Custava-lhe a reconhecer, mas estava cada vez mais dependente do telemóvel. O que tinha, comprado há anos, dera definitivamente «o berro», pelo que se impunha tentar arranjá-lo ou, se fosse inviável, adquirir um novo. Como se encontrava na sua terra, procurou aí resolver o problema.
Na terra, era considerado por todos como uma «boa alma»: afável, disponível e solidário. Vivia, há muitos anos, em ambiente urbano, mas continuava a manter e a orgulhar-se das suas raízes provincianas. À semelhança de outros, escolhera viver na cidade por razões de natureza profissional e, feitas as contas, vivia na urbe há mais anos do que alguma vez vivera no espaço de nascença e de crescimento. Mas regressava lá, por vezes. Como acontecia agora.
Os regressos eram vividos de uma forma ambivalente, num misto de atracção e de distanciamento, procurando reproduzir o que de bom e agradável tinha vivenciado e esconjurando o que de menos bom ou desagradável também tivera oportunidade de conhecer ou presenciar. Gostava da sua terra, é certo, mas olhava-a já com outros olhos, mais frios e distanciados... Voltemos ao telemóvel.
Precisando de ajuda e estando na terra, era habitual solicitar conselho a quem vivesse lá. E foi o que fez.
Não ficou surpreendido com a indicação e a natureza da ajuda que lhe aconselharam: o recurso a um «filho da terra», profissional de recursos firmados e afirmados, afiançavam-lhe. Apesar de afastado do quotidiano local há vários anos, ainda conhecia os códigos vigentes, como este, uma espécie de «santo e senha» para a resolução de problemas: infalível, eficaz e prova inequívoca de amor pela terra - do interessado, do intermediário e do prestador de serviços. E ai de quem se atrevesse a pôr em causa esta evidência!... E lá foi a «boa alma».
A experiência não foi famosa, nem recomendável. O «filho da terra», quiçá por excesso ou impreparação profissional, fulminou a nossa «boa alma», ele também um «filho da terra», assim como o intermediário, com uma série de contrariedades, impossibilidades e não sei mais que outras «dades», todas elas, no entanto, coincidentes no severo diagnóstico fatal: nada a fazer, mesmo com o recurso ao «filho da terra» especialista e especializado.
Boquiaberto, mas não resignado, a «boa alma» indagou se mais alguém, mesmo não sendo «filho da terra», o poderia ajudar a solucionar o seu problema. Por acaso havia e foi quem valeu à «boa alma».
Num ápice, mesmo não sendo «filho da terra», dos puros e de papel passado, a «boa alma» encantou-se com o serviço e a resposta pronta. Já tem um novo telemóvel.
Não deixou de ser um «filho da terra», mas por causa de algun(s) «filho(s) da terra» ainda deixa de ser uma «boa alma»...
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