31 dezembro 2015

Sai o 5 e entra o 6

_ O meu contrato acaba mesmo hoje, não acaba?
_ Sim, é verdade. Hoje.
_ Não podemos prorrogá-lo?
_ Impossível. Já sabia isso, quando assinou.
_ Mas ainda me sinto em forma... Não se arranja mesmo nada?
_ Não, lamento. Sabe c'mo é que é: 12 meses, não mais. Temos que dar lugar aos putos, apostar na formação. Os grandes clubes e organizações é assim que fazem.
_ Ainda posso dormir cá?
_ A hora e as condições de saída estão afixadas na porta. São p'ra cumprir. É a lei.
_ É que eu ainda tenho alguma bagagem e hoje, como sabe, está tudo fechado... Acha que se pode arranjar um táxi, lá mais p'ró fim da noite?
_ É difícil... A bagagem é muita?
_ Duas malitas e um saco. Mas são um bocadito pesadas, as malas. Levei-as na digressão, recorda-se?
_ Sim, recordo. Isso eram outros tempos... Agora isso já não é preciso: chega-se aos locais e está lá tudo: botas, equipamento, bolas, remédios, tudo! Consigo só tem que levar o fato de treino ou o fato, mais os headphones, está claro, pois se não os levar ainda pensam que não é craque, 'tá a ver?
_ Eu ainda sou do tempo do gravador a pilhas... Tinha umas musiquitas jeitosas, daquela mocinha que foi à Grande Noite do Fado, não sei se lembra?
_ Já não é bem do meu tempo... Eu sou mais do rock, do sinfónico não do heavy, mas se tiver que os ouvir, também se ouvem. Também gosto muito de blues e de música brejeira, daquelas das romarias, 'tá a ver? Uma vez, recordo-me agora, ía pr'a um festival e parei numa, que ficava em caminho, e comprei três ou quatro cassetes de música dessa. Fartei-me de as ouvir, no intervalo do festival. Bons tempos!
_ O rapaz da formação, o que me vai substituir, joga aonde?
_ Nem sei bem... mas dizem que é polivalente!
_ Há esperança quanto ao futuro dele?
_ Depende... os empresários andam em cima dele, mas já sabe c'mo é que é: o carrinho de marca e as luvas não são coisa pouca e alguns querem sempre servir de modelos para champôs, marcas de cuecas e produtos de tudo e mais alguma coisa... uma loucura, só lhe digo! Se não tiverem isto ficam amuados e pensam que o empresário ou o clube são rascas, já viu isto? Um clube c'mó nosso, cheio de tradições e de taças, sujeito a isto. Enfim... Quer que lhe tire já a factura ou ainda vai dar uma volta?
_ Se quiser pode tirar, mas ainda vou ali comprar um bolo-rei. Se me sair a fava, deixo pró que me vem substituir... tinha graça, não tinha?
_ Tinha, sim senhor. Caso venha correspondência ao cuidado do quarto 2015, quer que a envie p'ra onde?
_ Olhe... meta-a no 2016! Se bem me recordo, devem ser contas...

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30 dezembro 2015

Um xarope para a crise

A crise de identidade apareceu numa altura em que se tornava difícil lidar com ela, pois estava tudo fechado. Não que isso fosse uma novidade, pois já sabia que as crises de identidade tinham esse condão, o de não se saber quando apareciam. Podia-se suspeitar, é certo, mas nunca se tinha a certeza. No seu caso, a crise de identidade aparecera por volta das 18h27, mais ou menos, numa altura em que se preparava para encomendar meia dúzia de filhoses de abóbora, uma dúzia de pastéis de bacalhau e um pedacinho de entrecosto na brasa. Com o aparecimento da crise de identidade, assim tão de repente, suspeitava que teria que alterar o tipo e os produtos da encomenda, pois ela começara logo a torcer o nariz aos pastéis de bacalhau e ao entrecosto, mantendo uma reserva céptica em relação às filhoses, que lhe davam conta da linha.
Bem o tinham avisado para esta eventualidade, a do aparecimento da crise de identidade, e de ter sempre à mão o xarope para a combater, coisa que ele pensava só iria usar esporadicamente (talvez nunca, com um bocadinho de sorte). E este foi o seu primeiro erro. Como devia saber, a sorte dá muito trabalho. Estando de férias, esquecera-se.
A época também se propiciava. Há épocas propícias e épocas não propícias para as crises de identidade. Como estávamos numa época propícia, este tinha sido o segundo erro.
Juntando o primeiro com o segundo erro, originara-se o problema. Que não seria fácil de resolver, mas que iria tentar. Com ajuda ou sem ajuda, logo se veria. Tentaria sem ajuda, mais a mais porque estava tudo fechado, como já se tinha dito, com a excepção do café onde fora fazer a encomenda.
Usaria o charme, pois alguém lhe dissera que não falhava. Só teria que decidir que tipo de charme usaria, se o quinze, se o vinte, tudo dependendo da temperatura ambiente e do acompanhamento, pormenor não despiciendo, como se constatara com o episódio da encomenda. Talvez o charme 17,5 fosse o aconselhável, pois representava a média e no meio é que estava a virtude, era o que sempre lhe diziam, quer as vozes avisadas, quer as não avisadas, que também deviam ser ouvidas em nome do espírito democrático.
A princípio e apesar do charme, não tinha sido fácil lidar com a crise de identidade, ela própria também a viver a sua própria crise, coisa de que se suspeitava, apesar de tudo, pois o seu aspecto desleixado e desprendido, mais do que era costume, já dava pistas nesse sentido. Havia que ter cuidado e sensibilidade, por isso. Um pouco de paciência, também, nem que fosse preciso aumentar a dose de charme para, digamos, 18,5 (pois também não queria abusar e por estar convencido de que seria suficiente), provavelmente acompanhado com umas fatiazinhas de regueifa, acompanhamento muito do agrado das crises de identidade, segundo pesquisa que tinha feito na Internet, já em casa e depois de ter acendido a lareira.
Por sorte, a regueifa funcionara e o telemóvel da crise também, ao dar-lhe notícias que lhe agradavam e que se resumiam a uma vida de folia num paquete de luxo, rio acima, rio abaixo.
Quanto a si, ficar-se-ia por casa. Compostas as coisas, ainda podia ir tratar da encomenda ao café. Faria figas para que ainda houvesse feijoada...



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29 dezembro 2015

As vozes

Pensar ou falar em voz alta é uma experiência relativamente comum, utilizada até para estudar. Estabelecer um diálogo em voz alta já não é tão comum, mas acontece. Há sítios mas apropriados para este espaço de diálogo, mas a rua não devia ser um deles, embora os problemas de espaço, sobretudo nas zonas urbanas, e a ausência de uma sala própria acabem por transformar a rua num sítio onde isso pode vir a ocorrer com frequência, com os inerentes riscos, como são o da possibilidade de vir a ser atropelado, chocar com um candeeiro (se os houver), ir de encontro a uma montra (se o espaço for comercial), ou alguém questionar legitimamente o estado mental de quem está a promover «a conversa». Mesmo assim, há quem não abdique de uma troca de impressões com as vozes que gravitam na sua órbita, umas convidadas e outras por convidar, mas que aparecem na mesma, às vezes as mais interessantes, porque costumam ter outra experiência ou ponto de vista, coisa de atender quando o fórum se quer como de abertura e de exercício democrático.
Se estas manifestações verbais às vezes causam algum embaraço, sobretudo se elas ocorrem em locais ou em momentos pouco adequados a ser-se confrontado com um fórum de conversa, como são os casos de andar pela rua, preparar-se para cortar o cabelo ou fazer umas compras, por exemplo, há quem procure resolver o embaraço recorrendo a um velho truque, aprendido com o pessoal do teatro, e que consiste em falar para o bolso da camisa ou do casaco, apontando com o dedo para o bolso e dando a entender que se é um intelectual a gravar comentários ou ideias para o futuro, encontrando-se o gravador no dito bolso. Há quem compreenda e diga que sim, que já fizera o mesmo, mas que agora estavam um pouco afastados disso, talvez noutro dia. Para os que não compreendem, talvez a maioria, há os que perguntam se o gravador também dá música e qual é que é, disponibilizando-se para arranjar uns hits que podem ser ouvidos mesmo sem o gravador, mas que terá que que ser mais tarde, pois agora não estavam com muito tempo...
Apesar de habituado a ter diálogos com interlocutores imaginários, sem nome mas com voz, a frase, «Acha que é arriscado?», saiu-lhe como pergunta, lançada à laia de mote, e era suposto ter sido feita numa frequência sonora só audível por quem participava na conferência desse dia, por acaso a decorrer no cruzamento da rua de baixo com a rua de cima, muito próximo do cruzamento da rua esquerda com a rua direita, mas a que uma conjugação de factos, do domínio da Física, tinha revestido de uma sonoridade e de um simbolismo invulgar, levando a senhora, com quem se cruzara, a mudar de repente do passeio, curiosamente a comentar, ela também, num sonoro e audível «Já viu?», e dirigida a um destinatário ou destinatários não visíveis...

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28 dezembro 2015

A Ponte dos Espiões

A Guerra Fria é uma história em que se cruzam muitas histórias, como esta que é contada no filme «A Ponte dos Espiões». Muitas destas histórias, como a do filme, sabem-se ou vão-se sabendo, provavelmente nunca de forma acabada. Mas o que se sabe vai chegando para despertar o interesse ou a curiosidade, não esquecendo a incredulidade sobre muito do que aconteceu, podia ter acontecido ou poderá vir a acontecer (quem sabe?) quando os protagonistas não são propriamente aqueles de que se está à espera que venham a ter um papel preponderante no desfecho. Quem diria?

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25 dezembro 2015

O quadro negro (mas com nuances)

Quando conhecera o quadro negro, até estava bom tempo. Não tinha sido assim nos últimos dias, mas quando o encontrou era isso que se verificava: bom tempo. Esse facto levou-o a pensar como os preconceitos podem condicionar os juízos, umas vezes mais, outras menos, mas sempre qualquer coisinha. Como era contra os preconceitos, sobretudo pelo que eram e pelo que representavam, uma espécie de fruta não madura, como revelava o prefixo 'pré', resolvera aproximar-se do quadro negro e trocar algumas impressões sobre a sua vida, a apanha da azeitona, pois estávamos na época dela, e se acreditava na possibilidade de vida extraterrestre num T0, apenas com uma casa de banho e uma sala que servia simultaneamente de quarto e de escritório. Tinha consciência de que as perguntas eram um tudo ou nada difíceis, sobretudo a relacionada com a apanha da azeitona, pois tinha sinceras dúvidas sobre se o quadro negro seria adepto da cozinha mediterrânica, o que lhe parecia não ser o caso. Quanto às outras, estava mais confortável, embora mantivesse, por princípio, alguma réstia de cepticismo, coisa que era conveniente seguir, prenda de um Natal longínquo, perdido no tempo, em que tinha pedido ao Menino Jesus um ferrari, uma loura e uma morena, e tinha recebido um carro dos bombeiros que fazia «ti-nó-ni», com a indicação de frágil e que a pilha fosse substituída por uma alcalina...
O quadro negro recebeu-o bem, com afabilidade, e disponibilizou-se para a troca de impressões, salvaguardando que não se sentia à vontade para falar sobre a apanha da azeitona, coisa de que já suspeitava, mas que tinha todo o interesse em falar sobre a sua vida e sobre a vida extraterrestre no T0, preferindo, se não se importasse, centrar-se neste tópico, pois achava a sua vida desinteressante, banal como qualquer vida banal, mesmo que isso contribuísse, curiosamente, para a perpetuação de um outro preconceito, «o da banalidade da vida banal», coisa que não tinha fundamento nem sustentabilidade real, como todos os estudos de opinião e sondagens evidenciavam, descontando aqueles que eram feitos nos resorts de luxo e nuns assim-assim, em que os resultados eram ou pouco discordantes com a tendência, mas que acabavam por entrar na margem de erro. Tirando isso, os dados aguentavam-se e podiam ser citados com toda a segurança, havendo já propostas no sentido de virem a ser parte integrante da Wikipédia.
Quando se despediu do quadro negro ficou com a impressão de que muito tinha ficado por dizer. Não se surpreendia, contudo, porque as conversas são como as cerejas, se bem que estivéssemos numa época em que não abundavam ou não existiam sequer. Sobre a vida extraterrestre no T0, o quadro negro deixara algumas recomendações, sobretudo em termos de decoração, e aconselhava uma pintura com cores quentes. Ele próprio iria fazer um refresh e dar umas demãos menos sombrias. Quem sabe, ainda seria moda na Primavera.


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20 dezembro 2015

O abismo

A coisa complicou-se quando se apercebeu onde se tinha metido. Desta vez, não seria suficiente recorrer às ferramentas de que dispunha, uma corda, uma escada e um canivete, que tinham servido em situações anteriores, suspeitando que agora teria que recorrer a mais qualquer coisa, talvez do domínio do esotérico ou do sector dos efeitos especiais, se ainda estivesse de pé o contacto que estabelecera, em tempos, com uma empresa que dava os primeiros passos nesse ramo e que acabara por se especializar em fazer flores quando era preciso, com terra ou sem terra, fizesse frio ou calor, dominando a arte do abracadrabante. Não havia maneira de fugir, pois o desafio era muito grande: sondar um abismo conceptual, localizado algures. Até agora, a sua especialidade tinham sido os baixos das casas ou das águas. Neste cenário, as ferramentas acima chegavam. Para lidar com o abismo conceptual, a coisa fiava mais fino. Para começar, era mais fundo. Qualquer pessoa, mesmo não sendo do ramo, chegaria a essa conclusão. Segundo, lidava com realidades mais fluídas, como o pensamento, logo mais perigosas, porque mais instáveis. Terceiro, não dispunha de muito tempo, pois o Natal aproximava-se e ainda não tinha comprado as prendas. Iria dar uma vista de olhos, mesmo assim, pois considerava-se um profissional. Pensava que seria coisa para demorar duas horas, três no máximo. Como o triciclo estava sempre aparelhado, só tinha que preparar uma merenda e uma muda de roupa. Telefonou a perguntar aonde é que era o abismo conceptual e disseram-lhe para ir sempre em frente, coisa que fez. Quando lá chegou, tirou as ferramentas do triciclo e fez uma sondagem ao terreno. O abismo conceptual não estava à mostra, mas disso já suspeitava. Por sorte, apareceu um velhote a quem perguntou se, por acaso, teria conhecimento da existência naquele local, mais pr'a cima ou mais pr'a baixo, de um abismo conceptual mais ou menos daquele tamanho, mais metro, menos metro (com as mãos procurava exemplificar as dimensões do abismo conceptual), que lhe disseram que existia, era só para confirmar. O velhote não tinha a certeza, mas recordava-se de que, em tempos, havia para ali um poço, uma mina, talvez, que seria muito funda, mas que agora estava fechada. Que perguntasse mais à frente, no café, porque não podia ajudá-lo mais e agora tinha que ir jogar a sueca, que desculpasse. E foi à sua vida. Fez o que o velhote lhe dissera e chegou ao café, entrou, sentou-se, e pediu uma taça e uns pastelinhos de bacalhau. Quando perguntou pelo abismo conceptual, o dono do café disse-lhe que nada feito, que viesse noutro dia, pois o abismo conceptual existia, sim senhor, mas já não dava entrevistas, se não ficasse convencido que perguntasse ao próprio abismo, que estava sentado ali na mesa do fundo, a beber um fino e a comer tremoços. Mas que não estivesse com coisas, porque ele era muito susceptível! Apesar do aviso, resolveu mesmo assim abordar o abismo conceptual e confrontá-lo com a pergunta sacramental: «Você existe ou não existe?». «Tem dias - respondeu - Mas hoje não é dia».




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19 dezembro 2015

Pum!

O tiro no pé colocava-lhe um problema difícil de resolver, que rapidamente se transformou num dilema: no direito ou no esquerdo? Como não o resolveu, disparou para o ar.

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A barba

Gostava de ser fiel aos seus compromissos. Grandes ou pequenos, todos eram tratados com a dignidade e a responsabilidade que lhes eram devidos. Para não se esquecer de nenhum, tomava nota deles num papel e procurava dar-lhes sequência. Ao olhar para o calendário ficara preocupado com alguns que ainda não tinham sido atendidos, o que motivava uma reflexão sobre a voracidade e a velocidade do tempo, não sujeito a limites e ou multas de uma qualquer autoridade, andasse ela de mota ou em automóvel descaracterizado. Mas, tratando-se de um compromisso, nada mais havia a fazer do que atendê-los, fossem que horas fossem ou qual o meio pelo qual se fizessem anunciar, habitualmente por uma luzinha a piscar no cérebro, sobretudo à noite, o que se tornava um bocadinho incómodo, pois dificultava o sono e o descanso. Era o caso do seu compromisso de vir a ter uma barba como a do Pai Natal, que estabelecera como uma das metas para este ano, mas que uma arreliadora e avassaladora lista exigente de outros compromissos comprometera, embora não invalidasse nem deixasse dúvidas sobre a sua continuidade e atenção, por isso havia que fazer todos os possíveis e impossíveis para que não se falhasse. Como já se estava a uma semana do Natal, obviamente que só se poderia contar com os «impossíveis», deixando os «possíveis» para as coisas mais comezinhas, como ganhar um Nobel, por exemplo. Nada a fazer senão pôr-se a andar, pois o «caminho faz-se caminhando», como lá dizia o poeta e fica bem como tirada literária e metáfora existencial, uma espécie de «dois em um», aspecto sempre conveniente nos tempos que correm, dados às preocupações com o ambiente e com a reciclagem.
Tinha uma ideia de como as coisas se poderiam processar, mas estava indeciso quanto à metodologia e à alimentação que lhe conviria para esse fim, embora estivesse convencido de que uma série de alongamentos para as pontas dos pelos e a ingestão de hidratos de carbono não fariam mal, antes pelo contrário, e ainda ganhava tempo e músculo. Como sozinho seria difícil, resolveu consultar os ginásios da zona e procurou saber se havia algum programa específico, em horário diurno, que lhe possibilitasse vir a ter uma barba como a do Pai Natal ainda esta semana, isso era inegociável. Apesar de ter sido bem recebido em todos, desenganaram-no de forma mais ou menos diplomática, dizendo-lhe que não tinham vagas, por causa das candidatas a misses e a misteres músculos, excepto num deles, em que lhe disseram que tinham um programa específico, dado pelo próprio Pai Natal, que ali fazia um «gancho» de umas horas por mês, mas que nesta semana estava de férias, por razões óbvias. Pouco havia a fazer, portanto, pelo menos com a ajuda dos ginásios. Mas não ia desistir, era o que faltava! Mesmo que a barba não fosse como a do Pai Natal, ia continuar o programa de treinos e tentar ficar com uma como a de um intelectual, que são mais ralas, mas as pessoas compreenderiam.

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18 dezembro 2015

Nevoeiro

_ Que noite, hem?
_ Não está mal. Eu gosto deste tempo. Faz-me bem à alma.
_ A mim não. Dá-me cabo dos ossos. Estou desejoso que acabe.
_ Por mim, pode continuar. Ainda pode melhorar, tenho esperança. Quando chegar a altura, logo saberei.
_ Não estou a perceber: ainda quer o tempo com mais nevoeiro do que o dos últimos dias?!
_ Sim, é isso mesmo. Como lhe disse, gosto deste tempo e faz-me bem à alma. Tenho é que esperar pelo momento ideal.
_ Mas, o momento ideal p'ra quê?
_ Para que apareça e revele o futuro... Está para breve, só lhe digo...
_ Está a brincar comigo, certamente... Vai aparecer onde, não me diz?
_ Ainda não é hora. Se fosse, eu sabia. Terá que ter paciência.
_ Agora reparo: você não tem frio, com essa armadura e esta humidade? E as caneleiras ou lá que é isso, não lhe fazem mal à circulação?
_ O cavalheiro continua a não perceber... É pena, mas isso diz-me que ainda não é o momento certo. Vou ter que esperar mais um pouco... É pena, só lhe digo.
_ Você deve ser artista, está visto. Com a fardeta que traz e com o que diz... É do teatro, não é verdade?
_ Só o da vida e o da esperança, meu bom homem. Sou um símbolo. Não me está a conhecer, pois não?
_ Bem, p'ra falar verdade... não estou, não senhor. Não me quer dar uma pista, um nome, talvez?
_ Você conhece a história, a verdadeira?
_ Sim, pode dizer-se que mais ou menos. Sei quem foi o Afonso Henriques. Também me lembro de algumas datas, mas às vezes já me baralho... E você, conhece-a?
_ Não só a conheço, caro amigo, como participei nela e, de certo forma, ainda a condiciono...
_ Ah, então é historiador ou jornalista, não é verdade?
_ Não propriamente... Sabe, há muitos anos eu fui rei...
_ Mas olhe que já não há rei há muito tempo... Não será o amigo que, desta vez, está baralhado?
_ Não, sei o que digo. Vou dizer-lhe o nome pela qual me conhecem: Sebastião.
_ O Encoberto? Porque é que não disse logo?
_ Não sei... talvez por timidez.
_ Não tenha medo, homem! Quer um bocadinho de aguardente?
_ Um chá, talvez. Caía-me melhor. Acha que posso aparecer hoje e anunciar o futuro?
_ Se fosse a si, não aconselhava. Sabe... o nevoeiro ainda não está no ponto e daqui a nada joga a selecção. É melhor não.
_ Acha mesmo?
_ Acho.
_ E consegue prever quando é que o nevoeiro estará bom? Convinha que o aparecimento não demorasse muito, pois receio que já esteja encoberto há muito tempo. Qualquer dia, mesmo não estando nevoeiro, já não me reconhecem...
_ Pois... é um problema. Mas com isto das alterações climáticas é uma incógnita. Sabe em que mês estamos?
_ Dezembro, talvez.
_ Dezembro? Estamos em Julho! Não vê que amanhã está prevista neve!... Nevoeiro do bom, daquele que está à espera, só lá pr'a Maio. Por isso, até lá nada feito! Quer vir ver o jogo?
_ É melhor não. Marquei aqui encontro com o Camões, o do poema épico, sabe quem é?
_ Ora não! Bom trabalho me deu, o malandro, por causa das orações. Dê-lhe cumprimentos.

(in Estava Lá, Mas por Acaso, pp. 37)

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13 dezembro 2015

Lenda(s)

O manuscrito viera ter-lhe às mãos quase por sorte, resgatado a um destino banal em direcção ao caixote do lixo. Não lhe ligou muito, a princípio, porque tralha daquela era o que abundava lá por casa (qualquer que fosse a divisão), daí a necessidade de se fazer, ciclicamente, uma actualização do espaço disponível, à laia de crivo crítico ou, o que era mais frequente, de arranjar espaço para nova carrada de tralha escrita ou ditada, que também havia.
Sobre o manuscrito em causa, em concreto sobre a sua existência e sobre quem era o autor, a história já tinha alguns bons anos, ciclicamente recuperada nos círculos onde se movimentava, sobretudo após cenas de copos e reflexões mais ou menos (im)pensadas sobre o sentido da vida. Seria (supostamente) sobre a vida e as histórias de um repórter sui generis, chamemos-lhe assim, que trabalhava à peça para um conjunto de jornais locais, às vezes regionais, sob pseudónimo, e nas horas livres da sua actividade rotineira, pormenor que fazia questão de realçar a quem pensava adquirir os seus serviços, nunca se comprometendo com a regularidade ou a periodicidade da publicação. Como tudo se passou há algum tempo (supostamente), e as coisas se processavam num registo que mais parecia o de uma lenda do que uma coisa que aconteceu, registada e comprovada por testemunhas, as evidências e ou testemunhos do que quer que fosse relacionado com o repórter e as suas peças eram fugazes ou exuberantes, dependendo da qualidade ou do rigor de quem as dizia ou reproduzia, habitualmente depois de as ter ouvido algures, se bem que também houvesse quem garantia que as teria lido, mesmo que já não se lembrasse onde e editado por quem. Nos seus círculos de proximidade, por isso, tudo o que se referia ao assunto era designado por «A Lenda», tradução portuguesa de The Legend, brincadeira que alguém do círculo (já não se lembrava quem) mais dado às referências anglo-saxónicas, sobretudo após a ingestão de uns whiskys (em português «uísques»), resolvera introduzir neste universo de cumplicidades, mais não fosse para dar um toque de classe e de mundanidade, aligeirando a atmosfera destes encontros e dando-lhes a importância que mereciam, ou seja, pouca ou nenhuma.
Mas sabia-se muito pouco da personagem e do seu manuscrito, se é que ele existia ou se alguma vez fora escrito. Apesar disso, havia alguns pormenores concordantes, sobretudo em relação ao pseudónimo utilizado, Prensa Libre, que alguns apontavam como uma referência simbólica, talvez um pouco subversiva, e outros referiam como uma alusão à proveniência geográfica do autor, possivelmente da América Latina ou, hipótese talvez mais provável, da Galiza. Já sobre o título do (suposto) manuscrito as opiniões dividiam-se, Histórias Mirabolantes - um testemunho, segundo uns, Estava Lá, Mas por Acaso, garantiam outros. Coincidentes eram também as conclusões sobre o tipo e a natureza das histórias, que eram «do arco-da-velha», expressão informal e popular que melhor as caracterizaria, perfeitamente adequadas ao seu público-alvo, com extensão variável, às vezes apontamentos ou vislumbres, outras mais longas, com descrições desenvolvidas e pormenorizadas sobre os locais, os momentos e os protagonistas, alguns deles tão incríveis que dificilmente se acreditará que tenham existido, mas que foram dados à vida e à fama, mesmo que localizada, e se transformaram em património imaterial.
Uma lenda pode ter vários significados. Daí provém a sua riqueza, talvez, ou o seu fascínio, seguramente. Às vezes tem-se sorte (ou será lenda?) e o destino bafeja-nos. Terá sido este o caso, vistas as coisas à distância que o tempo e a experiência possibilitam, eles também partes importantes das lendas, conhecidas ou a conhecer, sem esquecer a maneira como se constroem (que são a maioria, note-se).
Uma lenda pode sempre contar-se como uma história, com o princípio que todos conhecem ou já ouviram: «Era uma vez...». A fonte pode ser diversa, mas aqui vamos pôr os «pontos nos is» e atribuir-lhe a nascença num manuscrito (o que é verdade, mas nunca fiando...). Para o bem ou para o mal, escolha-se o lado que se quiser, o relato que sustenta a lenda não aponta para protagonistas ou factos que possam ser comprovados seguramente, mas que é possível tenham ocorrido da forma que se descrevem, incluindo a sua existência física, num tempo ou num espaço mais ou menos determinados.
E o manuscrito (salvo do caixote) intitulava-se, precisamente, Estava Lá, Mas por Acaso.




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Voltinha

A vespa parecia-lhe atraente e a pedir para dar uma voltinha. Resolveu montá-la e experimentar umas manobras recentes, agora que tinha tirado a carta. Acabou por se dar mal com a experiência, pois o ferrão não era para brincadeiras.

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08 dezembro 2015

Promoção (do diálogo)

_ Temos que promover o diálogo.
_ E acha isso bem?
_ Claro. É o caminho certo.
_ E como é que se promove?
_ Com promoções, é claro.
_ Daquelas com descontos?
_ Se tiver que ser. Interessa é os resultados.
_ E se não forem bons?
_ Aumentamos a promoção.
_ Do tipo: «Agora a 50% - só hoje»?
_ Talvez não tanto...
_ E não receia que isso possa confundir as pessoas?
_ Confundir, como?
_ Confundir o diálogo com os saldos, por exemplo.
_ Não me parece que haja esse risco. Nós promovemos o diálogo. Não há qualquer confusão.
_ Bem... sendo assim: dê-me dois diálogos. Mas não os quero com borboto, pode ser?

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06 dezembro 2015

Aforismo

Se tiveres dois pontas, um direito e um esquerdo, não te esqueças do avançado de centro.

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Lição

Pelo menos uma vez na vida, a intriga resolveu jogar limpo. Demorou o seu tempo, é certo, mas arrependeu-se.

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Minha Mãe

Sendo uma realidade ficcionada, o cinema costuma ser uma fórmula razoavelmente eficaz para permitir a aproximação a muitas das situações que afectam ou estão relacionadas com o universo e o quotidiano pessoal. Há realizadores que o conseguem ou seguem de forma mais permanente, com uma sensibilidade maior ou menor, mas interessante e potenciadora de algumas reflexões, sobretudo na parte que diz respeito ao ser e estar de cada um, quaisquer que sejam os contextos ou as vivências, ou talvez por causa disso. Nanni Moretti insere-se nesta linha e o seu filme mais recente, «Minha Mãe» (Mia Madre), no original, é mais um exemplo. Belíssimo!


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05 dezembro 2015

Ligeireza

Fartara-se de dar voltas à cabeça e não conseguia encontrar uma solução ou um caminho. Não chega a ser um problema invulgar, este que se caracterizou de forma brevíssima na primeira frase. Havendo cuidado com as voltas à cabeça, sobretudo por causa da torção do pescoço, situações como esta são comuns à maioria dos mortais, pois dos imortais não rezam estas histórias. Problema comum, portanto, com mais ou menos enredo ou episódios, uns mais rocambolescos do que outros, ou nem por isso. Simplesmente, às vezes as coisas não são assim tão simples, podendo dar lugar a problemas maiores (e esses, convenhamos, são os mais difíceis, até porque mais pesados), apesar das voltas e dos (mais do que certos), torções no pescoço...
Não deixa de ser curiosa uma reflexão destas, logo pela manhã (mas que também pode ocorrer ao final do dia), digna de figurar no rol dos disparates encartados ou das iluminações preclaras - bonito, hem?- e que passam a constar nos cardápios das melhores estantes ou da conversa de salão, com uma flûte de champanhe na mão ou um copo, tipo tulipa, de um vinho afiançado e aveludado, embora não se descarte do cenário um ambiente mais informal e descontraído, very tipical, por sinal, e dado à miscigenação cultural e fonética, como ocorre numa honestíssima tasca ou num boteco fora de horas.
Estava-se, pois, nestas ou noutras cogitações (supondo-se que as havia), quando entra pelo espaço adentro a grande amiga ligeireza, companheira de tantos de nós, mais próxima ou mais distante, mas sempre presente, mostrando-se como ela é e sabe como é, descarada e divertida, acenando a uns e a outros, sempre com um toque de encantamento e de fascínio, embora alguns (e algumas) não gostassem, pois não ficava bem e havia que se dar ao respeito... A todos, sem excepção de género, a ligeireza mandava passear, porque o tempo estava bom e havia que aproveitar, coisa que demoraria cerca de 5- 10 minutos, no máximo, pois tinha consciência de que cada um tinha o seu próprio ritmo e que não se podia forçar. Mas era suficiente.
Quanto aos problemas e à ausência de caminhos, não havia crise. Com um bocadinho de jeito e alguma paciência (pouca, note-se, pois convinha não abusar), as coisas acabavam por se resolver por si, naturalmente e sem muito esforço, coisa que, estava provado, era o principal responsável pelas torções do pescoço. E despedia-se como chegara.
Ficassem bem.
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04 dezembro 2015

Quero mudar o mundo. O que é que tenho de fazer?

Primeiro, ver se tem espaço na habitação; segundo, escolher bem a empresa das mudanças.

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