No ponto

Foi subtilmente empurrado. Apesar das escoriações na testa, a utilização do advérbio de modo foi considerada em conformidade. Podia ter sido pior, garantiram-lhe, não fossem os anos de casa e a devoção para com a confraria. Ouvido isto, o açúcar quase se comoveu e presenteou os presentes com um rebuçado.

Negócio

Comprara as pérolas a porcos por bom preço. Apesar de se estar na época de saldos, estranhou que o preço fosse tão em conta. Resolveu investigar. Não foi preciso andar muito, nem perguntar a muitas pessoas: as pérolas a porcos eram mesmo baratas, pois nem para estrume serviam, disseram-lhe. Como era um empreendedor e tinha faro para o negócio, imediatamente se apercebeu do nicho de mercado. Voltou lá e comprou mais umas sacas. Montou a loja e deu-lhe um nome à medida e gosto da época: Pérolas a Porcos Gourmet.

Desapoiado

O míssil não teve aconselhamento e transviou-se.

Indício

Estava armada até aos dentes e denunciou-se.

Inocente

Matou o tempo a dormir. Não foi condenado.

Pedra Filosofal

Encontraram-na?
Está aqui: http://youtu.be/LrU24xm2h-Y

Aforismo

Aponta a virtude, mas não uses o dedo do meio.

Não falo e não percebo uma língua, mas gosto muito dela, sobretudo estufada e com ervilhas. Posso aderir à comunidade?

Pode, mas só se tiver uma bomba de gasolina no quintal.

Fechar portas

O assunto foi encerrado. Procedeu-se ao inventário dos bens e disseram-lhe para ir à segurança social tratar do subsídio de desemprego. Sobre formação, depois diriam qualquer coisa.

Prós e contras

O livro era bom e ficou agarrado. Começou por não ligar, ao princípio, mas quando quis assoar-se é que se deu conta do problema. Pediu ajuda. Trouxeram-lhe um detergente e disseram-lhe para o embeber, o que recusou, pois daria cabo dele. Apresentaram-lhe o vapor como solução, mas também não se mostrou interessado, não fazia mal, acabaria por se habituar e pouparia nos lenços.

À mesa

Olhava-se para ele e metia pena, escanzelado que estava: era um avançado com fome de golos. Já há muito tempo que não metia nenhum e só os saboreava em sonhos. Bons os tempos em que arrotava com um ou dois, se possível bem passados e com pimenta, à matador, trocando temperos e empurrões com os defesas ou os guarda-redes...
Disseram-lhe para lavar as mãos e sentaram-no à mesa. Quando veio a travessa dos golos quis logo empanturrar-se, mas aconselharam-no a comer poucos. Pediu vinho, mas incentivaram-no a beber água, limpar a boca e a pedir desculpa pelos arrotos.

Desespero

_ Não sei que fazer.
_ Já telefonou?
_ Já.
_ E então?
_ Nada.
_ E na net?
_ Também já. Não serviu p'ra nada.
_ Se quiser, tenho uma panaceia...
_ E ela morde?

Lázaro

Não tinha onde cair morto. Sempre que julgava ter encontrado um lugar, rapidamente se desenganava. Desistiu e continuou a viver.

Vizinhos

O pecado morava ao lado. Resolveu bater-lhe à porta. Quando esta se abriu, limpou os pés e disse boa noite.

Cortes

Fez um corte. Não tinha importância, concluíram. Voltou a fazer outro. Não ligaram. Ao terceiro, perderam o jogo... de sueca.

Espectador sentado VIII

A Alemanha é campeã do mundo e é um vencedor justo.

Músicas e canções

As dos Beatles.

Suspeitas

Dirigiu-se à biblioteca e entrou, confiada. Entregou o livro e seguiu em frente, passando por uma estante, onde um curioso anúncio, escrito à mão, a fez parar. Desconfiada do que lhe dizia, olhou em volta e pegou num dos livros, que o dito anúncio convidava a pegar e a levar, caso desejasse. Aquele em que pegou tinha sido escrito por uma autora que lhe dizia muito (e que ela pensava que também diria muito a outras pessoas), levando-a a suspeitar da sua sorte. Esconjurou este receio (não muito, há que dizê-lo), e voltou a olhar para o livro, cujo título desconhecia, e folheou as primeiras páginas em busca de uma síntese ou de um sinal esclarecedor sobre de que se tratava. Lá conseguiu essa identificação e perguntou a um dos funcionários presentes se aquilo era mesmo assim, para levar, o que lhe confirmaram. Aceitou a sua sorte e saiu, contente pelo ganho e prenda inesperados. Mas a sua essência era o que era. Voltou a suspeitar e a lembrar-se de um rifão (que usava frequentemente) que lhe lhe recordava que se deve desconfiar da fartura quando se é pobre, o que nem era o caso. Não se importou com a contradição e reteve a parte do desconfiar da fartura... Lá acabou por sair, mesmo assim.
«Eu não acredito em bruxas», ouviu dizer a alguém com quem se cruzou. Pensou nisso e não pôde deixar de sorrir. Ainda pensou em responder-lhe, mas achou que não valia a pena. Olhou para o céu e saboreou o azul que a deslumbrava. Montou na vassoura e despediu-se.

Uma outra forma de música

_ Ando à procura de uma pauta.
_ Está no lugar certo. Procure à vontade.
_ Já procurei, mas não encontro.
_ Posso ajudar?
_ Não sei... talvez, sim.
_ Alguma música, compositor?...
_ Não sei bem... É mais uma ideia que tenho... Se calhar, não há...
_ Sossegue: se for música e pauta, há de certeza. Dê lá mais pormenores.
_ Está bem. É pauta para música de ouvido, tem alguma?
_ É só escolher: pop, rock, música sinfónica, outra?
_ Estava a pensar mais numa coisa para principiantes, de quem está a aprender, está a ver?
_ Estou, sim senhor. Tenho aqui duas, uma com o básico e outra já mais avançada. Diga-me lá, já sabe o que quer fazer?
_ Ainda não sei bem, mas é mais como hobby.
_ A do básico, então. O instrumento, o ouvido, é bom?
_ Já é antigo, mas estou-lhe afeiçoado.
_ Faz bem. Antes antigo do que de plástico. Herança?
_ Não, leilão.
_ Muitos lances?
_ Nem por isso. É um mercado ainda pouco atractivo.
_ As coisas estão a mudar. Vai ver que a música de ouvido ainda vira moda, com intérpretes, concertos e... festivais!

Livro

O Império dos Pardais, de João Paulo Oliveira e Costa.

Memories

A recordação alojara-se no cérebro e não sabia como expulsá-la. Pediu ajuda, não lha deram; quis indemnizá-la, acharam pouco. A coisa resolveu-se por si.

Servicinho

_ Venho encomendar uma morte.
_ Vem buscar ou é para entregar em casa?
_ Depende. Cobram mais, se for a casa?
_ Não. Está incluído no serviço, mas tem que nos avisar com 24 horas de antecedência.

Sintomas

Sentia um formigueiro nos dedos. Não uma picada ou um ardor, mas um formigueiro: a crescer, contínuo, incessante. Ficou surpreendido, até porque não estava à espera. Quase não acreditava, mas as evidências lá estavam, sob a forma de formigas: pequeninas, pretas, num permanente vai-vem.

Livro

L. Ville, de Fernando Sobral.

Carlos do Carmo

Há dias, ganhou um Grammy pela carreira. Não é para todos, mas merecidíssimo, carregando-se (de propósito) no grau do adjectivo. Para quem ainda tiver dúvidas, a versão que se reproduz abaixo:
http://youtu.be/kh0xN10cIvA

Espectador sentado VII

Flash(ada) - Alemanha 7 - Brasil 1.
Flash 2 - Uma história simples para um resultado invulgar: a Alemanha é uma equipa e o Brasil não é, nem nunca foi, como se tornou evidente ao longo do Campeonato.
Flash 3: Klose tornou-se o melhor marcador de sempre em mundiais. Participu em 4 e tem 36 anos. O anterior (Ronaldo) estava na bancada, vestido, gordo e a comentar.Também aqui, se quisermos, podemos ver a história de um «célebre» (agora e sempre) 7-1.

Opiniões

Depois de muito pensar, mudou de opinião. Ao princípio, não gostou. Depois, habituou-se e ajeitou-se. Começou por escolher uma opinião que não lhe caía bem nem mal, apenas o agasalhava. Mais tarde, também consequência das mudanças no corpo, passou para uma mais conservadora, mas que lhe assentava bem. Reformou-se com uma opinião mais nova. Sinal dos tempos, disseram-lhe. Talvez fosse, assentiu. Era a sua.

Protesto

A manifestação era silenciosa. Mas deixou de o ser quando o manifestante deu um «ai!», ao pontapear uma pedra, e lançou uma palavra de ordem. Veio a polícia e prendeu o «ai», que se recusou a ser retirado e manifestou solidariedade com a palavra de ordem, que jazia estendida na calçada, zonza e combalida. Atiraram outras, umas mais perto do que longe, que foram dispersadas com gás e não foi passear com o cão, que estava a tossir muito.

Estatuto

Subiu na vida e logo desceu, pois tinha vertigens.

Decoração

Olhou para as paredes da sala e decidiu mudar os quadros. Fez uma primeira tentativa, que não correu bem, e teve que fazer uma segunda, que já correu melhor. Mas a definitiva foi a terceira, que voltou a colocar tudo como estava no início. «Se calhar, o problema é da sala», pensou. Tentou a casa de banho. Pegou nos quadros e colocou-os.

Armadura

Despiu-se de preconceitos. Começou a ter frio e arrependeu-se.

Arredondar

Empurrou-se o problema com a barriga. Mas a coisa não se fez sem debate, mais não fosse porque não havia concordância sobre o tipo de barriga para o fazer: muito ou pouco avantajada ou privilegiando a forma. Após horas de discussão, optou-se por uma solução de consenso, típica do fórum em questão, conciliando a característica do volume com a exigência da forma. Onde não foi possível o acordo foi quanto às formas de penalização para incumpridores. Das duas propostas apresentadas, uma que apontava para a amostragem de cartões amarelos ou vermelhos e outra que apontava para a extinção pura e simples do problema, não foi possível a nenhuma delas a obtenção da maioria de votos, quanto mais o consenso... Ficando para reunião posterior a decisão definitiva, até lá vigorará uma solução de compromisso, que é a de meter a cabeça na areia. O acordo foi rubricado por todas as  barrigas participantes excepto uma, ausente por se encontrar de regime.

Tamanhos

Dirigiu-se ao local para encomendar a alma. Não tinha muito a certeza do que estava a fazer, apenas uma ideia, embora vaga. Tirou uma senha, sentou-se e aguardou que o chamassem. Quando isso foi feito, ainda pensou voltar para trás, mas desistiu, pois isso implicaria ter que passar o tempo de outra maneira, coisa que não lhe apetecia. Sendo assim, lá se resignou. Chegou ao guichet e preencheu o formulário, mas rapidamente ficou bloqueado por uma das questões, logo na parte inicial do impresso. Pediu ajuda à funcionária, que o sossegou e lhe disse para escrever «não sabe/não responde». Mais tarde, já mais calmo, pensou na dita questão e comentou que não fazia sentido que apenas pusessem como opções 'XL' e 'XXL' para o tamanho da alma, pois isso era altamente discriminatório para pessoas como ele, que usava o 'S'...

Culpado

Dava muitos pontapés na gramática, mas nunca tinha sido pronunciado. Não que nunca tivessem feito queixa, apenas que nunca tinha sido acusado. E a lei era o que mandava. E os pontapés na gramática continuaram. Por muito tempo e até um dia. Dia esse que demorou, mas chegou. Levado a juízo, o crime era por demais evidente. E se dúvidas houvesse, ele próprio as desmentiu quando, perguntando-lhe o juiz como se considerava, respondeu, convicto: «In-nocente!».

Livro

O Tímido e as Mulheres, de Pepetela.

Presente

Era uma pessoa generosa e ofereceu-lhe a lua. Comovida, recusou, pois não ficava bem com os móveis.

Imperdoável

A coisa passou-lhe ao lado e nem lhe disse bom dia.

Linguista

Tropeçou na língua, uma e outra vez. Fartou-se e cortou-a.

Fórceps

Arrancou a vitória a ferros. Sem epidural e após prolongamento.