Ghost writer (memórias de escritor-fantasma)
Era um escritor-fantasma (ghost writer), detentor da cédula profissional 3001.
Entrara numa multinacional de ghost writer, a Ghostwriter Inc.,por selecção curricular. Fora um processo anódino e vulgar,
de resposta a um anúncio. De invulgar só o endereço de correio electrónico,
de domínio etéreo.com. Poderia ser uma pista, é certo, mas para ele não
o fora. Pelo contrário, pois pensava que estava a responder a uma empresa
do sector da música. Estava enganado, como facilmente constataria na
entrevista...
Começou como começam todos os estagiários: por baixo e a ganhar o mínimo. Monetariamente era um retrocesso, mas tinha cumprido o sonho: ser escritor, ainda que fantasma e anónimo. Esta é a sua história: curta, seca e incisiva.
A professora da escola não se enganara: iria ser escritor, só não sabia de quê e quando. Mas o jeito estava lá, dissera ela. Por onde andou, entretanto, não fazia ideia. A escrever não foi, a tocar guitarra também não. Muito menos a jogar a bola ou a ser estrela de cinema. Mas lá apareceu um dia, parece, ao responder ao anúncio. Estava perro, notava-se, mas lá se conseguiu safar. E com uma redacção sobre a Primavera, desta vez em tons cinzentos. Gostaram e marcaram-lhe uma entrevista. A meio da manhã. E que correu bem, supõe-se, pois deram-lhe logo uma secretária, um bloco e um computador, dizendo-lhe «Bem-vindo!». Não fizeram vénia, pois eram informais, e prepararam-no para o que se seguiria: escrever o que aparecesse, em part ou fultime, e com cumprimento dos prazos. Podia ser qualquer coisa: redacções, biografias, novelas, romances, sermões, discursos para jantares e vivas para ceias e congressos. Aceitou, claro. Quanto a poesia iriam ver, mas não era bem o negócio da casa. À cautela, no entanto, começou a treinar quadras. Pícaras, mas não só. Custavam-lhe mais, mas divertiam-no. Com sorte, talvez montasse um negócio paralelo, tendo em vista o mercado universitário, que estava florescente e começava a apostar nas teses em verso, uma novidade a despontar. Teria de ver como se desenvolveria.
Primeiro trabalho: fazer uma redacção para um aluno do preparatório sobre um tema de pecuária. Por formação e hábito, escolhera a vaca. O primeiro rascunho não foi bem aceite. Foi chamado à supervisão e teve de se justificar. Lá o deixaram apresentar uma segunda versão, mas com uma advertência: que cuidasse do estilo e arejasse mais as coisas. A princípio não compreendeu, mas depois fez-se luz, fazendo saltar a vaca dos prados verdejantes para o mundo das start-up e deixou a questão do ruminar e do leite para outra ocasião... Desta vez não desgostaram, mas o professor que a avaliou deu-lhe um suficiente menos, o que deixou a família descontente e uma recomendação ao patrão dele de que não estavam interessados nos seus serviços, que lhe arranjassem outro futuramente.
O trabalho seguinte correu melhor, graças aos deuses. E também ao assunto, note-se. Tratava-se de escrever uma colectânea de cartas em tom de epístola pós-moderna, com possibilidade de adaptação aos requisitos do twitter e das redes sociais, de forma geral. Teve um sucesso mediano, mas sustentado, responsável pelo aumento das conversões. Foi positivo e benéfico para a sua carreira.
Mas o salto maior ocorreu no domínio das biografias, sobretudo nas daqueles que se faziam passar por ascendência e pergaminhos finos, com profusão de tios e tias, eventos e mais algumas outras coisas desses mundos, inacessíveis por natureza e pedigree.
Agora estava na área dos elogios fúnebres, matéria que é sensível e potencialmente crítica, sujeita a mais convulsões do que um tremor de terra, mas muito apetecível para familiares e próximos dos falecidos ou falecidas. Florescente, também, atendendo ao país, cada dia mais velho. Até começou a escrever o seu. Desta vez, em nome próprio.
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