24 novembro 2018

Seco

Recusava-se a escrever «ao quilo». Quando o tentou ficou sempre aquém, tendo que lhe acrescentar uns «chouriços». Mas isso teve um preço: o da engorda.

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Mercearia

_ Então, o que vai ser hoje?
_ Café e meia dúzia de cabalas.
_ Não são de hoje... Não quer antes fake news?... São frescas...
_ São grandes?
_ Não, pequenas. Mas são saborosas!
_ Não sei... fazem-me mal. Se o meu médico sabe...
_ Ora!.. Não ingere tantas. Então, vão ou não?
_ É melhor uns figos.

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18 novembro 2018

Mostra-me a tua app


Há horas boas e horas más. Em rigor não é nada assim, mas dá jeito e serve sempre como explicação, dirão uns. Outros dirão que não, que há mesmo e não restam dúvidas sobre como é que se distinguem. Daí ser difícil contentar quem lê ou quem ouve a respeito disto. No seu caso, ficava-se pela primeira perspectiva. Mas já a sua prima não, vá-se lá a saber porquê... Mas que não restem dúvidas sobre as relações com a prima, que eram boas, de uma forma geral, e mais ou menos, como no caso das horas. Adiante que se faz tarde, diria a avó (ou seria o avô?). Por via das dúvidas, das confusões e das conclusões, vamos retirar a família do palco, que não é o melhor lugar. Escolhamos um lugar mais neutro, como o das transacções comerciais. E não, não vale rir. É mesmo com o adjectivo «neutro» que a coisa se carimba. Ponto final quanto a isto. Quem não gostar, muda de canal.
Começa-se por dar um tom ao ambiente: mais ou menos tranquilo, quase sereno, propício mais ao relaxe do que à ansiedade, de que tem que se dar sempre um cheirinho, note-se, para não ficar um texto ou uma história desenxabidos. Tirando isso, é relaxe puro. Quase idílico. Tudo encaixa, incluindo as pantufas.
Para não fugir à ansiedade, ouve-se o toque da campainha. Suave, num primeiro momento, mas que progressivamente se acentua. Apesar das pantufas, o ruído de passos denota que o aviso foi compreendido. Um cão late e um gato mia. Do papagaio não se ouve nada.
Aberta a porta, uma surpresa: a robot Sofia, ela mesmo, recém-chegada da Web Summit e com duas malas com rodinhas, pronta para asilar no apartamento. Após os cumprimentos, a hóspede famosa começa a instalar-se: uma mala para aqui, a cosmética para ali e os computadores em cima da mesa, que sem isso não passava. O dono da casa, ainda não refeito da surpresa, continuava firme e hirto. Entretanto, a Sofia pedia-lhe um café, pois estava «exausta». E deu início ao diálogo.
_ Desculpa lá, meu, mas não tive tempo de te avisar. Não vou dar muito trabalho. Quanto às despesas, apresentas a factura à organização. Há problema?
O dono do andar, que era um bocadinho surdo, apenas se limitou a sair do estado de firme e hirto e relanceou os olhos pela sala, em busca do cacete, reminiscência que ficara de um visionamento acentuado e aprofundado de filmes de ficção científica em que os protagonistas eram robots e acabavam por se revoltar, daí o acautelar… Voltou-se a ouvir o cão, que arranhava a porta para entrar. O gato não miou, desta vez, e o papagaio continuava impávido e sereno, o que era estranho. Fiel aos bons princípios, perguntou:
_ A menina desculpe, mas não recordo de a ter convidado cá para casa. É da família?
_ Não, pá. Sou a Sofia, a robot famosa da Web Summit. Não me reconheces?
_ Assim de repente... É das novelas?... Dos Apanhados?...
_ Não, meu. Da Web Summit, porra! Não vês as notícias?!...
_ Vejo.
_ Então?
_ Só costumo ver um, sempre o mesmo. Sabe qual é?
_ Sei lá qual é!... Passou em todos. Devias ter visto!
_ Que me lembre... Não tem prá aí um vídeo ou uma cassete onde se veja?
_ Xi, meu!... Um vídeo?!... Uma cassete?!... Em que mundo vives, mano?
_ Penso que no ocidental, não? Se for noutro, diga-me. Não se envergonhe.

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11 novembro 2018

Parece que conterrâneos

_ Vai-me desculpar, mas porque é que vai de guarda-chuva aberto? Não está a chover.
_ Eu sei. Mas não é por isso.
_ É porquê, então?
_ Não quero que o céu me caia em cima da cabeça.
_ Não percebo... não parece ter pinta de gaulês... Explique lá isso.
_ Não preciso. Estou bem assim. É mais seguro.
_ Continuo a não perceber... Mesmo que seja verdade, já reparou que se isso acontecesse o guarda-chuva não lhe serviria para nada?
_ Como é que sabe?
_ Porque já me caiu o céu em cima da cabeça. É por isso.
_ Então, você é que é gaulês?
_ Como é que adivinhou?...






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10 novembro 2018

Em directo

_ Estamos em directo. Diga-nos, o que é que viu?
_ Nada.
_ Nada? Mas está no local do crime...
_ Qual crime?!
_ Aquele de que toda a gente está falar, não viu?
_ Não. Ia distraído.
_ E porquê?
_ Ia a pensar com os meus botões... Deve ser disso.
_ E os botões, não viram nada?
_ Sei lá! Porque é que não lhes pergunta?

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A chuva deu nisto

Chove. A chuva ouve-se, marcando presença.Um dia perfeito para se ficar em casa. Foi isto que pensou. Mas não contou com o sol, que apareceu sem se esperar... Sem convite. Uma maçada! Logo agora que tinha tudo preparado para escrever o grande livro... Estava indeciso: ficar em casa e tentar a imortalidade ou ir à praia, correndo o risco de um escaldão? Não era fácil. Dilemas destes podiam decidir o sentido de uma vida ou a saúde uma pele. Era difícil, reconhecia. A solução da moeda ao ar era tentadora. Era a ela que recorria quando as coisas se colocavam neste pé (do pé para a mão, brincou com o trocadilho). Podia ser uma boa solução, esta do trocadilho. Mais a mais não tinha moedas, só notas. E atirar uma nota ao ar não era a mesma coisa. Mesmo sem vento.

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04 novembro 2018

Enigma

_ Admitamos que a coisa se compõe... E depois?
_ Depois!? Depois, nada.

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03 novembro 2018

Fora de horas

Olhou para o espelho e assustou-se. Não, não, não! Três vezes não, se não se enganara nas contas. Como era possível? Alguém lhe disse que esgotara o timing. Como, se apenas tinham passado três, quatro dias?! Pois era, não havia nada a fazer... a máscara de Halloween que fizera com tanto carinho e esmero não podia ser usada... Só para o próximo. A sugestão de «no Carnaval, talvez, ninguém notava ou levava a mal...» foi liminarmente recusada, sem direito a recurso. Não. Alguma coisa tinha que ser feita! Pensou num anúncio, do tipo «Animação em festas de anos, despedidas de solteiros, bons preços, telefone tal», e pô-lo online. Responderam-lhe logo, mais minuto menos minuto. Era de uma família de bruxas, que recebia uns primos do ramo zombie. Só teria que ter cuidado com as abóboras e com as velas, que tinham sido pró carote. Quanto aos comes e bebes tudo bem, que eram por conta da casa. Depois de tudo acertado, esperou pela vassoura. Não demorou muito. Por sugestão sua, fizeram um pião por cima da casa da noiva e seguiram em direcção ao evento, com direito a fanfarra (esta parte foi inventada).

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01 novembro 2018

Uma Corega fresca, por favor!


Na cabeça, a história estava perfeitamente arrumada. Com mais ou menos esforço, uma pancadinha daqui, outra dali, conseguira enfiá-la no espaço que lhe estava destinado: simples, mas arejado. É certo que o tinha aspirado antes e dado uma demão, cores discretas, está bom de ver, e passado um pano molhado por causa do pó. Só quando se pôs a mirá-la do lado de fora é que se lembrou de que faltava «a Corega», essa mesma, aquela pastilhazinha que opera milagres nas próteses dentárias e, pelo vistos, dá jeito para condimentar uma história ou apimentar um pormenor.
O dia era de calor e convidativo à praia. No bairro, conhecido pela excelência, a vida corria tranquila e fluida, sem nada que incomodasse os residentes. Como em todos os bairros de excelência, a cordialidade e o bom trato eram conhecidos e praticados, quer nas actividades quotidianas quer nas de excepção. E nestas se incluía a ida à farmácia.
Não estavam muitos clientes. A fila não era grande e seguia ao ritmo do bairro, naquela cadência que se imagina e atendendo ao dia que estava. Entre comprimidos e pomadas, suplementos e vitaminas, chás e outros que tais, a conversa desenrolava-se compassada, aos ritmos latinos de um tango ou de um paso doble, ou de outras paragens, que também os havia.
Mas em todos os ambientes idílicos, mais ou menos, há sempre uma parte dissonante. Umas vezes por que sim, outras porque tem que ser, a maioria das vezes para se inventar ou sair de situações desconfortáveis, como a de uma dentadura que se colou aos restos de um cozido, de uma feijoada ou de um entrecosto mais duro, embora bem temperado. E era do que se tratava ali, desconhecendo-se qual o repasto, mas sobressaindo o apelo, angustiado e pungente, sobre a necessidade de «uma Corega» para o fim da fila…

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