Depois de grande relutância, lá o convenceram a experimentar a vida de bairro. Tanto o chatearam com isso que resolveu meter baixa no emprego, pedindo um atestado por razões de natureza psicológica, que o clínico caracterizou como
stress pós-traumático, sujeito a cuidados especiais, migas e descanso. Como não gostava de migas pediu ao médico se não podia substituí-las por tisanas, que eram mais saudáveis e não engordavam, mas o médico recusou.
No dia aprazado para começar a experimentar a vida de bairro, vestiu um fato e deu uma volta pelas redondezas a sentir o pulsar do que por ali se vivia. Do que viu, concluiu que o pulso não estava mau para a idade dos vizinhos e dos prédios e isso surpreendeu-o, pois estava a contar com um pulso mais fraco, duns e dos outros. Mas não quis criar expectativas em demasia, pois o verdadeiro teste ainda não tinha sido feito.
No bairro, o que mais o intrigava era a proximidade das casas. E quando dizia proximidade queria dizer quase a tocarem umas nas outras, o que não deixava de o apavorar (só um bocadinho, é certo). Vinha habituado a uma maior sensação de largueza e, talvez por isso, a estranheza fosse maior, embora alguém (presumivelmente um vizinho, já não se recordava) o tranquilizasse dizendo que assim era melhor, pois se tornava mais visível a solidariedade e a vizinhança, o que ele aceitava de boa-fé, até porque vinha habituado a uma experiência mais distante, desconhecida disto. Estava disposto a tentar.
E a experiência chegou cedo, mais até do que estava à espera.
Tudo começou à hora do telejornal, quando se apercebeu que uma cabeça lhe tinha entrado na sala, aproveitando a abertura da janela que dava para a rua. Depois de refeito do susto e de ter respondido às boas-noites que a cabeça lhe dera, apercebeu-se que ela pertencia ao seu vizinho da frente, do 5.º esquerdo, que era o andar que ficava em linha com o seu, que era o quarto direito. Continuava intrigado, no entanto, pelo facto de a cabeça lhe entrar pela casa sem grande esforço, pese embora o vizinho nem ser muito alto, como pôde constatar na manhã seguinte, no café. A razão era fácil de explicar: em casa do vizinho só existia uma televisão, que tinha que partilhar com a mulher. Como esta era muito chegada às novelas, a visualização do telejornal tornava-se difícil, sobretudo daquele de que gostava mais, que era pouco dado à exploração de sentimentos e ao
voyeurismo. De maneira, que se o vizinho não se importasse… E o vizinho não se importava, está claro, e era para o bem da vizinhança. Para além disso, dispunha de duas televisões. Logo, não haveria problema.
E assim se passavam as coisas, com mais ou menos espírito de bairro, mas sempre em boa paz com os vizinhos. Para além da cabeça a ver o telejornal, noutros momentos, embora em divisões diferentes, continuavam a acontecer os típicos momentos da vida de um bairro castiço e genuíno, fosse a mão que entrava pela cozinha a pedir meia dúzia de ovos ou duas batatas médias para a sopa ou o pé que entrava pelo corredor à procura de graxa ou de um pano do pó. Menos frequente (mas mesmo assim verificava-se), o empréstimo da lixívia ou do champô também aconteciam, mas de forma mais recatada, pois a janela utilizada habitualmente para este intercâmbio era a da casa de banho, mais dada ao recato, como é óbvio…
Demorou a que o vizinho se habituasse a este quotidiano, se calhar explicável pela sua educação noutros moldes. Mas um dia lá se entusiasmou e também meteu a mão pela janela da cozinha da vizinha e pediu-lhe um molhinho de coentros, se não se importasse (que agora não podia ir ao minimercado) e, também, porque já estava farto da salsa nas migas…
Etiquetas: Face(stories), Normal