Heróis em latitude e longitude algures (escolha você)
Sendo assim, há muitos tipos de heróis ou heroínas (olá, se há!). A maioria ficará anónima e deles ou delas não se saberá mais, se vier a saber-se, do que memórias esparsas e difusas de factos, momentos, ocasiões, mais ou menos épicas, podendo vir a dar lugar a um apontamento, uma nota de rodapé, um epigrama, uma inscrição, uma referência nos álbuns, no nome de um canelho (curiosa, esta memória do canelho, que apareceu ao correr da pena, e atira para uma outra, esta sim, mais vívida: canelha! Um dia, quando as memórias forem aparecidas - quando, meu Deus!... - terei que me debruçar sobre esta confluência entre a escrita e a memória. Mas adianto já um cheirinho - mal não fará, penso...).
Estamos em plena Primavera. Se fosse dado ao bucolismo ou à poesia, diria qualquer coisa a propósito das fragrâncias, das cores e dos seus matizes, sobre vida e tudo o que lhe costuma estar associado. Mas sou da prosa e do jornalismo, da tentativa de compreender e procurar explicar o mundo, mesmo que o entorte para melhor o perspectivar. Por isso, há que ter cuidado com os devaneios reflexivos: não é para isso que me pagam os editores e os leitores esperam... Voltemos, pois, ao tema dos heróis, sempre em voga e do agrado da rapaziada, independentemente da época ou da idade.
As indicações tinham sido precisas o suficiente: junto ao pinheiral, um bocadinho mais para baixo de quem desce, perto de uma casa com uma chaminé, atravessando duas ladeiras, uma maior do que a outra, mas do mesmo dono, costumava-se ouvir o sino da igreja quando o vento soprava do norte, logo pela manhã. Não havia que enganar... Achei melhor perguntar.
Cheguei ao local perto do meio-dia. Assim que me deparei com o meu entrevistado resolvi ir logo directo ao assunto (uma das imagens de marca das minhas entrevistas) e não lhe dar tempo a que reflectisse (outra das minhas assinaturas).
_ Pelo que vejo, a sua posição mantém-se inabalável. Como é que isso acontece?
_ É fácil: estou espetado!
_ Mas... não o assalta uma dúvida, uma angústia, um remoque, que seja?
_ Agora, já não... Com o tempo, acabei por aceitar isto como um desígnio.
_ Não quer explicar...?
_ Tenho muito gosto, sim. Sempre ambicionei ser mestre de orquestra... Cheguei a comprar o fraque de abas de grilo, que ainda mantenho, como se vê, mas tive que abandonar a carreira que ambicionava logo após ter iniciado o estudo do solfejo... Nem me quero lembrar disso...
_ Talvez por ser traumático...
_ Não, que ideia!... Tive que tomar conta do negócio de família. Só isso. Não me custou nada.
_ Mas, há bocado, não tinha dado a entender que havia alguma nostalgia, uma tristeza, por não ter podido seguir a carreira de maestro...?
_ Estava brincar consigo, não ligue... Foi só para dar um toque melodramático... Uma brincadeira. Sinto-me realizado com o que faço.
_ Não quer pormenorizar...?
_ O grosso do trabalho manifesta-se após as sementeiras. Até lá, pode dizer-se que a vida até nem é má...
_ Como assim?
_ Muito tempo livre, muito pousio... Fruir as coisas simples: ouvir o vento, sentir a chuva, a neve, o sol. Olhar os montes, os rios e as ribeiras, o céu estrelado. Regressar à natureza, percebe?...
_ Sim, percebo... Mas agora reparo: então, e os pássaros?!
(Ao ouvir isto, o entrevistado esbugalhou os olhos. De uma forma tão estranha que pensei que estivesse a sentir-se mal ou não tivesse ouvido a pergunta. Por isso, voltei a repeti-la):
_ Então, e os pássaros...?
_ O que é que tem?... Se é para me provocar, é melhor acabarmos a entrevista... Não me quer ceder o seu relógio?
_ Não posso. É de estimação. Mas, se pudesse, para que é que o queria?
_ Para ver as horas. Para que é que havia de ser?
_ Ainda não aprendeu a vê-las pelo sol ou pelas estrelas...?
_ És maluco ou quê!? Claro que sei. Pensavas o quê, que eras tu que me ias ensinar...? Toma juízo, pá!
_ Ok., não se abespinhe. Como é que quer que o identifique: pelo nome ou por um pseudónimo?
_ Porquê? Achas que não são capazes de me identificar...? Olha que sou muito conhecido... Vai por mim.
_ Espantalho, então?
_ Perfeito!
O que é um herói? Que a entrevista sirva para, mais uma vez, voltarmos a colocar a questão. Ele ou ela poderão estar ao virar da esquina ou nos montes, praias e vales por aí fora. Talvez seja você, quem sabe?...
(in Estava Lá, Mas por Acaso, pp. 12)
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