31 janeiro 2016

Preliminares


Não se lembrava de onde lhe tinha vindo a ideia. Já tentara lembrar-se, mas era escusado. Ainda pensou em telefonar à vizinha, com quem tinha ido numa excursão a Espanha, pois suspeitava que isso pudesse ter acontecido no intervalo para o lanche (servido com tapas de queijo e de presunto), antes de fazerem o sorteio do faqueiro e das almofadas com penas de pavão. Lembrava-se bem do velhote, careca e de bigode, que tinha ganho o sorteio, a exclamar, cheio de contentamento, que a prenda seria «para a minha (sua) senhora!», a banhos numas termas, pois estava um bocadinho aflita das articulações. Mas de ter tido a ideia continuava a não se lembrar, e a vizinha também não, tendo esta sugerido que talvez tivesse sido na feira de artesanato, ali para os lados do edifício da junta, numa tenda montada para um casamento, mas que também podia servir para baptizados, convívios e exposições. 
Não se lembrava, era um facto, mas não deixaria que isso o demovesse. Usaria isso como um artifício (nunca se sabe se não viria a ser útil), acreditando que a sua boa estrela o guiaria a bom porto, mesmo que a viagem fosse por terra ou pelo ar (teria que abrir o espírito, pressupunha). Se não se lembrava mas tinha que lhe dar uma origem, nem que fosse por uma questão de credibilidade ou da obtenção de uma certidão de nascimento (sempre necessária, nos tempos que correm), resolvia-se já a questão e proclamava-se urbi et orbi: «é agora!», precisamente às 11h12, hora do computador, 11h15 no relógio de parede, diferença horária que, mais do que resultante de diferentes acertos, era a prova necessária para que, mais tarde, os biógrafos se digladiassem com fervor, produzindo e atirando páginas, edições críticas, notas de rodapé e recensões uns aos outros. Assim seja. Na altura certa veremos.
Contudo, teria que ir com calma. A escolha do ritmo era fundamental e ainda teria que fazer um chek-up, não fosse faltar-lhe o fôlego. Também teria que fazer umas pesquisas, umas de superfície, outras em profundidade, mas aqui já tinha encomendado o equipamento, sempre com espírito de missão e não esquecendo o da precaução, acerca do qual tinha lido umas coisas e que se lhe afigurava como essencial ao êxito do que se propunha levar a cabo. 
Duma coisa já tinha a certeza: o princípio deveria ser de acordo com o «princípio da Lego», o da adaptabilidade das peças, que tanto serviam para um barco de piratas, uma casa, um carro de corridas ou o space shuttle.
Sobre a trama já tinha mais dúvidas, mas procuraria não se precipitar. Caso se precipitasse, então que fosse uma coisa mais ou menos em grande, tipo arranha-céus (mas com poucos andares, por causa das vertigens), e com umas pinceladas de drama, só um cheirinho, nos capítulos mais densos (provavelmente só um, eventualmente esticado até um capítulo e meio, se a maré estivesse a dar). Como ideia não lhe parecia mal, havia só que encontrar o tom. Mas tudo o que ficasse abaixo de uma reflexão sobre a condição humana não lhe parecia digno, uma vez que se tratava de uma primeira obra. Teria que ver. E isso passava pela escolha e construção das personagens. 
Tinha já duas ou três esboçadas, mas ainda pouco nítidas. Não sabia se isso se devia à perspectiva ou à falta de lentes, que estavam a precisar de ser mudadas. Também queria que elas representassem um mundo, perplexo e em mudança constante, muitas vezes angustiadas sobre qual a melhor dieta, o programa de fitness ou sistema táctico para contrariar equipas que jogam fechadas. Mas procuraria evitar o pessimismo. No íntimo, estava preparado para um final feliz e (quiçá) redentor.
Mas antes que lhe passasse o entusiasmo, era conveniente passar à execução. Fiel ao espírito do lego, começava com uma, duas, três possibilidades de parágrafo inicial. Já que tinha que começar por algum lado, começava por aqui, pelo princípio, como sempre lhe tinham aconselhado. Depois de escritos, logo veria qual o parágrafo que lhe soava melhor. Às vezes era uma questão de intuição, outras de ouvido. Logo se veria e, em caso de dúvida, far-se-ia uma votação entre o público interessado, que seria pouco, numa espécie de crowdfunding, que em vez de dinheiro dá palpites e recebe agradecimentos na ficha técnica ou na lista das colaborações. Ala, que se faz tarde!
Hipótese 1: «O dedo apresentava um corte, superficial, um pequeno lanho na pele, sem sangue, levando-o a pensar na vida que escolhera há muito tempo. Noutros tempos, um vulgar sopro de ar quente, exalado da sua boca, serviria para compor um mundo, quanto mais um pequeno corte no dedo, que nem sangue produzira. Era impossível voltar atrás e refazer tudo. Continuaria a ser médico. Ser soldador não passara de um sonho. Que acabara. Para sempre.».
Hipótese 2: «O dedo apresentava um corte, superficial, um pequeno lanho na pele, sem sangue, levando-o a pensar na vida que escolhera há muito tempo. Noutros tempos, um vulgar sopro de ar quente, exalado da sua boca, serviria para compor um mundo, quanto mais um pequeno corte no dedo, que nem sangue produzira. Era impossível voltar atrás e refazer tudo. Continuaria a ser enxertador. Ser médico não passara de um sonho. Que acabara. Para sempre.».
Hipótese 3: «O dedo apresentava um corte, superficial, um pequeno lanho na pele, sem sangue, levando-o a pensar na vida que escolhera há muito tempo. Noutros tempos, um vulgar sopro de ar quente, exalado da sua boca, serviria para compor um mundo, quanto mais um pequeno corte no dedo, que nem sangue produzira. Era impossível voltar atrás e refazer tudo. Continuaria a ser engenheiro. Ser uma glória dos estádios não passara de um sonho. Que acabara. Para sempre.».

Comentário: a dinâmica da escrita trai-nos sempre, é dos livros . Para além de um livro com reflexões sobre a vida, está visto que também será sobre vocações. Para primeira obra é capaz de ser mau ou muito mau, mas seguramente bom para testes de orientação profissional.

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30 janeiro 2016

Neurónios (en passant)


Costumava puxar pelos neurónios ao fim-de-semana. Ao contrário da maioria, que costumava fazê-lo durante a semana, consigo isso só ocorria aos sábados e domingos, momentos em que dispunha de algum tempo para isso, descontando as pausas para outras coisas. Era um programa pensado, baseado nas melhores técnicas de treino e adaptado às suas características psicossomáticas. Tratava-se de uma opção, fundada na Constituição, sem fiscalização de constitucionalidade. Mas com os seus problemas, disso também não se livrava.
O primeiro deles era o do horário de trabalho, uma questão sensível, mais a mais porque a família conta e as transmissões televisivas de futebol estão, cada vez mais, omnipresentes, sugando muita energia e paciência aos neurónios, que têm de vir de algum lado, pois, como diz o outro ou a outra, «não há almoços grátis». Admitamos que sim, que «não há almoços grátis», mas que talvez possa haver lanches ou jantares, até porque são menos e agora o IVA vai descer, mas não para as bebidas, o que acaba por não ser mal para os neurónios, porque ficam moles e se deixam dormir, mas que na opinião deles é um atentado aos seus direitos, liberdades e garantias, o que se lhes reconhece e às vezes dá jeito.
Associado ao horário de trabalho, as negociações com os sindicatos (dos neurónios, está bom de ver), difíceis de agendar porque eram muitos, uns representando uma secçãozita, outros mais abrangentes, com sinapses e interligações entre si ou fora de si, mobilizados, combatentes e representativos (sempre), uns a dizer que sim, outros a dizer que não, e outros a dizer que talvez, que logo se veria e os plenários a fazer também diriam, mas todos unânimes em concordar que o trabalho ao fim-de-semana teria que ser muito, muito bem discutido e analisado, votado, sufragado, aclamado e pago como horas extraordinárias, pois os neurónios eram trabalhadores como os outros, não havendo qualquer discriminação. Alguns, mais radicais, advogavam mesmo o fim do trabalho dos neurónios aos fins-de-semana, pois, segundo eles, os neurónios também tinham família, gostavam de futebol e de beber uns copos, e muitos se envolviam em actividades de apoio à comunidade, sobretudo aos fins-de-semana, que (toda a gente o sabe, incluindo os patrões dos neurónios) é o período da semana em que essas actividades se podem desenvolver e dar frutos, como uma qualquer volta (en passant) pelas terras do país testemunhava e acabava por confirmar.
Não menos importante do que as anteriores, a questão da alimentação dos neurónios era outra dor de cabeça, esta sim com maior incidência no fim-de-semana, pois era um campo fértil para um desbragamento de soluções e de receitas, umas com sal e outras com açúcar, com mais ou menos hidratos de carbono ou de fibras, com sopas ou só vegetais, a favor da feijoada ou do prato vegan, com ingestão de líquidos ou de bebidas só para ter no copo, assim à laia de enfeite e como cenário de festa, boa vida e de glamour
Até que, aqui chegados, aparece o Poirot e diz: voilá! E o problema das «pequenas células cinzentas» se resolve e o livro se fecha, decretando-se o fim-de-semana para os neurónios, com efeitos imediatos. Bom patrão, este.

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Livro

Os Surfistas, de Rui Zink.

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24 janeiro 2016

Historiazinha

Já não tinha dentes. Mas tinha unhas. Como precisava de dinheiro, propôs à Fada dos Dentes a troca da mercadoria, esperando um milagre. Que aconteceu. Mas o juro foi alto.

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23 janeiro 2016

1x2

Era um fervoroso adepto da teoria da derrota em derrota até à vitória final. Mas cansou-se, como em tudo na vida, e deixou-se tentar pelo empate. Teve azar e perdeu-se.


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17 janeiro 2016

O dom


Ter um dom incomodava-o. Chegou a pensar marcar uma consulta, mas só lhe garantiam vaga daí a sete meses. Como não tinha que dar a resposta logo, mas passados cerca de dois minutos, uma vez que a chamada fora transferida para outro telefone, resolveu arriscar e dizer que não, pois considerava-se discriminado por não lhe dizerem que só daí a dois anos, como acontecia com a maioria, tivessem dom ou não. Recusou, por isso, e manteve o dom que o incomodava. Depois se veria e talvez uns chás ajudassem como mezinha.
Fora uma boa decisão e os chás eram agradáveis, com sabor refrescante e um travo a frutos silvestres, por acaso com antioxidantes, muito recomendados nos meios onde se movimentava. Mas, quando o efeito passava, o dom continuava a incomodá-lo, algumas vezes levando-o a um desespero que tinha facetas contraditórias, umas entendidas como bucólicas outras como sanguíneas, habitualmente menos, é certo, mas sempre presentes e com resultados mais evidentes, pois costumam extravasar para o exterior, que nem sempre estava limpo e cuidado, mas era o que havia. Tinha que pensar numa solução para o seu caso, chamasse-se dom ou não. E, no seu caso, chamava-se.
Quem o conhecia dizia que isso era de família, por acaso muito conhecida na zona e com influências na capital, resignando-se a viver e a lidar com uma realidade que os ancestrais também conheceram, umas vezes mais, outras menos, não se conhecendo qual a opção mais saudável, pois ainda vigorava um código que se pautava pelo silêncio, mas sempre audível, incluindo pelos surdos. Para quem visse ou fosse mudo, quieto ficasse e acalmado se sentisse que o código também chegava e lhes dizia respeito, não fossem pensar que a luz não era para todos, o que se sabia que era falso e o sol comprovava todos os dias.
Não se conformando com tal destino, acabou por emigrar e fazer fortuna no mercado da compra e venda de gambozinos, certificados e com denominação de origem, reabilitando uma prática ancestral, entretanto caída em desuso, mas a que o seu génio inventivo deitou mãos, patenteando as sacas como património imaterial.
Entretanto, está rico e promoveram-no a ilustre. Para os amigos (e amigas), que são muitos e muitas, continua a ser «o Dom».

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16 janeiro 2016

Toleima(s)


Sempre fora dado à toleima. O seu era um exemplo de que podia fintar-se o destino. E a finta não devia ter sido má, pois passara a vida a ganhar com ela, constituindo um percurso próprio, eivado de dificuldades, é certo, mas certificado por diploma e reconhecido por selo branco. Contudo, isso não era o mais importante, agora que se preparava para sair do circuito da toleima. Só mais um esforço e uma pequena investigação, aí na casa das 3500 páginas, depois de revistas e cortadas as 7483 iniciais. Pouca coisa, como se vê, mas suficiente para ocupar uma ou duas tardes, sem dispensar a sesta e um cafezinho. Com um bocadinho de sorte, ainda a tempo de uma partidinha de bilhar, até às 25 carambolas, pois gabava-se de ser um profissional consciente e com nome no mercado. Ainda iria passar por casa da tia, que ficava na zona rica da terra, e ensinar o papagaio a dizer palavrões, com o toque gourmet do sotaque de zona exclusiva, prenda com que iria presentear a tia, de quem gostava muito, mas também para lhe fazer uma pequena pirraça, pois isso era a sua imagem de marca, a sua «marca de água», em linguagem tipográfica.
Pelo meio, tentaria também desvendar o mistério que lhe tinham proposto: o de as ninfas serem quentes, mas se lhes gelarem os pés.
Era um mistério dos complicados, pois remontava à Antiguidade, modo clássico, mas que teria que ser resolvido como os outros, os mistérios normais e não clássicos, mais próximos de si e do seu tempo, curiosamente a dar sinal de frio, contrariando o imediatamente antecedente, que se tinha caracterizado com um cheirinho de Primavera, ainda que em Dezembro, mas fácil de explicar com as alterações climáticas, que de mistério já nada tinham…
Suspeitava que o enigma teria a ver com o esotérico (queria acreditar que sim), até porque lhe dava jeito que assim fosse e conhecia as idiossincrasias de quem lhe tinha proposto o mistério. Mas como em todos os mistérios, presentes ou passados, a resposta estava mesmo ali à mão, sob a forma de manta, gostasse-se ou não do artifício. Seria pois uma manta a chave para o mistério. Mesmo na Antiguidade, pois já as havia. Era mandar um mail às ninfas.

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O leitor


Nunca fora um grande leitor. De livros, deve dizer-se. Doutras coisas também não, mas com os livros era pior. De jornais sim, mesmo que lhe borrassem os dedos. Uns mais do que outros, é certo, mas sempre qualquer coisinha, pois o material e as técnicas eram mais ou menos comuns, e à rotativa nenhum escapava. Gostava de ler jornais, apesar das mãos borradas. Mas resolvera mudar isso, até porque estava farto de sujar as mãos. Por isso, ia ser leitor de livros. E fez um plano. Como se esperava, o plano falhou por falta de tinta. Não admira, pois estava toda nos dedos.

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