26 abril 2020

Heróis em latitude e longitude algures (escolha você)

O que é um herói? Esta pergunta já foi e continuará a ser feita milhões, trilhões de vezes. O número não é exagerado. Basta pensar no número de vezes que cada um já a terá feito e multiplicar pelo número de almas que se quiser. É só fazer as contas...
Sendo assim, há muitos tipos de heróis ou heroínas (olá, se há!). A maioria ficará anónima e deles ou delas não se saberá mais, se vier a saber-se, do que memórias esparsas e difusas de factos, momentos, ocasiões, mais ou menos épicas, podendo vir a dar lugar a um apontamento, uma nota de rodapé, um epigrama, uma inscrição, uma referência nos álbuns, no nome de um canelho (curiosa, esta memória do canelho, que apareceu ao correr da pena, e atira para uma outra, esta sim, mais vívida: canelha! Um dia, quando as memórias forem aparecidas  - quando, meu Deus!... - terei que me debruçar sobre esta confluência entre a escrita e a memória. Mas adianto já um cheirinho - mal não fará, penso...).
Estamos em plena Primavera. Se fosse dado ao bucolismo ou à poesia, diria qualquer coisa a propósito das fragrâncias, das cores e dos seus matizes, sobre vida e tudo o que lhe costuma estar associado. Mas sou da prosa e do jornalismo, da tentativa de compreender e procurar explicar o mundo, mesmo que o entorte para melhor o perspectivar. Por isso, há que ter cuidado com os devaneios reflexivos: não é para isso que me pagam os editores e os leitores esperam... Voltemos, pois, ao tema dos heróis, sempre em voga e do agrado da rapaziada, independentemente da época ou da idade.
As indicações tinham sido precisas o suficiente: junto ao pinheiral, um bocadinho mais para baixo de quem desce, perto de uma casa com uma chaminé, atravessando duas ladeiras, uma maior do que a outra, mas do mesmo dono, costumava-se ouvir o sino da igreja quando o vento soprava do norte, logo pela manhã. Não havia que enganar... Achei melhor perguntar.
Cheguei ao local perto do meio-dia. Assim que me deparei com o meu entrevistado resolvi ir logo directo ao assunto (uma das imagens de marca das minhas entrevistas) e não lhe dar tempo a que reflectisse (outra das minhas assinaturas).
_ Pelo que vejo, a sua posição mantém-se inabalável. Como é que isso acontece?
_ É fácil: estou espetado!
_ Mas... não o assalta uma dúvida, uma angústia, um remoque, que seja?
_ Agora, já não... Com o tempo, acabei por aceitar isto como um desígnio.
_ Não quer explicar...?
_  Tenho muito gosto, sim. Sempre ambicionei ser mestre de orquestra... Cheguei a comprar o fraque de abas de grilo, que ainda mantenho, como se vê, mas tive que abandonar a carreira que ambicionava logo após ter iniciado o estudo do solfejo... Nem me quero lembrar disso...
_ Talvez por ser traumático...
_ Não, que ideia!... Tive que tomar conta do negócio de família. Só isso. Não me custou nada.
_ Mas, há bocado, não tinha dado a entender que havia alguma nostalgia, uma tristeza, por não ter podido seguir a carreira de maestro...?
_ Estava brincar consigo, não ligue... Foi só para dar um toque melodramático... Uma brincadeira. Sinto-me realizado com o que faço. 
_ Não quer pormenorizar...?
_ O grosso do trabalho manifesta-se após as sementeiras. Até lá, pode dizer-se que a vida até nem é má...
_ Como assim?
_ Muito tempo livre, muito pousio... Fruir as coisas simples: ouvir o vento, sentir a chuva, a neve, o sol. Olhar os montes, os rios e as ribeiras, o céu estrelado.  Regressar à natureza, percebe?...
_ Sim, percebo... Mas agora reparo: então, e os pássaros?!
(Ao ouvir isto, o entrevistado esbugalhou os olhos.  De uma forma tão estranha que pensei que estivesse a sentir-se mal ou não tivesse ouvido a pergunta. Por isso, voltei a repeti-la):
_ Então, e os pássaros...?
_  O que é que tem?... Se é para me provocar, é melhor acabarmos a entrevista... Não me quer ceder o seu relógio?
_ Não posso. É de estimação. Mas, se pudesse, para que é que o queria?
_ Para ver as horas. Para que é que havia de ser?
_ Ainda não aprendeu a vê-las pelo sol ou pelas estrelas...?
_ És maluco ou quê!? Claro que sei. Pensavas o quê, que eras tu que me ias ensinar...? Toma juízo, pá!
_ Ok., não se abespinhe. Como é que quer que o identifique: pelo nome ou por um pseudónimo?
_ Porquê? Achas que não são capazes de me identificar...? Olha que sou muito conhecido... Vai por mim.
_ Espantalho, então?
_ Perfeito!

O que é um herói? Que a entrevista sirva para, mais uma vez, voltarmos a colocar a questão. Ele ou ela poderão estar ao virar da esquina ou nos montes, praias e vales por aí fora. Talvez seja você, quem sabe?...


(in Estava Lá, Mas por Acaso, pp. 12)



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25 abril 2020

A pantufa como solista

Uma coisa tinha que ser reconhecida: naquele pátio, não tinham ficado parados! Ao princípio, duvidava-se que viesse a ser assim. Mas, à medida que as coisas aconteciam, uma espécie de efeito bola de neve acontecera, ainda que já não fosse bem o tempo para isso... Quando se fizer a história desse período, muita coisa surpreenderá as pessoas e, já agora, os animais, também uma parte integrante do fresco desse período, com direito a participação no elenco e na primeira fila, ao contrário das paredes, agora paulatinamente relegadas para o efeito de cenário... Antecipava-se já um remake de uma célebre frase de outrora: «Onde é que se estava no tempo da pandemia...?». Enfim, coisas para acontecer no futuro. Agora, concentremo-nos no presente.
E o presente adivinhava festa, atendendo à mensagem que tinha entrado no grupo criado numa aplicação informática em voga. Dizia assim: «Concerto, 21h00. Consulte o programa no site da Associação».
Apesar da multiplicidade de iniciativas que vinham a ocorrer nesses dias, dava para sentir o frisson que ecoara pelas casas do lugar, com os sintomas inerentes: os «ohs!», as palmas, os «fixe!» e os «porreiro, pá!» começavam a ouvir-se por todo o lado, com os cães a ladrarem, os gatos a miarem e a passarada diversa a chilrear piares como em antecipação... Mais uns retoques e com a luz apropriada, teríamos o cenário de um filme neo-realista ou pós-moderno, talvez experimental. A hipótese de uma abordagem nonsense,  a roçar a palhaçada ou o delírio, não lhe desagradava de todo, mas tinha dúvidas. Logo se veria.  Mas continuava a faltar qualquer coisa...
O site da associação era parco em informação sobre o evento. Para além de uma indicação sobre a necessidade de as casas abrirem as janelas e varandas, o que sobressaía era a sugestão para que se desse atenção ao que se levaria vestido: elegância, mas com sobriedade. Isto deixara-o intrigado. Dando uma vista de olhos pelo armário, havia uma peça ou outra que se encaixaria no dress code sugerido. Mais do que isso, era arriscado. E havia o problema das pantufas, cada vez mais transformados nos actuais sapatos de vela. Poderiam usar-se...? Talvez sim, ansiava. Contaria também com as luzes, que à hora do concerto estariam baixas ou apagadas, talvez substituídas pelas dos telemóveis, tal qual como nos festivais, o que atenuaria o efeito. A coisa era capaz de compor-se...
À medida que a hora de início do concerto se aproximava, a expectativa aumentava. Finalmente, chegara!
Quando as luzes das casas se apagaram, e o solista, maestro e primeiro assobiador da Orquestra Sinfónica do Assobio arrancou com os acordes da Sinfonia para Assobio, em estreia mundial, uma emoção rara perpassou pela área do pátio. Muitos, talvez a maioria, não conseguiram esconder a emoção que os tomou, com um ou outro pigarreio na voz, para disfarçar. As senhoras, com as suas estolas por cima do roupão, não se cansavam de exclamar: «Nem no Scala! Nem no Scala!». Quando chegou ao fim, a apoteose e as palmas atingiram um nível assombroso, praticamente estratosférico! De tal forma, que motivou a intervenção da polícia e da protecção civil...
 E tu, avô: «Onde é que estavas no dia do concerto...?».


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24 abril 2020

Acto único

Subindo ao palco, emitiu um uivo aterrador... Incrédula e amedrontada, a assistência parecia recusar o que acabara de testemunhar: a força e a importância do Método. Ao contrário do Chihuahua...


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19 abril 2020

180750 páginas ao pó (mais coisa, menos coisa)

«Se não fosse agora, não seria nunca!». Gostava da frase pelo que representava de empenho e determinação. Para começo, não estava mal. Mas ainda teria que lhe dar continuidade... E isso, minhas amigas, não era adquirido. O primeiro sinal de que algo podia descambar ocorreu quando se pôs a olhar para as estantes (eram cinco) e se apercebeu de que a coisa não ia ser fácil... Fez as contas por alto e chegou a um número, 723 livros, talvez mais um ou menos um, pouco importava. Tinha estabelecido que a limpeza deveria ser página a página, nem que fosse de passagem, mas página a página. Disso não abdicava. Feitas as contas, a uma média de 250 páginas por livro, havia ali muito trabalhinho a fazer... Veria como corria.
Sendo uma pessoa metódica, concluíra que era melhor começar pelas prateleiras de cima. Só teria que ir buscar o escadote. Enquanto tratava disso, uma ideia estapafúrdia perpassou-lhe pela cabeça e obrigou-a a parar, mas rapidamente a sacudiu com o pano do pó, que entretanto apanhara na despensa. Não podia desconcentrar-se e deixar que coisas marginais a desfocassem da sua tarefa... Voltou a entoar a frase do início, desta vez com mais ênfase, o que levou o cão a dar um salto no sofá e começado a ganir (não se sabia bem porquê...), mas ela sossegou-o, fazendo-lhe uma festa na cabeça, e o bicho aquietou, voltando a dormir. Olhou para o relógio e deu início ao trabalho.
Tinha já limpo os dois primeiros e preparava-se para limpar o terceiro livro (assim o ditado estivesse certo...), recordação que lhe provocou um ligeiro sorriso, quando se ouviu um berro provindo deste, assim parecia, não muito estridente, mas firme: «Que é isto?!... Já não não há respeito pelos Clássicos?!?... Em que mundo estamos, por Belenos e por Toutatis?!...».
Ao ouvir isto, e sobretudo ao aperceber-se de onde vinha a voz, a mulher ia tendo um baque e quase caía do escadote, apenas o evitando porque se agarrara, por sorte, a um dos volumes da Suma Teológica..., mas acabaria por se recompor, achando melhor descer e analisar a situação em cima do soalho da sala, mais seguro e terreno, concluíra também. Já em segurança, olhava para a última prateleira e para o livro que falara, o terceiro, recusando-se a acreditar no que ouvira ou julgara ouvir. Não! Ali havia coisa... Mas antes de pensar nisso, ia beber um cálice de espirituoso e racionalizar o que fosse possível. Podia ter sido uma tontura, um desfalecimento, uma sugestão, não se sabia, mas não de estranhar pois andava um pouco cansada e a dormir pouco... Não havia de ser nada, animava-se.
Regressada à sala, voltou a olhar para a prateleira e para o livro, que entretanto se chegara à frente e se desalinhara dos outros, acabando por identificá-lo: era um Astérix! Teria que ter muita paciência e tacto para lidar com ele, mas estava esperançada num entendimento. Resolveu encetar o diálogo:
_ Não leves a mal, ó livro do Astérix, mas gostava de te explicar o que se está a passar. Estou a fazer a limpeza da estante e dos livros, por causa do pó, dos ácaros e da bicharada que os ataca, percebes?
_ Nem por isso... Tinha de ser hoje?
_ Bem... não. Mas é domingo, sabes?... Durante a semana é mais difícil... Não podes facilitar?
_ Ganho alguma coisa com isso?...
_ Ficas mais limpinho... Também respiras melhor. Achas que é pouco...?
_ Acho!... Mas como sou um sentimental, dou-te uma hipótese.
_ Diz lá...
_ Corremos o risco de que o céu nos caia em cima da cabeça?...
_ Penso que não. Estamos entendidos...?
_ Ainda não.
_ Então...?
_ Agora vamos para uma patuscada de javali. Depois te digo.
_ Prometes?...
_ Vai depender da poção...






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Domingo (crónica em forma de fábula)

A maioria das lojas fechadas, o acordar mais tarde, um ritmo mais ronceiro, apesar do frio, menos gente nas ruas, alguma nos cafés. O domingo nas grandes cidades é mais ou menos isto, com poucas alterações. Pelo menos nas cidades que se conhecem. Nas outras não se sabe. Talvez sim, talvez não.
O casal circulava pelo passeio na avenida, empurrando um carrinho de bebé, onde se aninhava uma criança, aparentemente de poucos anos. Trazia vestida uma canadiana, pequena como ela, e espreitava por baixo do capuz, só se vendo um olho. Os pais olhavam para uma montra e a criança espreitava pelo seu olho à vista, o esquerdo, talvez a interrogar-se e interrogar o mundo que a envolvia. Que pensaria e veria a criança com o seu olho perscrutador...? Não se sabia e ela não o diria, decerto. Também não seria possível lembrar-se, pois era muito pequena e a memória se dissiparia, por uma ou outra razão. Só nos filmes é que estas impossibilidades se resolvem ou têm consequências.
Talvez um dia possa reconhecer-se neste registo, se a ele aceder. Quem sabe?...

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18 abril 2020

Absurdo, talvez, mas nunca se sabe...

_ Levaria a mal se tirasse a máscara...?
_ Claro que sim. Nem pense!
_ Muito bem, então. Será que lhe posso propor um negócio?...
_ Depende. Dá lucro?
_ Ga-ran-ti-do!
_ Sim, com o hífen... Mas, e sem ele...?
_ Garantido, também. Não falha e é dinheiro em caixa!
_ Não estou interessado.
_ Não está interessado?!... Não compreendo... É um absurdo!?
_ Por isso mesmo!... Não vê que sou um nabo?!... Ainda se fosse uma couve... Não estou interessado!

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À procura da paisagem interior - amostra 2

Passava os olhos por um jornal quando ouviu o som de uma mensagem a entrar no telemóvel. Ainda pensou não se levantar a ver de quem era, mas a curiosidade era muito grande, mais não fosse pela hora. Pegou no telemóvel e leu a mensagem: «Queres vir cá a casa? Almoças comigo».
Ficou intrigado. Apreensivo, também um pouco. O que é que quereria aquela alma...? Decidiu ir. Mas tinha que levar qualquer coisa. Era de bom tom, as pessoas apreciavam e até podia servir para fazer um brilharete... Passaria por uma garagem vintage, conhecida pelos produtos artesanais e simbólicos que estavam a fazer furor nesse momento, quer nas tertúlias de varanda, quer nas redes sociais: um rolo de papel higiénico de 1 folha, reciclado, perfumado e assinado por artista plástico em quarentena, um quadrado de sabão macaco certificado e um frasquinho de autêntico vinagre de vinho, 100 ml, produzido após abertura de uma garrafa perdida, algures nas prateleiras de uma cave, nos gloriosos anos 60... Da sua garrafeira levaria uma garrafa das berças, de vinho que ele próprio ajudara a pisar, pelo menos assim o afiançava... Vamos acreditar que sim.
Ali estava, pois. Só tinha que bater à porta. Pelo menos desta vez, estava convencido de que o resultado não seria o mesmo do que o da primeira visita, em que nem sequer lhe abrira a porta... Não! Agora, seria diferente. Talvez por isso, tinha trazido o gravador e o bloco. As coisas iriam correr bem...
Bateu à porta. Ouviu-se um «Entra, filho!». Entrou, não sem antes ter esfregado os sapatos no tapete, deu os bons dias e perguntou se podia ir à casa de banho, pois estava aflito... Ela disse que sim, mas que tirasse os sapatos. E que não se esquecesse de lavar as mãos!... E que também fizesse uma pausa e meditasse, brevemente, fazendo inspirações/expirações ritmadas ao som da música que se ouviria na casa de banho, «Um must!», exclamou. Foi o que fez. Contudo, engasgara-se nas inspirações/expirações e tossira ligeiramente. Com receio de que ela percebesse, pigarreou a voz e começou a trautear uma ária de ópera, das mais conhecidas, e que sabia de que ela gostava, servindo também para garantir que os seus pulmões estavam óptimos e oxigenados... Dirigiu-se para a sala e entregou-lhe os presentes que trouxera. A comoção dela, ao recebê-los, deixaria qualquer coração empedernido vertido em lágrimas, daquelas grossas, mas rapidamente se recompôs e lhe perguntou como é que estava, se corria tudo bem e «se já era um autor de culto» (ao dizer isto, desatou a rir à gargalhada e teve um ataque de riso e de tosse incontroláveis, o que o preocupou sobremaneira)... mas acabando por se recompor, talvez devido à ingestão do vinho da garrafa que também trouxera, o tal que tinha sido pisado por ele, e sobre o qual dizia «É pá!?... É francês, não?». Coitada, via-se que de vinhos percebia pouco...




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17 abril 2020

E que tal um conselho, para variar...?

Cautela e caldos de galinha.

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Excesso(s)

O fim de semana chegara e, com ele, um suspiro de alívio, provocado pelo retirar de um peso das costas, sob a forma de capote... Preço a pagar pela paixão e pelo vício... Da sueca.


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12 abril 2020

Sem roleta

Estava tudo a postos para o início da partida. O ambiente era de festa e contagiante. De súbito, um sonoro «Quietos! Ninguém mexe em nada!» faz tremer a assistência e os intervenientes, que, talvez por receio, para não dizer medo, obedecem. Saído não se sabe donde, aparece um mascarado, da cabeça aos pés, com um pulverizador na mão. O calafrio e o silvar do Uiiiiiiiii que se ouviu era suficiente para assustar toda a gente, mantendo-os paralisados... O mascarado aproximou-se da mesa e pulverizou-a vigorosamente, com especial incidência nas cabeças dos matraquilhos. Depois disso, deixou prosseguir o jogo. Mas deixou o aviso:«À saída, lavar as mãos!».

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On the road, mas com a média alta

A ideia não era nova. Pensava nela frequentemente, mas outras prioridades tinham-se colocado, a maior das quais era a de sustentar uma família numerosa, espalhada pelos quatro cantos do mundo... Mas decidira que ou era agora ou nunca! As fontes tinham-me garantido que havia condições para fazer o que tinha intenções de fazer. Mais a mais, o lugar para onde teria que me deslocar até nem era longe e o tempo estava bom para fazer uma caminhada ou ir de bicicleta. Pensando bem, talvez a bicicleta fosse a melhor opção. Conseguia não um dois em um, mas um três em um: deslocar-me, fazer o que tinha a fazer e preparar-me para a subida da Torre quando fosse a altura da Volta. Nada mau e exequível! Fui buscar a bicicleta, verifiquei se a corrente tinha óleo, testei os travões e ajustei o selim. Agora, era só dar ao pedal. Estabeleci como média uns razoáveis 120 km/hora, em plano, e uns prováveis 150 nas descidas. Nas subidas, ficar-me-ia aí pelos 80, porque não queria forçar e também não tinha pressa. Lá para a hora do lanche devia chegar lá... E assim foi.
Tinham-me prevenido para a opulência da mansão, mas não acreditara até a ter visto: era mais ainda! Um requinte, um luxo, uma magnificência, um conjunto de adjectivos que só tinha visto aplicados aos palácios com que me tinha defrontado ao longo dos passeios lúdicos pelas distantes Ásia e Oriente, quando era mais novo... Só visto! Só visto, porque contado parece mentira!... Fosse eu outra pessoa, mais dada ao exagero ou à fantasia, e outro juízo se faria daquilo que vi e que estou agora a contar, revivendo a cena como nos tempos em que fui ajudante de realizador em Hollywood, algumas vezes eu próprio realizei, e que lucros deram esses filmes!... Tenho em casa a cadeira, para quem estiver a desconfiar... Só quem nunca foi ao cinema e não conhece Hollywood é que não acredita. Mas nós sabemos que há sempre pessoas mal formadas neste mundo... Isso até me faz lembrar dos tempos em que fiz uma pós-graduação em Cambridge ou Oxford, nem sei bem, pois elas foram tantas, mas numa delas foi, de certeza, isso era garantido. Era só ir a casa, ao escritório, e obter a cópia da minha comunicação, apresentada em latim (uma surpresa, para a época), e no final ovacionada, de pé, pelos 1500 participantes, corredores incluídos. Um dia, talvez, as minhas memórias irão pegar nessa e noutras matérias (o difícil vai ser escolher...) e dar à estampa um bestseller como ainda se não viu... Olá, se vai!
E as histórias continuavam, parecendo que o meu entrevistado não tinha intenções ou vontade de se calar... Mas fazia-se tarde. À despedida, deu-me um conselho: «Bebe muita água e não descures o imaginário. Quanto ao estilo, mete umas aspas nos parágrafos anteriores, para garantires que é uma transcrição do que ouviste de viva voz...» e piscou-me o olho. «Não te esqueças», acentuou, que podes sempre dizer que entrevistaste a minha pessoa, D. Aldrúbias, ilustre presidente, tesoureiro e vogal emérito da ordem dos Contadores de Histórias deste Mundo e do Outro, qualquer que ele seja. Vai em paz. Para o caminho ofereço-te este charuto, genuíno Habano, que me foi oferecido, com pompa e circunstância, pelo próprio Fidel Castro, naquela vez em que...», mas já deixara de o ouvir. Se não me pusesse a pau, ainda perdia a carreira das sete...

(in Estava Lá, Mas por Acaso, pp. 69)

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11 abril 2020

Vá pelo topónimo...

«Não há dimensão para a ignorância», pensou, mas arrependeu-se logo de seguida, receando que a frase fosse descontextualizada e mal interpretada, razão pela qual se vai já deitar alguma água na fervura (pouca, porque senão transborda e queremos aproveitá-la para a cozedura de algumas verduras). Olhou para o período e deu um suspiro. Dos grandes!... Adiante.
Apesar disso, o impacto da frase inicial continuava a bulir-lhe na cabeça... Ainda pensou em resolver a coisa com uma aspirina, mas achou por bem ficar-se por um chá. Fosse como fosse, começava a notar-se um padrão no alinhavar das palavras e das frases. As hipóteses eram as de deixar andar, a ver no que dava, ou cortar abruptamente, mesmo que fosse a meio de uma palavra e correndo o risco de decepar alguma letra ou sílaba... Lembrou-se de que estávamos na Semana Santa e achou melhor deixar a hipótese para argumento de filme, peça de teatro  ou ensaio sobre a criatividade sem rede, resumindo: para o dia de S. Nunca À Tarde!
O Dia de S. Nunca à Tarde era uma reminiscência de muitas almas, umas piedosas outras nem por isso, mas mesmo assim uma reminiscência que merecia algum carinho (a devoção parecia-lhe exagerada, embora por razões de enchimento de linhas também a ela se fazia referência, en passant, e aqui utilizava-se o francês, que fica sempre bem nestas coisas e dá uma coloração cosmopolita), o que acentuava o padrão... Insidiosamente, como era de bom tom, uma cãibra resolve dar-se ao conhecimento e o escriba começa a sentir uma incomodidade, pequena ou grande se verá, que começa no pé e se prolonga pela perna, milagrosamente aí se mantendo e desaparecendo logo de seguida, sem deixar rasto, número de contacto ou referência do tapete voador... Uma ingrata!
Começava a ser perceptível o salivar distante dos hermeneutas (contidos, como convinha), mas mesmo assim respondendo «presente!», e não era surpresa, pois a situação apanhara toda a gente de surpresa, mas as meninges precisavam de exercício (olá, se precisavam!...).
Aqui chegado, talvez um suspiro não chegasse para avaliar o resultado mas mais um fechar dos olhos, o que não deixava de ser muito arriscado, pois poderia dar-se o caso de as teclas começarem a recear avançar por caminhos desconhecidos, mesmo que excitantes, correndo-se o risco de se ficar a meio da ponte e não se andar nem p'rá frente nem p'ra trás... Lançados os dados, o resultado era inequívoco: avançar, sem medos! E sem recurso a VAR!
Era inevitável, dir-se-á mais tarde, que a referência sub-reptícia ao futebol, essa droga, aparecesse sem ser convidada, mas era da sua natureza, não podia levar-se a mal... Mas ficava desde já avisada de que ficaria confinada à zona das claques e sem poder manifestar-se, mesmo na comemoração dos golos!...
Fazia-se tarde. Não no passar das horas, mas do texto. E o raio da frase continuava a cirandar, com pantufas, mas a cirandar, após uma ligeira sesta. E mais energética do que inicialmente!
Tudo começara com um passeio. A pé. Para desenferrujar as pernas e a alma, ambas a precisar de exercício. No trajecto, cruzara-se com muitas ruas. Com nomes, como é habitual nas ruas. À esquerda, o de uma poeta, à direita o de um escritor. Não conhecia nenhum ou ouvira falar de nenhum, nem remotamente... Talvez por isso, a ignorância não tem dimensão... Reconhecia-o agora. Mas fazia uma promessa: iria continuar a caminhar. Talvez ajudasse a contê-la...

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10 abril 2020

Sou uma ideia fora da caixa e gostava de saber se também estou obrigado à confinação. Estou?

É melhor... E não se esqueça de lavar as mãos!

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Autor de culto

Desconhecia o que era necessário para se ser um autor de culto. Calculava que se precisasse de uma licença qualquer e que se pagasse imposto, mas não sabia mais nada. Sendo assim, o mais avisado era ir às Finanças e registar-se. Foi o que fez, logo pela manhãzinha. Lá chegado, deparou-se com uma grande fila e com a atribuição de senhas já esgotada. Voltou para trás. Sentou-se num café e começou a pensar melhor no que queria ser, se seria boa ideia aquela de ser autor de culto. Entretanto, pedira um galão e uma torrada «com pouca manteiga», disse. Olhou em volta, em busca de inspiração ou de informação. A audiência não era numerosa, talvez por isso resolveu avançar. Pigarreando a voz, perguntou se alguém sabia o que era preciso para se tornar um autor de culto. O barulho que se fazia sentir, em fundo, parou, como por magia. As poucas pessoas olhavam para ele e não diziam nada. Olhavam-no, apenas. Timidamente, ouve-se uma voz «Então, o café não vem?», «Sai já», responderam.

(Publicado tal qual num pasquim de esquina, que por ali passara para tomar um fino e que achou o texto fixe, mas que podia ser melhor… Para lá disso, queixou-se de que o fino estava morto e que não voltava a entrar ali, pois não gostava dos copos).

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Evitar os ós, pês e quês

Em tempo de incerteza e imprevisibilidade, não é fácil tomar medidas e que estas sejam consensuais. Neste caso, também isso se verifica. Dos académicos aos técnicos, multiplicam-se as receitas, os caminhos e as soluções. Na essência, a questão é simples: onde confinar a palavra 'pandemia' nos dicionários. Sim, porque a confinação tem que ser assegurada, mais a mais para preservar a contaminação das palavras próximas dela e dos seus familiares. Depois de muito debate e discussão, chegou-se a duas localizações possíveis: no verso da capa ou no verso da contra-capa, com uma maior tendência para esta localização, até por razões quantitativas, pelo menor número de palavras nas imediações. Até haver uma decisão definitiva, aconselha-se os utilizadores de dicionários a temporariamente esquecerem a existência de palavras começadas por 'o', 'p', e 'q'.

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Podia ser melhor, mas... 4

... está-se confinado.

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Lançar as pedras...

_ E o que faz, presentemente...?
_ Leio o futuro.
_ Numa bola de cristal?...
_ Não.
_ Nas cartas?...
_ Não.
_ Nos búzios?...
_ Não.
_ Nas borras do café?...
_ Não.
_ Nas folhas de chá?...
_ Não.
_ Desisto...
_ Já sabia.
_ Já sabia?!...
_ Sim, já sabia. Disseram-mo as pedras.
_ As pedras, quais pedras!?...
_ As do dominó.
_ As do dominó!?... Mas isso também serve para ler o futuro!?!...
_ Comigo, sim. Estou certificado e tudo!
_ Explique lá, então. Só vendo...
(Ouve-se um baralhar de pedras de dominó, que são dispostas).
_ Já está!
_ Como, já está...!? Uma sena num terno!?!... Isso está certo...?
_ No futuro, sim.

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