cuidado para não tropeçar nos próximos, que entrarão passados cinco minutos). Com os melhores cumprimentos, (assinatura ilegível).»

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08 agosto 2020

Aura em teste

Olhou em volta e procurou um sinal. Nada no chão, na parede, nem no tecto. A última esperança residia no rodapé. E lá estava ele, de facto. Se havia certezas na vida, o sinal no rodapé era um deles. Bom e fiel rodapé, quantos e quantos sinais tinhas fornecido, de forma desinteressada e solidária!... E este sinal era aquele de que estava a precisar, não havia dúvidas: um sinal gold, quase a fugir para o platina! Verdadeira caixa de correio de sinais, a ranhura do rodapé fornecia as condições necessárias para que os sinais referenciassem a sua presença, na maioria das vezes sob a forma de folhetos promocionais, que uma traiçoeira aragem (sempre traiçoeiras, as aragens...) conduzia ou induzia para lá, para a frincha do rodapé, à espera que uma alma caridosa ou que para lá caminhe o venha resgatar de uma cura de pó ou de encontrões de vassouras ou aspiradores, quando não pontapés de frustrados jogadores de bola ou de empreendedores dos sete costados derreados por mais uma crise e à espera de uma mão salvadora do pai Estado, sempre presente, em sonhos ou pesadelos, decida quem quiser e puder... E o folheto dizia: «Resgate a sua aura. Faça o teste e tenha um bom dia». Nem mais!

Já há algum tempo que andava preocupado com o estado da sua aura. Não se incomodara, ao princípio, pensando que seria coisa normal, fruto de uma  vida assoberbada com realidades pouco dadas à aura, mas necessárias, mesmo assim, à manutenção da alma titular da aura. Em suma, acabaria por acomodar a aura às circunstâncias, com mais ou menos barriga, peito descaído ou rugas, mas preservando, dentro do possível, que isso se reflectisse na aura. Isso é que não! Mas chegara o momento de avaliar a sua aura e, quiçá, encontrar outras auras com as quais pudesse partilhar algumas das angústias, receios e sonhos com que toda a aura se confronta, habitualmente em dois, três momentos ao longo do dia, ao levantar, à hora das refeições e ao deitar. Iria fazer o teste.

A sala onde se encontrava era muito agradável, mobilada com gosto e um suave encanto, a revelar mão de alguém, por certo, com uma aura recomendável e candidata a apresentação à família. Estava com a sua gente! E a sua aura também concordava, pois piscara-lhe o olho, de forma maliciosa, não era normal, mas revelador do contentamento que mostrava, pedindo-lhe desculpa por querer descobrir as maravilhas que o local oferecia, uma verdadeira cornucópia de guloseimas, passe a expressão, para auras à procura de conforto e libertação. Perdi-a de vista, por conseguinte, e dirigi-me ao balcão para obter o teste e proceder ao pagamento.

O teste era acessível e respondi-lhe sem necessidade de cábulas. Conhecido o resultado, «aura dispersa», (não me surpreendia) com áreas claras e escuras mais ou menos equivalentes, seguia a proposta para um plano individualizado e eficaz, não havia dúvidas, tudo pelo módico preço de X, pagável em prestações suaves, gostamos de ter o aqui e força, que a sua aura vai agradecer-lhe! Agradeci e disse que ia pensar. Quando procurava a minha aura para regressarmos, não quis vir. Descobrira que a vida comigo não a satisfazia na sua plenitude de aura, agora que se descobrira como aura radiante. Despediu-se sem hard feelings e desejou-me felicidades. Retribui, é óbvio, e disse-lhe que estava contente por ela já saber exprimir-se em inglês. E o espaço vazio anteriormente ocupado pela minha ex-aura iluminou-se...


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26 julho 2020

Em nome dos marcadores precários

Usam-me como marcador de livros. Não gosto e não me sinto confortável. E não me venham com a conversa sobre os benefícios da proximidade com os livros ou a literatura e de o papel que desempenho, ainda que contrariada, contribuir para sinalizar a página onde o leitor deve reiniciar a leitura ou, caso mais raro, aquela página em que, vá lá adivinhar-se porquê?, detectou algum pormenor estilístico, uma ideia, uma imagem que quer reter ou fazer perdurar... Já disse: não quero dar para esse peditório! Falo em meu nome, factura que sou e filha de factura. Mas também o poderia fazer, se para aí estivesse virada, em nome de todo o desgraçado cartão, papel, tira, pedaço, folheto, recibo, clipe, guardanapo, publicidade a curandeiro ou folha de papel higiénico. Uma verdadeira rebaldaria e pouca vergonha! E os direitos, senhores, onde é que estão...? As condições de trabalho, quem fala delas...? E o tempo para a família, alguém me diz como é que se gere...? Como não ouço ninguém, presumo que também não vou ouvir... E os queques...? Sim, os queques dos marcadores com pedigree, aqueles muito lindinhos  e cheios de estilo, bem impressos e guilhotinados, a fazerem aquilo para que foram feitos (e bem!), pagos a peso de ouro pela gramagem, o tipo de papel e o livraço que vão ajudar a vender...? Pois é, assobiam para o lado (e que bem que assobiam, note-se, verdade seja dita, boas academias de assobio devem ter frequentado!...). Mas, mesmo que ninguém faça nada, eu não me calo! Algo vai ter que mudar e é já!
Para começar, uma petição a circular online para recolher assinaturas e a apresentar na assembleia. Faço-a num piscar de olhos (publicada em www..., é só pôr o Google a trabalhar e encontram-na logo). De seguida, vamos começar a preparar o movimento dos separadores de livros precários (abaixo! ...desculpem mas foi do entusiasmo); recusar o horário de trabalho vigente, instituindo de imediato (acima!... desculpem, de novo, mas é da emoção) as pausas relaxantes e com afastamento físico dos livros, da literatura e das prateleiras; instituir um subsídio de risco e férias pagas (upa, upa!..., ups!,... sorry). Unidos venceremos!

Não sejas marcador precário (a não ser que queiras, tu é que sabes). Organiza-te!

Factura n.º 123321MR
IVA: isento.



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19 julho 2020

Antes da ordem do dia...

A história era sempre a mesma. Mesmos protagonistas, mesmos enredos, mesmos tempo e espaço. Já cansava um bocado e as gorduras acumulavam-se. Iria pedir um orçamento e um lifting. Até que isso acontecesse, ia dar uma volta ao quarteirão. Para não cair na rotina da escolha habitual, iria seleccionar um quarteirão umas ruas mais abaixo, da mesma época, mas com acabamentos diferentes, pelo menos quando se olhava de esguelha, palavra plebeia, ou de perspectiva, léxico mais talhado para a arte ou a arquitectura. Mas Senupe estava reticente... Não era por mal, mas por causa de uma literatura recentemente entrada na casa, vagamente erótica, mas do século XVIII! E, neste campo, Senupe não abdicava, viesse quem viesse, incluindo o dono, que era eu. E compreendia-se: a literatura vagamente erótica do século XVIII tinha sido a tese de mestrado de Senupe, nos idos anos loucos dessa época dourada, ela própria, os anos 80. Estava visto: a volta ao quarteirão teria que ser sem Senupe...
Mal tinha iniciado o passeio, encontro uma das vizinhas, jovem ainda nos seus 84 anos, mas possuidora de uma persistente teima que se manifestava quando me encontrava, já nem valia a pena dissuadi-la, e que era a de me considerar seu conterrâneo, engenheiro e administrador, possuidor de talentos imensos, incluindo o de apreciador de figos ou de uvas, dependia dos dias. Por mais que lhe dissesse que não, que era mais das literaturas, de melões e de pêssegos, não havia maneira de a convencer... Não que daí resultasse um impasse, nada disso, mas apenas um hiato no que à sequência da conversa poderia acontecer, fosse uma deriva sobre as infiltrações na fachada, a idade do telhado e se podia dar uma mãozinha para acelerar o pagamento da pensão lá pelo conselho dos ministros, ou como é que estávamos em matéria de chuva, melancias, almanaques e curas para as dores nos ossos, mesmo que em tempo quente. Mas hoje a conversa fora mesmo para as uvas e os figos, quando me presenteou com uma tirada do melhor da sabedoria popular, obviamente que de experiência feita e mediante reflexão aprofundada, acerca da brandura, aplicada a uma saudada corrente de fresco logo pela manhã, aplicada e preciosa para o amadurecimento dos figos e das uvas. Que beleza!.. E que sorte!... Amanhã, já saberia como começar o conselho dos ministros...

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17 julho 2020

In vino veritas

O dilema plantou-se à entrada do prédio, empunhando um cartaz. Como era de esperar, as vizinhas e os vizinhos começaram a aparecer às janelas, à espera do que ia sair dali... Teria preferido que as coisas não tivessem que se resolver daquela maneira, mas era o que tinha de ser. Ainda lhe passou pela cabeça lançar uma mangueirada ao dilema, mas não deu sequência ao impulso, pois seria um desperdício de água, recurso sempre precioso, mais a mais agora, que fazia um calor que berrava!... Não, a coisa teria que ser resolvida com diplomacia. Começaria pela abordagem clássica, a do passar a mão pelo pêlo, sempre útil em situações semelhantes e muito vocacionada para protagonistas que costumam ter-se numa grande conta, como é o caso dos dilemas e outras espécies que gostam de lidar com oposições ou contrários e se reconhecem pelo símbolo 'ou', uma marca de prestígio, poderá concluir-se. Mas o pêlo deste parecia um pouco áspero... Teria que arranjar outra abordagem. Num passe de mágica, sua característica secundária, mas útil em situações desesperadas, começou por enumerar o conjunto de regalias, mordomias e outras coisas terminadas em 'ias' que o dilema poderia vir a usufruir se o deixasse em paz. Mas a coisa não estava também a correr bem, não porque o dilema não estivesse entusiasmado com as hipóteses e perspectivas que lhe iam desfilando pelos olhos, mas porque algumas das vizinhas e vizinhos começaram a entusiasmar-se com o que viam e desatavam, elas e eles, a também desfilarem dilemas à laia de cânticos à desgarrada, correndo-se cada vez mais o risco de uma situação descontrolada, não tardava a necessitar de intervenção das autoridades... Que fazer...? Só via uma saída: perante escrever ou cavar resignar-se-ia... indo para os copos!

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12 julho 2020

Declarar guerra

Por norma pacífico, ficou intrigado quando lhe propuseram declarar guerra a alguma coisa. Ficou muito renitente, a princípio. Obstinado, mesmo. Tentaram diversas abordagens, umas mais sedutoras do que outras, mas a resposta era sempre a mesma: não! Mas do outro lado também não desistiam. Eram duas obstinações em confronto, de resultado incerto. Ter-se-ia que recorrer a um árbitro, estava visto. Mas tinha que ser um árbitro a sério, mesmo que já retirado. O problema era encontrá-lo, ainda que com candeia. E como as candeias escasseavam e cada vez havia menos gente para trabalhar com elas ou arranjá-las quando se estragavam, a coisa adivinhava-se difícil. Parecia estar-se num impasse. Até lá, não havendo declaração de guerra, estava-se num período de tréguas, embora fosse ilógico, pois ainda não havia guerra nenhuma. Talvez fosse mais acertado dizer que se estava numa situação de paz podre. Mas ainda era cedo.
Depois de muito se porfiar, o árbitro lá foi encontrado. Não parecia ser grande espingarda, mas era o que se arranjara. Que também estava renitente em vir, note-se, mais a mais porque estava com uma grande mão de sueca, com ás de trunfos, manilha, e duque, a jeito para ganhar duas ou três vazas, duas seguras e uma logo se veria. Por via disso, tinha sido difícil convencê-lo, só se conseguindo com uma promessa de moeda mágica para a raspadinha, mas tinha que assinar já, antes que o mercado de transferência fechasse. Aceitou, está visto, senão não tínhamos mais nada para dar corda à história. Adiante, pois, e saltemos para o momento da reunião e das conversações a propósito de declarar guerra a alguma coisa, pequena ou insignificante que fosse, apenas para marcar uma posição e concretizar um objectivo de ano novo, aniversário ou porque sim.
Analisadas as propostas em cima da mesa, o impasse mantinha-se. Não havia maneira de se chegar a um consenso. Umas vezes por excesso, outras por falta de ambição, o certo é que não se encontrava aquele minimis que era necessário: o qualquer coisa a que se declararia guerra. Fácil, aparentemente, torna-se difícil pela minudência ou irrelevância das coisas de que se precisam. Parecia filosofia em saldos, tinha consciência disso, mas estava tranquilo com isso, pois já tinha aberto a época. Mas estava a afastar-se do que interessava. Acabou por aceitar a proposta de uma marca de botas de contrafacção, boas para caminhar, fazer escalada, dançar o tango, e aquecer os pés no Verão, só, pois o Inverno não estava incluído. Aceitava o patrocínio e queria começar a experimentar. Rejeitara a proposta dos ginásios. Ponto.

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19 abril 2020

180750 páginas ao pó (mais coisa, menos coisa)

«Se não fosse agora, não seria nunca!». Gostava da frase pelo que representava de empenho e determinação. Para começo, não estava mal. Mas ainda teria que lhe dar continuidade... E isso, minhas amigas, não era adquirido. O primeiro sinal de que algo podia descambar ocorreu quando se pôs a olhar para as estantes (eram cinco) e se apercebeu de que a coisa não ia ser fácil... Fez as contas por alto e chegou a um número, 723 livros, talvez mais um ou menos um, pouco importava. Tinha estabelecido que a limpeza deveria ser página a página, nem que fosse de passagem, mas página a página. Disso não abdicava. Feitas as contas, a uma média de 250 páginas por livro, havia ali muito trabalhinho a fazer... Veria como corria.
Sendo uma pessoa metódica, concluíra que era melhor começar pelas prateleiras de cima. Só teria que ir buscar o escadote. Enquanto tratava disso, uma ideia estapafúrdia perpassou-lhe pela cabeça e obrigou-a a parar, mas rapidamente a sacudiu com o pano do pó, que entretanto apanhara na despensa. Não podia desconcentrar-se e deixar que coisas marginais a desfocassem da sua tarefa... Voltou a entoar a frase do início, desta vez com mais ênfase, o que levou o cão a dar um salto no sofá e começado a ganir (não se sabia bem porquê...), mas ela sossegou-o, fazendo-lhe uma festa na cabeça, e o bicho aquietou, voltando a dormir. Olhou para o relógio e deu início ao trabalho.
Tinha já limpo os dois primeiros e preparava-se para limpar o terceiro livro (assim o ditado estivesse certo...), recordação que lhe provocou um ligeiro sorriso, quando se ouviu um berro provindo deste, assim parecia, não muito estridente, mas firme: «Que é isto?!... Já não não há respeito pelos Clássicos?!?... Em que mundo estamos, por Belenos e por Toutatis?!...».
Ao ouvir isto, e sobretudo ao aperceber-se de onde vinha a voz, a mulher ia tendo um baque e quase caía do escadote, apenas o evitando porque se agarrara, por sorte, a um dos volumes da Suma Teológica..., mas acabaria por se recompor, achando melhor descer e analisar a situação em cima do soalho da sala, mais seguro e terreno, concluíra também. Já em segurança, olhava para a última prateleira e para o livro que falara, o terceiro, recusando-se a acreditar no que ouvira ou julgara ouvir. Não! Ali havia coisa... Mas antes de pensar nisso, ia beber um cálice de espirituoso e racionalizar o que fosse possível. Podia ter sido uma tontura, um desfalecimento, uma sugestão, não se sabia, mas não de estranhar pois andava um pouco cansada e a dormir pouco... Não havia de ser nada, animava-se.
Regressada à sala, voltou a olhar para a prateleira e para o livro, que entretanto se chegara à frente e se desalinhara dos outros, acabando por identificá-lo: era um Astérix! Teria que ter muita paciência e tacto para lidar com ele, mas estava esperançada num entendimento. Resolveu encetar o diálogo:
_ Não leves a mal, ó livro do Astérix, mas gostava de te explicar o que se está a passar. Estou a fazer a limpeza da estante e dos livros, por causa do pó, dos ácaros e da bicharada que os ataca, percebes?
_ Nem por isso... Tinha de ser hoje?
_ Bem... não. Mas é domingo, sabes?... Durante a semana é mais difícil... Não podes facilitar?
_ Ganho alguma coisa com isso?...
_ Ficas mais limpinho... Também respiras melhor. Achas que é pouco...?
_ Acho!... Mas como sou um sentimental, dou-te uma hipótese.
_ Diz lá...
_ Corremos o risco de que o céu nos caia em cima da cabeça?...
_ Penso que não. Estamos entendidos...?
_ Ainda não.
_ Então...?
_ Agora vamos para uma patuscada de javali. Depois te digo.
_ Prometes?...
_ Vai depender da poção...






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