30 novembro 2019

Dia de Outono

Um típico dia de Outono. No chão, uma montanha de folhas: uma paleta de tonalidades, escolha preferida no campeonato das cores das estações, um regalo para a vista e a memória... Começa a juntá-las num monte, admirando o formato piramidal que obtém. «Nada mau», conclui, e prepara-se para o que se lhe segue: um pontapé seco, direccionado ao meio, fazendo esvoaçar as folhas ao calha, tal qual como em garoto. Sorri...
Um pequeno «ai!», contudo, obriga-o a olhar em redor. A princípio, não quer acreditar. Mas acaba por ter que se conformar com o que descobre: uma das folhas, equilibrando-se a custo no pedúnculo, confronta-o verbalmente, num tom nada amistoso ou tolerante: «Ó minha besta», começa, «não vês onde é que pões as patas!»...
Julgando tratar-se de uma partida («talvez dos Apanhados», suspeitava) ou momentânea perda de lucidez (nunca se sabe...), aproximou-se mais do local onde supostamente teria visto e ouvido a furiosa folha outonal e procurou confirmar se tinha sido mesmo assim...
A aguardá-lo (quem diria?...), para além de um sonoro «Camelo!», a folha aparentemente dispõe-se a ter uma conversa:
_ Depois da asneira que fizeste, vens agora pedir batatinhas, não é verdade?
_ Sim..., pois..., não sei...
_ Vens tarde, pá! Devias ter pensado antes...
_ Mas,... mas..., m...
_ Nem mas, nem meio mas! Vamos meter-te um processo!
_ Um processo?!... Quem é que são o «nós»?
_ Nós,  o monte de folhas, quem é que havia de ser?!...
_ Mas vocês são um monte de folhas!!!... Têm personalidade jurídica?... E como é que conseguem falar...?
_ Isso agora não interessa... Queres falar?... Entende-te ali com o nosso advogado... A partir de agora, é assim.
_ Advogado?!... Onde é que está?...
_ Ali, com a toga, não estás a ver?
_ Onde?
_ Ali, ao pé daquela folha em tons amarelados, estás a ver?
_ Também é uma folha, é isso?
_ Claro! Estavas à espera de quê?... Desculpa lá, pá, mas pareces-me um bocadinho burro. Será por seres humano?...



Etiquetas:

Aprumo

Enquanto aguardava o sinal, perfilou-se em posição de sentido. Dado este, fez a continência e marchou com garbo pela passadeira e ao som das buzinas dos carros. Desfez a continência só quando chegou ao passeio e fez-lhes um manguito.


Etiquetas:

Um dia de chuva em Nova Iorque

O que é que pode acontecer numa grande cidade num dia de chuva?... Muita coisa, supõe-se. Em Nova Iorque, num dia de chuva, segundo o plano e a visão de Woody Allen, pode acontecer isto: encontros e desencontros, ansiedades e expectativas, amores e/ou casos passageiros, comédia ou desencanto, o real e o imaginado, o glamour e o nem por isso, as artes, a música, os jovens e os outros, o quotidiano, o sonho, a vida... Hip, Hip, Woody!

Etiquetas:

24 novembro 2019

Ensaio

_ Olá. Queria falar consigo, pode ser?
_ Claro! Há problemas...?
_ Pouca coisa... Relacionadas com o condomínio, está a ver?
_ Ah... compreendo. É o 5.º esquerdo, suponho...?
_ Bem... não propriamente.
_ Ai não...!?
_ Não. É mais consigo... Por causa do barulho, está perceber...?
_ Comigo!?... E por causa do barulho!?... Não percebo...
_ Os vizinhos queixam-se do barulho... que é desagradável e intenso. Anda a fazer alguma coisa...?
_  Que me lembre... Estou a preparar um ensaio. Até por isso, como vê, penso que o barulho não possa ser muito... As pessoas não estarão a confundir?...
_ Penso que não. É por cauda do ensaio, mesmo. Dizem que está muito desafinado. Que já não aguentam! E que se o condomínio não tomar medidas, chamam a polícia...
_ Oh, diabo... Por causa do ensaio...!? Não haverá aí algum exagero?... São só palavras e pontuação, não percebo como é que isto possa fazer barulho...
_ Se calhar, o problema é mesmo esse!
_ Como assim!?
_ A harmonia das vírgulas e a utilização dos pontos não está bem - está desafinada! E o uso dos adjectivos é abaixo de cão, parece uma chinfrineira! Se quer evitar problemas, é melhor tratar disso...

Etiquetas:

O corte de unhas está certificado?

Só para quem toca guitarra ou quem a deixa crescer no mindinho.

Etiquetas:

18 palavras

«A patrulha subiu à montanha. Um só homem regressou. Morreu antes que nos pudesse contar o que aconteceu». (in «A respiração da guerra», da autoria de Isabel Lucas, suplemento Ipsilon do Público, de 28 de junho de 2019, p. 28, a propósito da publicação de Despachos, de Michael Herr, Antígona. O autor foi correspondente de guerra no Vietname, colaborou no Apocalipse Now, de Coppola (a narração em transe de Martin Sheen no filme) e ajudou a escrever o argumento de Born to Kill (Nascido para Matar), de Stanley Kubric. A frase inicial é a transcrição de uma afirmação de um soldado ao correspondente, que ele identificou como uma das histórias de guerra «mais acutilantes e profundas». Como ficção breve é um portento!

Etiquetas:

Technoboss

Que simpática surpresa esta, que se estranha e depois se entranha! Continuando a fazer apelo a referências que todos mais ou menos conhecem, quem canta os seus males espanta e, nalguns momentos, o clima é de pura rambóia, com dança à mistura. Atenção ao protagonista, à banda sonora, e aos dias preenchidos pelos caminhos da vida, umas vezes mais, outras menos, mas a deixarem vislumbrar momentos únicos, alguns mesmo românticos e/ou ternos. Talvez o Rovisco esteja em vias de se tornar (quem sabe...?) o nosso senhor Hulot...

Etiquetas:

23 novembro 2019

(A)credit(ado)

_ Estou sem palavras.
_ O que é que aconteceu!?
_ Fiquei sem palavras. Descuidei-me.
_ E agora?
_ Tenho que comprar mais.
_ E achas que há?
_ Tem que haver... Onde é que já se viu, não haver?!...
_ Eu já vi...
_ Onde?
_ Noutros tempos... Foi duro.
_  E como é que se safavam?
_ A crédito, claro! Pensavas o quê?!...



Etiquetas:

Assento

Contou os trocos e decidiu ir às compras. Não foi longe. Perguntaram-lhe se queria factura. Que sim, era conveniente. «Em nome de...?». «Parcimónia», disse. «Com acento».


Etiquetas:

Ladradelas

Encheu um copo de água e tomou um comprimido para qualquer coisa. Durante o texto haveria de lembrar-se... Olhou para o guarda-fatos e decidiu que um tom assim mais para o coiso era o mais adequado para a ocasião... Farejou  a gamela e torceu o nariz, nem muito nem pouco, só um bocadinho. Já se lembrava para que servia o comprimido: era para o odor a caça, essa forma de nostalgia, vital para um perdigueiro. Escolhera o título: Ladra enquanto puderes. Se não puderes, ladra também.

Etiquetas:

A teia

Convencera-se de que a habituação tinha um fim: contribuir para sentir-se confortável. Visto assim, era algo positivo. Mas tinha um reverso. Não como o das moedas, que está na outra face, mas reverso na mesma, pois é o preço que se paga a outro nível. Por exemplo, na atenção ao que nos rodeia.
A proximidade da janela alertou-o. Pelos vistos, não é só o ser humano e as plantas que a procuram. Também os animais. E não apenas os gatos ou os cães, mas outras espécies...
Nunca prestara à teia mais do que a atenção que se devota às coisas habituais: estar lá e não se dar conta... até um dia (podia cair a primeira espadeirada dada pelos entusiastas da limpeza do pó...). Levada esta, em sentido literal ou figurado, o certo é que nada se alterara quanto ao rumo da constatação da primeira frase (e aqui a espadeirada aumentava, para não dizer indignação, que vamos deixar para segundas núpcias) ...
Tirando talvez o mundo das adegas, o certo é que a presença de teias não costuma estar no top ten das recordações preferidas da rapaziada... Há quem se dê bem e quem se dê mal. No caso da nossa aranha, nem uma coisa nem outra. Foi-se embora, simplesmente. Mas deixou mensagem: «Não me aumentes a renda, que volto logo».



Etiquetas:

09 novembro 2019

Dois livros, um autor

Sete anos bons e O motorista de autocarro que queria ser Deus, ambos de Etgar Keret.

Etiquetas: