Coincidência. Pura sorte. Acaso. Fastio. Possibilidade técnica. Destino. O que se quiser. Escolhamos o destino.
Em estúdio, três pessoas: dois homens e uma mulher. Ela, a mulher, é mais nova do que os outros dois, os homens. É (está) também mais produzida, mais fruto da época presente. Tem uns olhos bonitos, parece. Invulgares, também. Qual será a cor?... Esqueçamo-la. Concentremo-nos nos outros, os homens.
Um, meio careca, com uma camisola grossa, sentado e calmo. O outro, mais magro, de barba branca, aparenta uma energia irrequieta, apesar da idade e do aspecto. As vozes e os gestos, os gestos e as vozes. Mais as vozes.
Apresentemo-los: Paula Moura Pinheiro, a mulher; Alberto Pimenta e Victor Silva Tavares os homens.
Coincidência. Pura sorte. Acaso. Fastio. Possibilidade técnica. Destino. O que se quiser. Escolhamos o destino. Algo me levara ali.
Era domingo à noite. Cerca das 22h30, a hora. A caixinha mágica, dita e chamada TV, voltava a fazer das suas.
Escrevo ao som de
Hollywood Nights, de Bob Seeger, com o volume alto, à batida forte da bateria, do piano e da guitarra: livre, «com o vento», ao contrário do disco de Seeger (
Against the wind). Entra agora James Brown,
Papa´s Got a Brand New Bag. É o tempo do
soul.
Sorte a minha: a música regressa ao clima da melodia, suave, salvo por
The Rippingtons. Regressemos à escrita e ao programa. Os convidados esperam-nos (coitados!) e aguardam-nos.
Entretanto, saio para uma reunião. Habitual, a reunião. À volta, a maioria dos participantes, também eles habituais.
Toca um telefone na sala, à qual regresso após a reunião. O telefone calou-se. Ouço Sinatra e Basie,
Pennies from Heaven.
É terça-feira (hoje, quinta) e esqueci-me dos meus convidados (e convidada, embora ela própria anfitriã). Regresso, pois, a domingo. Passa pouco das 22h30 e ali estou eu, sentado e crédulo.
Coincidência. Pura sorte. Acaso. Fastio. Possibilidade técnica. Destino. O que se quiser. Escolhamos o destino.
Os homens, sábios, digo eu, falam, conversam, ouvem, pensam. A anfitriã, os seus olhos, sobretudo, brilham. É um tema para iniciados, cultores ou apaixonados - lá longe, como num barco que te embala, ouve-se
Mysterium, de Rodrigo Leão. O álbum Pasión foi gravado ao vivo. Acaba o
Mysterium, entra uma nova música, um outro som, uma outra língua. E o telefone que não se cala, maldito!...
Twist im my Sobriety, canta Tanita Tikaran? Quem é?... E o Luís Pacheco, o César Monteiro quem foram e por que o foram, falam, discorrem, escutam, pensam, o Pimenta e o Victor. A Paula olha, embevecida, recostada numa cadeira que decerto escolheu, seleccionou de outras cadeiras, com os olhos, aqueles olhos que a Paula, parece que só a Paula tem.
Voa, Charlie Parker! Faz-te ouvir com o teu Charlie's
Wig!E o Pimenta fala. Ouço e escuto. A voz e o discurso do homem têm um efeito encantatório, de orago, diria. O Silva Tavares ouve, também. A sua vez chegaria, ela também. É o homem, um «homem dos sete instrumentos«, o Tavares, descubro na
net, numa entrevista dada ao
Público, em Julho de 2007 - onde estava eu, em Julho de 2007, que não me lembro da entrevista do Tavares?... -
Riding with the King, dizem-me Eric Clapton e B.B. King e apontam para o Pimenta, que continua sentado, com o seu visível anel no mindinho - será brasonado?... - pacientemente sentado, à espera de utilizar a voz. A voz, o som, o timbre, o tema - fala, Pimenta! E o Pimenta falou (também em 1995, notável, sobre os portugueses...).
Coincidência. Pura sorte. Acaso. Fastio. Possibilidade técnica. Destino. O que se quiser. Escolhamos o destino.
O programa da Paula está quase no fim. É domingo à noite e eu escrevo hoje, terça-feira (já não, pois hoje é quinta), ouvindo
Young Waters, de June Tabor.
Os olhos da anfitriã antecipam um gozo cúmplice e infantil. De súbito, irrompe pelo estúdio uma moça nova, de farda, com um tabuleiro. Nele, pousam duas malgas de louça branca.
Jáfumega canta
Nó Cego, agora, terça-feira (hoje, quinta).
A moça dá as boas-noites e poisa as malgas: uma em frente do Víctor e outra em frente do Pimenta. A Paula também queria, diz ela - arrependeu-se e ficou augada. Envergonhou-se, digo eu.
Estou longe do estúdio. «É caldo verde!»dizem os convidados, o Pimenta e o Víctor.
I say a little prayer, faz-se ouvir a Aretha. Franklin, de família. Será ela, também, o orago?...
Alberto Pimenta ajeita-se, mete a mão no bolso das calças. Aparece com um embrulho, em papel branco, com um ar artesanal e cuidado - assim como a
&Etc, talvez...- e mostra o seu conteúdo: dois pedaços de broa! Um para ti, Víctor, outro para mim, Alberto.
Cada um deles, pega na broa e afunda-a na sopa. «É caldo verde!», dizem eles. A Paula está embevecida. Que faria ela, se ouvisse
Danza de la Molinera, tocada por Paco de Lucia? Será que ela ouve?... E os olhos, intrigantes, que vêem eles?
É um efeito televisivo engraçado, este, da broa embebida em caldo verde. O prazer dos comensais também. Há muito de verdadeiro e de genuíno, ali. De sabedoria, direi eu.
Não é fácil fazer um bom caldo verde...
Don't stop me now, trauteiam os Queen.
Coincidência. Pura sorte. Acaso. Fastio. Possibilidade técnica. Destino. O que se quiser. Escolhamos o destino.
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