26 janeiro 2020

Forças do bem vs. forças do mal conduzem a empate

Na esplanada, bebericava um fino e pensava na vida. Começara a pensar na vida só agora, mas já bebericara três finos, bebendo o primeiro e bebericando os outros dois. O sinal tinha-o deixado intrigado, uma vez que não estava habituado àquele código. Provavelmente nem seria um sinal, mas sim um facto fortuito. A dúvida só se desfaria quando fizesse a chamada e lhe confirmassem se era um sinal ou não. Estava convencido que não, mas mesmo assim iria aguardar. Entretanto, bebericara de vez o terceiro fino. 
Fez a chamada, então. Prevenido, fizera umas figas. Para reforçar, benzera-se também. Sentiu cair as moedas e aguardou. Cansou-se dos apitos e desligou. Olhando para o lado, decidiu-se. Iria a pé. Assim como assim, iludia a espera e fazia bem ao coração. Levantou-se da mesa e bateu três vezes no tampo. Começou a andar e deparou-se com um escadote. Aberto, convidando a passar por baixo dizia-lhe o aviso. Hesitou. Lançados os búzios, passou por baixo e o escadote fechou-se. Teve sorte, concluiu a investigação. Quando se fechou, o escadote protegeu-o de um vaso e da terra espalhada. Da flor, se a havia, nada a fazer. Quanto à terra, coisa diferente. Recolhida com cuidado, analisou-a ao microscópio, desencantado num estalar de dedos. Quando chegou à essência, descobriu o rótulo: terra milagrosa. Céptico, propôs o teste. Fez-se. Desconhecem-se os resultados. 


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Sono de Inverno

E de repente, assim sem mais nem menos, o recurso às potencialidades de uma box televisiva leva-nos a um filme e a um mundo de encanto, mas complexo e grave, não nos iludamos, porque profunda e genuinamente humano. São mais de três horas (olé!), absorvidos e reconfortados com os timings da disponibilidade e da compreensão. Em modo lento, como convém. Numa televisão perto de si.


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E o sol brilhava...

Depois de um tempo mais agreste, o aparecimento do sol tinha trazido para a rua os habituais: famílias, carros, cães, passarada vária e alguns errantes. Numa paragem de autocarro, uma mulher com bagagem esperava sentada. Um pouco adiante, um carro parado com um ocupante. A mulher levanta-se e dirige-se ao carro e ao condutor. «Que sorte!», teremos pensado, reféns de finais felizes e desejados. Mas (às vezes, há sempre um 'mas' nestes desejos ansiados), algo se deve ter passado, pois a mulher regressa à paragem e zangada, depreendia-se, tais as considerações pouco abonatórias que lhe saíam da boca, a propósito da idade, do género, da mãe, do clube, das convicções religiosas, partidárias e outras de que nos podemos entreter a lembrar, todas elas, sem excepção, tendo como destinatário o condutor... À laia de desconto, porém, um «Desculpe» para o narrador, que retribuiu com um aceno de compreensão, talvez, como quem diz «Por quem é?»... A resposta ainda se ouviu e assumia que «Pelo Vitória»... E o sol continuava a brilhar.

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25 janeiro 2020

Endereço novo?

A anterior epifania já não mora aqui. Mudou-se sem deixar nova morada.

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Improviso epifânico (e mais qualquer coisa)

É um erro de perspectiva pensar que as epifanias devem ocorrer em lugares e momentos especiais. Não: é a manifestação da epifania que é invulgar, não o lugar ou o momento! Qualquer lugar é bom para uma epifania, mas se for num com actividade e pessoas é melhor para a revelação e mais atreito à credibilização. É como nos filmes. No teatro é ao contrário. 
A epifania acontece em dia e hora certos, embora não combinados. Não ter sido combinado é relevante nesta matéria da epifania, pois sendo combinado seria do domínio do contrato. Não era o caso. Também é importante que o agente em que se manifesta a epifania não seja identificado à partida, para dar mais suspense, mas que simultaneamente possa ser identificado como um (possível) alvo para tal, dado o dia da semana em que ocorre e as circunstâncias em que se faz. 
Mas não é fácil lidar com a epifania, até porque não se está à espera. Complica-se se também não se tiver experiência de epifanias, que é difícil de obter e para cuja obtenção não têm sido criado vagas nos cursos que, de vez em quando, abrem. Sem apoio comunitário. Pelo menos, até agora. 
Desenganem-se os que pensam que a epifania leva ou tem uma vida fácil. Não tem. Descontando o facto de muitas trabalharem a recibo verde ou com contrato a tempo certo, praticamente todas, incluindo as do quadro, são sujeitas a um regime desgastante, caracterizado pela inconstância e por resultados inesperados, mesmo que pensados para não o serem. Tudo começa no período de aquisição de competências e durante a realização do estágio, que é obrigatório e decisivo para uma colocação condigna e perto de casa. 
Não podemos falar de epifanias de ânimo leve, embora o corrector ortográfico assinale que se estava a usar uma expressão informal e que deveria «ponderar o emprego de uma expressão alternativa». Teria que discordar do conselho, coisa que lhe era permitido, e argumentar no sentido contrário, que era o que lhe apetecia, até porque não incorrera em erro nenhum, como se comprovava pela utilização de ponderar o emprego de uma expressão alternativa entre aspas, para indicar que a fonte não era ele, mas o corrector. Para além do mais, considerava uma injustiça acusarem-no de utilizar uma expressão do domínio informal, quando um conhecimento mínimo das raízes greco-latinas do português estavam bem à vista, respectivamente em «ânimo», do latim animus, e em «epifania», do grego epifaneia. Para informal não estava mal, dizia, e como resultado ficavam em 2 a 0, a desfavor do corrector, porque o autor resolvera abrandar e controlar o jogo, pois voltaria a jogar na quarta-feira e estavam a bater-lhe à porta. A epifania das onze.


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Fortunas te caiam (mas cuidado com o peso)

A primeira vez que ouviu a expressão assustou-se, pois não estava preparado e receava que as fortunas fossem pesadas... Se fosse qualquer coisa com mais ou menos meio quilo, ainda vá. Mais do que isso, não. À cautela, veria qual o peso, caso pintasse para o seu lado, coisa que não era habitual... 
Uma vez jogara numa rifa e saíra-lhe um molho de nabiças, umas maiores do que outras. Decidiu protestar e intimou-os a arranjarem-lhe nabiças mais ou menos do mesmo tamanho, coisa que lhe disseram não ser possível, mas que lhe arranjavam nabos do mesmo tamanho, caso estivesse interessado. Medindo umas e pesando outros, decidiu-se por uma solução de recurso: levava as maiores das nabiças e um nabo, não interessava qual, pois eram do mesmo tamanho. 
Contente com esta solução, resolveu jogar na lotaria e escolheu uma cautela. Andada a roda, saiu-lhe a terminação, coisa que o surpreendeu, pois tinha jogado para o primeiro prémio, mas também ficaria contente se lhe saísse o segundo ou o terceiro. Sair a terminação é que não fazia parte do plano e era uma afronta à estatura, considerada alta pelos padrões vigentes... Teria que reclamar, mais uma vez, e estava certo que com resultados. Mas enganou-se. 

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Estendal/Hipocondrices

Todos os dias, fizesse chuva ou sol, punha à mostra o estendal. Era uma incongruência para os vizinhos, mas que pouco lhe importava, ao contrário da falta de molas, sempre insuficientes. Habituara-se a isso e mantinha-se fiel ao princípio, que lhe servia de norma, de que o estendal é para se mostrar. Sempre.  
Começava pelas maleitas e dava seguimento às dores e outras que tais, umas piores do que as outras, num repositório de enfermidades, reais ou imaginárias, mas sempre com lugar cativo no estendal, fazendo parelha com as mezinhas, remédios e soluções várias, dos mais diversos foros, modas ou proveniências. Defendia-se com o tempo, a conjuntura ou o destino, apesar de tudo promissor.  
Nos dias de sol, o estendal até que era bonito. Nos de chuva não, mais a mais porque se corria o risco de não haver quem o apreciasse. Ambicionava ser considerado património, com direito a estrela Michelin. Até lá, também não era mau, uma referência no catálogo das festas populares, passadas e futuras, serviria para, pelo menos, pigarrear só ao entardecer.




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Esgrim(a)ir

_ E o meu amigo, faz o quê?
_ Sou esgrimista.
_ Boa! E em que clube?
_ Por conta própria.
_ Explique lá isso...
_ Procuro uma palavra e desafio-a. Se aceitar, escolhemos os padrinhos/madrinhas e começamos o duelo.
_ E correm riscos?
_ Às vezes.
_ Quantos desafios/duelos é que já fez?
_ Um e meio.
_ Um e meio?!
_ Sim, um e meio. No meio, as madrinhas zangaram-se.


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O caso Richard Jewell

Talvez a história e o filme possa ser para muitos mais uma das coisas «lá da América e dos americanos»… Talvez. Do que não restam dúvidas, parece-me, é que o homem por trás da câmara, Clint Eastwood, a caminho dos 90 ou já lá estando, não me interessa, voltou a pôr em cima da mesa um filme poderoso, pelo que conta e pelo que insinua, com desempenhos de se lhe tirar o chapéu, casos do protagonista, da sua mãe (que papelaço!) e do advogado. A caminho dos Óscares?... Isso não se sabe. São coisas lá dos americanos...

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19 janeiro 2020

Indiana Jones não passou por aqui

Deixemos os armários e falemos das gavetas. Podem ser de armários, cómodas ou roupeiros. Para os escribas, há umas especiais. São aquelas onde se guardam as obras, livros ou livrinhos, que antes de o serem já o eram. Todos as têm. As deste ficaram na casa antiga, e por lá ficaram. Mas hoje abrem-se. Porque sim.  
A gaveta é uma ficção. Também pode ser uma caixa de sapatos, se é que ainda há caixas de sapatos a fazerem de gavetas. Parece que sim, que as há. Tinha aí umas três, que lhe parecia um número mais plausível do que dizer uma dúzia, mais adequado a ovos ou a rebuçados. Também tinha uma caixa de botas, mas que não era para aqui chamada, pois está retirada e goza um merecido descanso.  
Três caixas de sapatos mas só meia a fazer de gaveta. É pouco, reconhece-se, mas suficiente para a obra, sobrando ainda algum espaço. Que pode ser usado para colocar meias, lenços ou cuecas.  
Teria gostado de uma cómoda. Como não pôde escolher, ficou a caixa de sapatos. E foi para lá que foram as obras. Que são poucas, mas são as que há. Se fossem muitas, as caixas não chegavam. E o espaço também não. É melhor assim. Este texto vai para lá, assim que o acabar. Quando acontecer, porá o chapéu.

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18 janeiro 2020

A pilha/premonição

Começara a ler aquele autor e estava orgulhoso. Chegara ao autor por aproximação, inicialmente de longe, depois mais perto, pois tinha alguma dificuldade em pronunciar o apelido do homem, habitualmente confundido com o de um famoso violoncelista, o que originava algumas cenas caricatas quando consultava o catálogo online, pois reconhecia-se como claramente incapaz de interpretar a partitura em si bemol ou ouvir o concerto em lá maior para violoncelo com a Orquestra Sinfónica de Londres, dirigida pelo maestro X, edição Deutsche Grammofone. 
A razão para o orgulho era fácil de explicar, agora que começava a incorporar o espírito de escriba marginal. Mas sentia-se um pouco desconfortável, pois mesmo um escriba marginal (parece que sobretudo estes!), têm habitualmente muita leitura e, pormenor nada desprezível!, muita anotação e reflexão sobre os autores que vão lendo, marginais ou não, a maioria das vezes até não, o que não deixa de ser curioso e talvez fique para outras núpcias… 
Vinha, pois, a pensar na melhor forma de transcrever tantas e tantas frases, expressões, períodos, parágrafos, páginas inteiras do recém-descoberto e endeusado (estava a exagerar, é certo, mas convinha a fluência narrativa) autor, que chegara à conclusão de que tirar notas em cima do joelho, no célebre caderno de folhas A4 dobradas, que às vezes serviam de suporte à volta de profundas reflexões acerca das três mil e uma formas de confeccionar bacalhau, com ou sem azeitonas, talvez não fosse a forma mais eficaz de vir a alcançar algum relativo êxito enquanto escriba marginal, ainda que mais marginal do que escriba. E concluía facilmente que o melhor seria arranjar um gravador, daqueles pequeninos, mas não tão pequeninos como aqueles dos espiões, que mais do que gravadores parecem é alfinetes de gravata ou botões de camisa, quando não corola de flor a imitar que é flor, ainda que de plástico, mas que é gravador. E de espião. Não, os que queria eram aqueles que os jornalistas usavam (ou seria usaram?), pois com os smartfhones tudo se baralhara, mesmo para fazer e atender chamadas. E era ao estar envolvido neste dúvida que se tinha dado conta de que saíra do autocarro e iniciara a travessia da ponte, que a bem-dizer não era, mas sim uma passagem aérea sobre uma via de circulação de tráfego, concorrida e preenchida, por sinal, e nos dois sentidos, até porque era início do mês e não chovia. E foi então que a viu, no chão, num momento em que tinha deixado de ver o trânsito nos dois sentidos, embora tivesse uma especial predilecção mais para o Sul, porque lhe lembrava a praia e ainda era longe: uma pilha. Parecia-lhe de rádio, mas não tinha a certeza, pois também poderia ser de um qualquer gadget mais avantajado, que os havia, pensava ou acreditava. Do que tinha a certeza era da premonição e disso não tinha dúvidas: para ser escriba marginal teria que ter um gravador. Desses dos de jornalista. Não dos de espião, pois não tinha o curso. 

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