Apesar da profissão, dormia bem. Por isso não ficou preocupado, pois atribuía às boas noites de sono a solução para uma boa parte dos males. Saber quais os males que se curavam com as boas noites de sono era um segredo bem guardado, apesar de falar regularmente sobre ele. Falar de um segredo abertamente e ninguém descobrir divertia-o, e isso também contribuía para as boas noites de sono, pois toda a gente sabia (ou devia saber) que a diversão conduz ao bom sono, uma vez que a cabeça está mais leve. O corpo cansado também, mas isso vem por acréscimo. Mas ficou alerta, apesar da boa noite de sono, quando descobriu que não encontrou uma camisa lavada, de preferência também passada, quando abriu a porta do guarda-fatos, local de eleição para se guardarem as camisas, bem como as cuecas, as meias e as camisolas, peças de vestuário assustadiças, por definição, daí terem que estar guardadas pelos fatos, que impõem respeito e ficam bem com gravata, se não contarmos com a Grécia, país que lhes decretou greve.
Não era costume as camisas, ainda para mais lavadas e passadas, ausentarem-se do guarda-fatos sem autorização ou acompanhamento habitual de um fato, que para isso estavam treinados e instruídos. É certo que os tempos estavam diferentes, mas continuava a imperar a prudência e o recato, como continuamente se lhes chamava a atenção. Pelos vistos, em vão.
A primeira tentação foi a de chamar a polícia, mas rapidamente se combateu a tentação e se optou por algo mais em voga: a convocação da comunicação social, se possível a audiovisual em detrimento da escrita, pois estava-se de férias e as edições em papel ainda estavam a ser preparadas. Foi o que se fez, não sem primeiro se colocar um
post no
Facebook e uma imagem da camisa no
Instagram, tendo-se tido o cuidado em escolher uma pose discreta mas apessoada, pois havia que manter o nível e não dar azo a especulações maldosas ou mal-intencionadas, risco grande, como se sabe, quando se pertence a um determinado estrato ou se anda nas bocas do mundo, como os futebolistas e os artistas, por exemplo, embora estes não costumem andar de camisa, mas mais de
t-shirt.
Para além da comunicação social também se chegou a pensar na protecção civil, mas abandonou-se a ideia, pois desconhecia-se que código de cores invocar para este tipo de emergência. Por estarmos em época de praia também se aventou a hipótese de pôr um avião a voar com uma tarja a convidar ao regresso a casa, mas também se abandonou a ideia. Ver-se-ia o que dariam as próximas 48 horas, seguindo o conselho da polícia, que alguém de bom senso resolveu chamar entretanto.
Acabou tudo em bem, felizmente. Alertada pelo
Facebook, divulgada pelo
Instagram, pelos rodapés da televisão e pelos sons da rádio, a nossa camisa deu resposta aos apelos e sossegou-nos a todos, dizendo que estava tudo bem mas um pouco amarrotada, e que só regressaria a casa quando terminassem os festivais de Verão. Como os festivais tinham começado agora, a coisa ainda iria demorar. À cautela, preparar-se-ia uma barrela.
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