31 outubro 2015

A panca


Nascera com panca e morreria com panca, muito provavelmente. Não se sentia privilegiado com isso, sendo levado a pensar que era mais coisa do destino, com bilhete marcado para as filas da frente, por causa da vista e do enquadramento. Poderia fugir ou renegar esse desígnio, mas, por sorte ou por azar, ele acabaria por lhe bater à porta, anunciando-se ao intercomunicador como presente e disposto a entregar a encomenda, neste caso a panca propriamente dita, com ingredientes escolhidos a dedo e acompanhado de bebida, dependente da promoção em vigor. Assim como assim, o melhor era aceitar e seguir em frente, com direito a fazer umas curvas de quando em vez, testando a perícia como numa gincana. Caso se espetasse ou ficasse empancado, o remédio era continuar e encomendar outra panca, que as havia e a preços muito em conta. Com um bocado de sorte, coisa útil neste domínio, ainda ganhava uma na taluda ou, no pior, como terminação, compensando o esforço e o investimento. Até restaria espaço para uma tirada poética, estando-se inspirado, ou para uma proclamação, caso o jeito fosse para o melodramático. Em nome da panca.

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Sentido da vida/Ingrediente

Só quando olhou para o prato de ervilhas com ovos escalfados se apercebeu de que a sua vida fracassara. Custava-lhe a aceitá-lo, mas não havia mais nada a fazer: o esquecimento do presunto revelara-se fatal. Quando, em desespero de causa, quis inverter a situação com o recurso a bacon era tarde e a estrela Michelin já se fora.

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25 outubro 2015

71

Cenário: Belfast, Irlanda do Norte, 1971. Para um primeiro trabalho de longa-metragem, que rica e surpreendente peça, agarrando e transportando o espectador lá para dentro, não o deixando sair. Para a adrenalina, bem bom. Para a reflexão, idem aspas, que estes cenários e temática, comuns na palavra conflito, são propícios a exercícios arriscados e audazes, sempre no limite (quantas vezes transposto...), do crime e da justiça, da queda ou da redenção. Há que tomar nota do realizador,Yann Demange.

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Palavras


Tinham-se-lhe acabado as palavras. Ainda pensara telefonar e encomendar algumas, mas acabara por se lembrar de que o serviço só funcionava para pizzas e take-away, que não era bem a situação em que se encontrava, pois tinha lanchado e jantado bem. Não se tratava, pois, de fome, domínio do corpo, como toda a gente sabe, mas de alimento para a alma, coisa mais fina e sensível, quase do domínio do etéreo, mas dado a quebras de tensão e angústias diversas, numa estreita relação com o peso da alma, prévio à ida a um ginásio e cumprimento de programa de treino localizado, com ingestão intensa de líquidos e moderada de hidratos de carbono, necessários, apesar de tudo.
Como se começava a ver (vide parágrafo anterior), os sintomas da falta de palavras eram já visíveis, não tendo funcionado a solução de recurso de outras situações: uma chávena de chá de tília com uma colher de mel, mais vocacionada para os resfriados, é certo, mas que costumava funcionar nas situações de falta de palavras, sobretudo quando tudo estava fechado e não dava muito jeito sair de casa, vestir o casaco ou o impermeável, pegar no carro ou ir a pé. Não, assim não.
Vencidas a preguiça e o desconforto, irmãs do diabo em situações como a que se está a tentar descrever, a solução é mesmo dar «corda aos sapatos» (botas também servem, estando frio ou a chover), com cuidado para não se ir muito longe, pois os níveis de açúcar estão em baixo e o batimento cardíaco está arrítmico. Com um bocado de sorte ainda se encontraria uma loja de conveniência aberta, se entretanto não desapareceram, coisa que não podia garantir porque já não ouvia falar delas há muito tempo. Também, das outras vezes que lá tinha ido, o que queria comprar era uma garrafa de vinho e alguns condimentos, coisas necessárias para uma patuscada, não se lembrando se alguma vez lá tinha ido para adquirir palavras, mas quase tinha a certeza que não. Já que lá tinha que ir, aproveitava para trazer mais uns jornais e uns filmes, embora ainda tivesse uns restos. Na dúvida, era melhor abastecer-se. Mesmo que conseguisse arranjar as palavras, não havia problemas quanto à validade dos filmes. O mesmo já não podia dizer dos jornais, que tinham um prazo de validade menor, sendo aconselhável, por isso, trazer menos exemplares.
Mas a preocupação era com as palavras e com o vento, que podia levá-las… para longe. Antes de sair, tinha que consultar a meteorologia e ver se previam vento. Não queria ser apanhado por um tornado, agora que o clima parecia avariado e estranho e o anticiclone já não era o que era. Tinha que ter cuidado, por isso. E também com o dióxido de carbono, por causa do efeito de estufa. Decidira-se por ir a pé, por causa disso, e também pelo simbolismo, que é uma palavra bonita e que fica bem, assentando como uma luva. Não se previa vento.

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24 outubro 2015

Tenho dois governos, um direito e um esquerdo, mas não se falam. O que é que faço?

Marque uma reunião do condomínio.

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23 outubro 2015

Bolsos


_ Vejo que mantém as mãos nos bolsos. Está com frio…? Ou a guardar algum segredo…?
_ Não é bem um segredo, pois é de Polichinelo…
_ Muito bem. E pode saber-se qual é?
_ Vou dar-lhe duas pistas.
_ Diga lá.
_ Primeira: só está num dos bolsos. Segunda: exprime uma vontade maioritária.
_ Não é fácil… Não me quer dar mais pistas?
_ Não. Vai ter que se virar.
_ E se eu não quiser…?
_ Problema seu. As pistas estão aí. Puxe pela cabeça e tire as conclusões. Não é difícil…
_ Já que é assim… Será uma maioria…? E no bolso esquerdo…?
_ Como vê, não era difícil… Quando é que posso assinar?
_ Tenha calma. O procedimento não costuma ser esse… Já reparou que também estou com as mãos nos bolsos…?
_ Agora que o diz… sim, por acaso tinha reparado. Não dei grande importância, devo dizê-lo. Será que é você que está com frio…!? Ou está a guardar um segredo…!? Não leve a mal, é apenas uma piada…
_ Não tem problema… Uma boa piada dá sempre jeito… Olhe, não quer também adivinhar porque é que estou com as mãos nos bolsos…?
_ Porque não!?... Dê-me lá umas pistas!
_ Aí vão, já que não se importa… Primeira: num bolso está uma coisa e noutro outra. Segunda: de qualquer delas, não gosta.
_ Oh, diabo!... Assim é difícil… Não dá mais nada?
_ Parece que não… Vai ter que se virar… Estava a brincar consigo! Como vê, também sei fazer piadas…
_ Que maçada!... Logo agora, que tudo parecia correr tão bem… Por acaso não tem um lenço…?
_ Como é que adivinhou!?
_ Sei lá. Saíu-me…. Mas diga-me: o lenço é tabaqueiro?
_ Não: é de despedida.

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Fulminante


Fulminá-la com o olhar era o objectivo. Não correu bem. Por causa do estrabismo, acertou-lhe numa orelha e queimou um bocadinho o cabelo. Acabou por se safar. O brinco é que não, pois era pechisbeque.

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18 outubro 2015

A viagem

Já há muito tempo que não viajava. Hoje resolvera fazê-lo, mas não contava ir para longe. Olhou para o relógio e viu que ainda teria tempo de apanhar a estrela cadente das 20h47, pois a das 20h02 já não conseguia. Estava indeciso se levaria os óculos ou não, pois o trajecto passava perto do sol e havia uma paragem para comer uma bucha, mais ou menos a meio. Não podia esquecer-se do papel higiénico e de levar duas batatas, daquelas boas para plantar, pois tinha que estar prevenido para a falta de papel nas áreas de serviço e para a eventualidade de ter que ficar à espera que o fossem buscar, caso a estrela cadente empanasse, ocasião em que aproveitaria para plantar as batatas, colhendo-as depois, por causa das proteínas, como vira fazer num filme.
Iria aproveitar para desfrutar a viagem, procurando não se ralar muito com a situação que se vivia na galáxia, que não devia ser famosa (a fazer fé nos últimos desenvolvimentos), pois subsistiam dúvidas se não seria preciso outro resgate, mais uma vez provocado pelo consumo imoderado de fantasias e de cenários mirabolantes. Até por isto, nada melhor do que fazer uma viagem para descontrair, com muito sol à mistura e cocktails exóticos, daqueles feitos com castas vulcanas. Com um bocado de sorte ainda dava para passar pelas brasas e acordar com um aroma de brisa de asteróide, muito bom para a artrite e para os estados de alma. Calhando, ainda lhe podia sair a sorte grande na tômbola, à hora da bucha, que era sempre um momento dos mais esperados: o sorteio do presunto!

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17 outubro 2015

Perdido em Marte

A capacidade para sobreviver em ambiente hostil é uma característica muito valorizada por e nos seres humanos, constituindo, muitas das vezes, o traço de distinção entre o êxito ou o fracasso de uma iniciativa ou empreendimento. Num ambiente como o das viagens espaciais ou o da exploração de outros planetas, essa característica hostil é, por maioria de razão, um dos dados do problema mais acentuados, propícios à idealização ou ficcionização de soluções ou de cenários possíveis, habitualmente transpostos para a literatura ou para o cinema conotados com a ficção científica, palco do agrado de muita gente.
O filme Perdido em Marte alimenta-se deste húmus, apresentando-nos um exemplo do que poderia ser, de acordo com a ideia e guião dos autores, o quotidiano e a sobrevivência de um astronauta no planeta vermelho, dado como morto e deixado para trás na sequência da evacuação de emergência da missão de exploradores de que fazia parte, e que tem que fazer pela vida (literalmente) para se ir aguentando e esperar que haja condições para que o resgatem, recorrendo a tudo o que sabe e aprendeu, num exercício de adaptação ao que há e ao que se arranja, fazendo lembrar o velho MacGyver ou, mais recentemente, as séries de televisão, do tipo «Sobrevivência», em que alguém, despojado dos recursos e utensílios da vida protegida, é lançado num território ou num ambiente não familiar, hostil ou perigoso.


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Aforismo

O voto é a arma do povo. Se ainda não o fez, tire a licença.




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Altas pressões

A discussão tomou caminhos imprevistos, não se sabendo aonde iria parar. Quando perdeu o fôlego, sentou-se na berma e esperou que acalmasse. Foi a sua sorte, pois estava à beira de uma fúria. Se tivesse continuado poderia ter entrado em parafuso, tipo tornado, e feito saltar a tampa. Não aconteceu e o alerta foi levantado.

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Acto falhado

Arregaçou as mangas, mas arrependeu-se. Devia era ter arregaçado as calças, pois a água começara a subir.

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O labirinto


Perdera-se no seu labirinto. Não deixava de ser irónico, mas real. Logo agora, que tinha idealizado uma festa para a sua inauguração… Com tanta coisa na cabeça, não surpreende que se tenha esquecido do fio em casa, que é um utensílio útil e indispensável para quem é possuidor de um labirinto, como todos os proprietários sabem, mesmo em regime de time-sharing. Não se deixaria ir abaixo, no entanto, e aproveitaria para pensar na decoração, pois tinha algumas ideias e gostaria de as discutir com a decoradora, que chegaria mais tarde e a quem ia telefonar para confirmar e para que trouxesse uma meada de fio (já agora). Também estava à espera do pedreiro, com quem tinha combinado uns retoques nos muros e a abertura de uma janela de oportunidade virada a sul, por causa da temperatura, e não a norte, com mais luz, apesar de tudo, que era a ideia da decoradora, ainda influências da universidade onde se formara. Previa que as coisas se tornassem um pouco difíceis, pois a decoradora era de ideias fixas, gostando muito de invocar os seus diplomas e trabalhos anteriores, muitos deles em casas de famílias conceituadas, possuidoras de labirintos finos e requintados, ao pé do mar ou na montanha, ideais para retiros em sociedade ou isolados, com brunch e spa, tudo incluído. Quanto ao pedreiro não devia haver problemas, devendo-lhe ser igual que a janela abrisse a norte ou se projectasse para sul, para ele era igual e só lhe interessava o dele, de preferência sem factura, pois costumava esquecer-se do livro e do número fiscal, uma vez que era o sócio que tratava disso e agora não podia falar com ele, porque não tinha trazido o telemóvel. Teria que se ver como é que as coisas iam evoluir. Contando que aparecesse…
Relativamente ao Minotauro, continuava indeciso. Tivera já oportunidade de trocar impressões com os vizinhos a este respeito, mas ainda não tinha chegado a conclusões. Para uns indispensável, para outros um anacronismo, o certo é que ainda não tinha decidido nada, sabendo apenas que não queria gastar muito dinheiro. Talvez a decoradora conhecesse algum ou tivesse um em carteira, que não fosse muito caro e bebesse pouco, condição imprescindível para se terem garantias de segurança, pois, como se sabe, os minotauros têm cornos e a inspecção do trabalho costuma ser muito rigorosa com as condições em que têm que laborar. Sobre este aspecto, um vizinho, que era ganadeiro, sugeriu-lhe que os cornos do minotauro pudessem vir a ser embolados, como os dos touros, hipótese que rejeitava desde já (embora ainda não se tivesse decidido se ia ter um minotauro no seu labirinto), uma vez que achava que os minotauros não deviam ter os cornos embolados, mas sim manterem as pontas visíveis, para afugentar os intrusos. Caso se decidisse, iria pensar se, em vez de um, não seria melhor um casal de minotauros, para criação.
Iria perguntar à Ariadne, a decoradora, o que é que achava.

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