01 novembro 2020

Contando com a incerteza, fica igual

De tanto a ouvir, acreditava nela. Mas nunca a tinha posto em causa... Antes que fosse tarde, decidira que hoje sairia à rua e iria fazer um teste, uma verdadeira prova de fogo, e concluir ou não se a frase ou a convicção feitas de que a virtude estava no meio era válida ou não. Faria uma amostragem nas zonas baixa, média e alta do sítio por onde costumava poisar e analisaria os resultados antes do almoço. Mais do que o bloco e o gravador, era importante que levasse a fita métrica, daquelas certificadas pelo comité do atletismo para as provas de salto em comprimento ou do triplo. Podia começar.

O teste era muito simples. Identificado o respondente, mostrava-se-lhe um quadro com uma lista de pecadilhos (para não assustar) e pedia-se-lhe que se posicionasse a virtude numa escala de 0 a 10, anotando-se as respostas. Como os pecadilhos eram de alcance e impacto diversos, não surpreendia que o posicionamento da virtude oscilasse consoante a sensibilidade e o entendimento de quem estava a ser inquirido. Por exemplo: quem fosse apreciador de cozido, raramente colocaria a virtude em valores inferiores a 8-9 para o pecadilho gula. Já os não apreciadores de nabo a colocariam mais perto do 6. Quanto a dizer sempre a verdade, havia um desconto para a mentira piedosa.

Em tese, o estudo tinha tudo para correr bem e de forma desejável. Na prática, porém, as coisas eram um pouco diferentes, mais não seja porque a reacção das pessoas a um artista barbudo e cabeludo a perguntar-lhes onde é que localizavam a virtude, se a meio ou mais deslocada para os extremos da escala, e com uma fita métrica a estender-se, para medir a resposta, conduzia a comportamentos no mínimo bizarros, desde os esperados «Socorro, acudam!» até ao clássico «Vai trabalhar, malandro» ou, na versão mais prosaica «Vai dar banho ao cão, mas para longe!», e até meia dúzia deles que começavam a querer tirar a roupa, supõe-se que por uma inexplicável sensação de temperatura efervescente ou para lá encaminhada...

Aproximando-se o almoço, tinha que reconhecer que os resultados eram pífios. Mas era o que havia. Feitas as contas, os resultados tinham sido mais ou menos inconclusivos. Até prova em contrário, a frase feita continuava a ter que adoptar-se, continuando a virtude a situar-se no meio. Uns centímetros mais para a direita ou mais para esquerda, não punham em causa a tese. Encaixavam-se dentro da margem de incerteza, confidenciara-lhe a fita métrica...

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