Preliminares
Não se lembrava de onde lhe tinha vindo a ideia. Já tentara lembrar-se, mas era escusado. Ainda pensou em telefonar à vizinha, com quem tinha ido numa excursão a Espanha, pois suspeitava que isso pudesse ter acontecido no intervalo para o lanche (servido com tapas de queijo e de presunto), antes de fazerem o sorteio do faqueiro e das almofadas com penas de pavão. Lembrava-se bem do velhote, careca e de bigode, que tinha ganho o sorteio, a exclamar, cheio de contentamento, que a prenda seria «para a minha (sua) senhora!», a banhos numas termas, pois estava um bocadinho aflita das articulações. Mas de ter tido a ideia continuava a não se lembrar, e a vizinha também não, tendo esta sugerido que talvez tivesse sido na feira de artesanato, ali para os lados do edifício da junta, numa tenda montada para um casamento, mas que também podia servir para baptizados, convívios e exposições.
Não se lembrava, era um facto, mas não deixaria que isso o demovesse. Usaria isso como um artifício (nunca se sabe se não viria a ser útil), acreditando que a sua boa estrela o guiaria a bom porto, mesmo que a viagem fosse por terra ou pelo ar (teria que abrir o espírito, pressupunha). Se não se lembrava mas tinha que lhe dar uma origem, nem que fosse por uma questão de credibilidade ou da obtenção de uma certidão de nascimento (sempre necessária, nos tempos que correm), resolvia-se já a questão e proclamava-se urbi et orbi: «é agora!», precisamente às 11h12, hora do computador, 11h15 no relógio de parede, diferença horária que, mais do que resultante de diferentes acertos, era a prova necessária para que, mais tarde, os biógrafos se digladiassem com fervor, produzindo e atirando páginas, edições críticas, notas de rodapé e recensões uns aos outros. Assim seja. Na altura certa veremos.
Contudo, teria que ir com calma. A escolha do ritmo era fundamental e ainda teria que fazer um chek-up, não fosse faltar-lhe o fôlego. Também teria que fazer umas pesquisas, umas de superfície, outras em profundidade, mas aqui já tinha encomendado o equipamento, sempre com espírito de missão e não esquecendo o da precaução, acerca do qual tinha lido umas coisas e que se lhe afigurava como essencial ao êxito do que se propunha levar a cabo.
Duma coisa já tinha a certeza: o princípio deveria ser de acordo com o «princípio da Lego», o da adaptabilidade das peças, que tanto serviam para um barco de piratas, uma casa, um carro de corridas ou o space shuttle.
Sobre a trama já tinha mais dúvidas, mas procuraria não se precipitar. Caso se precipitasse, então que fosse uma coisa mais ou menos em grande, tipo arranha-céus (mas com poucos andares, por causa das vertigens), e com umas pinceladas de drama, só um cheirinho, nos capítulos mais densos (provavelmente só um, eventualmente esticado até um capítulo e meio, se a maré estivesse a dar). Como ideia não lhe parecia mal, havia só que encontrar o tom. Mas tudo o que ficasse abaixo de uma reflexão sobre a condição humana não lhe parecia digno, uma vez que se tratava de uma primeira obra. Teria que ver. E isso passava pela escolha e construção das personagens.
Tinha já duas ou três esboçadas, mas ainda pouco nítidas. Não sabia se isso se devia à perspectiva ou à falta de lentes, que estavam a precisar de ser mudadas. Também queria que elas representassem um mundo, perplexo e em mudança constante, muitas vezes angustiadas sobre qual a melhor dieta, o programa de fitness ou sistema táctico para contrariar equipas que jogam fechadas. Mas procuraria evitar o pessimismo. No íntimo, estava preparado para um final feliz e (quiçá) redentor.
Mas antes que lhe passasse o entusiasmo, era conveniente passar à execução. Fiel ao espírito do lego, começava com uma, duas, três possibilidades de parágrafo inicial. Já que tinha que começar por algum lado, começava por aqui, pelo princípio, como sempre lhe tinham aconselhado. Depois de escritos, logo veria qual o parágrafo que lhe soava melhor. Às vezes era uma questão de intuição, outras de ouvido. Logo se veria e, em caso de dúvida, far-se-ia uma votação entre o público interessado, que seria pouco, numa espécie de crowdfunding, que em vez de dinheiro dá palpites e recebe agradecimentos na ficha técnica ou na lista das colaborações. Ala, que se faz tarde!
Hipótese 1: «O dedo apresentava um corte, superficial, um pequeno lanho na pele, sem sangue, levando-o a pensar na vida que escolhera há muito tempo. Noutros tempos, um vulgar sopro de ar quente, exalado da sua boca, serviria para compor um mundo, quanto mais um pequeno corte no dedo, que nem sangue produzira. Era impossível voltar atrás e refazer tudo. Continuaria a ser médico. Ser soldador não passara de um sonho. Que acabara. Para sempre.».
Hipótese 2: «O dedo apresentava um corte, superficial, um pequeno lanho na pele, sem sangue, levando-o a pensar na vida que escolhera há muito tempo. Noutros tempos, um vulgar sopro de ar quente, exalado da sua boca, serviria para compor um mundo, quanto mais um pequeno corte no dedo, que nem sangue produzira. Era impossível voltar atrás e refazer tudo. Continuaria a ser enxertador. Ser médico não passara de um sonho. Que acabara. Para sempre.».
Hipótese 3: «O dedo apresentava um corte, superficial, um pequeno lanho na pele, sem sangue, levando-o a pensar na vida que escolhera há muito tempo. Noutros tempos, um vulgar sopro de ar quente, exalado da sua boca, serviria para compor um mundo, quanto mais um pequeno corte no dedo, que nem sangue produzira. Era impossível voltar atrás e refazer tudo. Continuaria a ser engenheiro. Ser uma glória dos estádios não passara de um sonho. Que acabara. Para sempre.».
Comentário: a dinâmica da escrita trai-nos sempre, é dos livros . Para além
de um livro com reflexões sobre a vida, está visto que também será sobre
vocações. Para primeira obra é capaz de ser mau ou muito mau, mas seguramente
bom para testes de orientação profissional.
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