27 junho 2015

Arauto


Olhou para o relógio e viu as horas. Não ficou preocupado, pois calculava que o comboio não chegaria à hora. A quase certeza do atraso confortava-o, conferindo-lhe o poder de um arauto. Ainda bem que não o assumiu, pois o comboio foi suprimido. Tornar-se arauto ficaria para mais tarde.

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Trincheiras


A guerra nas trincheiras era desesperante. Moía o corpo e consumia a alma. Estava farto e disposto a tudo.
O fumo em frente era apenas uma impressão, tão esbatido e fluido que era. Ficou alerta. Não se conteve e levantou-se, começando a andar na sua direcção. Não se importava com o desenlace, pois sabia o que o esperava. Aproximou-se cada vez mais e só estancou quando ouviu uma voz: «Quem vem lá?».
_ Sou eu, o inimigo.
_ Entra, pá. Vou desligar o alarme de latas e abrir uma brecha no arame farpado. Não te importas de me dizer a tua patente, para o inventário?
_ Com certeza, não tem problema nenhum. Sou cabo enfermeiro, mas tirei a especialidade de atirador. E tu, qual é a tua?
_ Sou telefonista, mas estou de turno ao morteiro.
_ Tens lume?
_ Não.
_ Então e o fumo que vi, dali da minha trincheira?
_ Estava a fazer café. Queres um?
_ Só se for com um cheirinho.

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Tudo bem


Ausentara-se da escrita para parte incerta. Aventou-se a possibilidade de tê-lo feito para ir comprar cigarros, embora tivesse deixado de fumar há vários anos. Era um mistério. Mas tinha feito bem, reconheciam os pulmões e o bolso. Só ficaram tranquilos, no entanto, quando receberam um postal a dizer onde estava.

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14 junho 2015

Ver o problema

Só se apercebeu de que estava com problemas de visão quando chocou com um problema em plena via pública. Não que o problema fosse por aí além, mas porque estava em 2.ª fila e não deu conta dele, preocupado que estava com encontrar estacionamento para o carro. Começou por amaldiçoar-se por andar de carro, pois tinha a mania e o proveito de andar a pé, e também amaldiçoou a falta de estacionamentos para os utilizadores de viatura própria, que toda a gente sabe são os infelizes do costume por não lhes reconhecerem os seus direitos de terem sempre um lugar para estacionar onde quiserem, se possível amplo, seguro, à sombra nos dias de sol e ao sol nos dias de frio. Mas não ver o problema é que não estava a contar, concluindo filosoficamente que estava na altura de ir ao oftalmologista, ficando na dúvida se deveria deslocar-se a pé, o que levaria mais tempo, ou ir de carro, correndo o risco de não encontrar estacionamento ou de espetar-se de novo de encontro a um problema por não o ver, desconhecendo se ele seria mais ou menos como aquele com que chocara ou se, pelo contrário, seria um problema mais duro, daqueles que costumam fazer mossas a sério e mandar para o hospital com hematomas e fracturas diversas. Por via das dúvidas, resolveu ir a pé.
Chegado ao oftalmologista, tirou uma senha das que se costumam tirar quando se está com problemas de ver os problemas, que eram mais brilhantes do que as senhas habituais para quem só vai ao oftalmologista para lidar com problemas dos olhos, apesar de tudo mais simples.
No início, o oftalmologista fez-lhe as perguntas normais para uma primeira consulta: nome, idade, antecedentes familiares, o que é que o tinha levado ali. Respondendo às primeiras de forma fácil, só na resposta ao que o tinha levado ali é que o médico franziu as sobrancelhas, coisa que o intrigou e que o levou à suspeita de que o oftalmologista também deveria estar ele próprio com problemas nos olhos (o que não admirava), pois as consultas ocorrem com as luzes apagadas e com uns aparelhómetros nos olhos pelo qual espreitam as maleitas dos olhos dos doentes, coisas que, toda a gente sabe, fazem mal aos olhos por esforçarem a vista, que é um sentido que não gosta muito de ser forçado. Mas estava enganado, pois o oftalmologista via muito bem e nem tinha óculos (ficando por isso descansado), sendo o franzir das sobrancelhas um tique que revelara a surpresa do médico quando lhe disse que ali chegara por não andar a ver bem os problemas, querendo ter a certeza se haveria razão ou não para se preocupar ou se já precisaria de usar óculos.
Após uma pausa, o oftalmologista perguntou-lhe há quanto tempo não andava a ver bem os problemas e se isso se aplicava a todos os tipos de problemas: aos pequenos, aos médios e aos grandes. Sobre os problemas insolúveis não iriam conversar pois não eram típicos da idade em que se encontrava, aconselhando, no entanto, a colocar umas gotas por precaução.
Segundo o médico, não conseguir ver os problemas era um problema mais comum do que se pensava, afectando a maioria das pessoas. Isso poderia acontecer por razões diversas, não havendo concordância sobre as causas ou os tratamentos, tendo que se lidar com isso. Para ilustrar o que queria dizer, utilizou uma expressão inglesa para que se percebesse e que foi esta: «I get the picture».
Quando se despediu, sossegou-o e deu-lhe um cartão com o nome e o número de telemóvel de um seu colega e disse-lhe para marcar uma consulta, mas que não se preocupasse.
Ficou satisfeito por o médico lhe ter dito para não se preocupar. E também por não lhe ter receitado óculos, pois conseguia ler perfeitamente o cartão que lhe dera, escrito em letra de médico, que toda a gente sabe que é das mais difíceis de ler, e onde se dizia «Professor F., psiquiatra».

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Bucólico

Ver cair as pingas da chuva do telhado com árvores em volta.

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13 junho 2015

Agressão

Bateu numa pedra e levaram-no a tribunal. Foi absolvido.

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Humor

A piada era seca. Quando a hidrataram, afogou-se.

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10 junho 2015

O apelo


Conhecia o apelo desde criança. Perdera-lhe o rasto entretanto, mas ouvira dizer que fizera um retiro algures. Ainda tentou saber se podia contactá-lo pelo telemóvel mas logo o desenganaram, já não se lembrava por quem, mas decerto por alguém que também conhecia o apelo.
Estava neste pé quando lhe bateram à porta e perguntaram se ela ali que ele morava. Não respondeu logo, pois era feriado e estava a descansar, tendo ido espreitar à janela a ver se não seria alguém a propor-lhe um contrato para a TV por cabo com 256 canais, Internet de não sei quantos megas e três, quatro ou mais cartões de telemóvel, tudo incluído num pacote de promoção, ou uma ou duas almas que lhe vinham trazer a casa a mensagem divina, caso dispusesse de um tempinho para a ouvir. Para o bem ou para o mal não era nenhuma destas possibilidades, mas apenas o seu velho amigo e conhecido apelo.
Depois dos cumprimentos do costume, convidou o apelo para entrar e tomar uma cerveja, pois estava calor. O apelo agradeceu a cerveja mas não aceitou, sugerindo antes uma ida ao café para pôr a conversa em dia, coisa que era capaz vir a demorar algumas horas, calculava, pois tinham passado muitos anos, como se podia comprovar pela cor do cabelo e o tamanho da barriga.
No café acabou por reconhecer que o apelo estava com melhor aspecto do que ele, se calhar por efeitos do retiro, que o apelo lhe confirmou ter sido a decisão mais acertada que tomara na sua vida, depois de ter tido uma crise de consciência. Não chegou a avançar muitos pormenores sobre que crise de consciência tinha sido, se de baixa, média ou grande intensidade, mas calcula-se que não tenha sido pequena porque o levou ao retiro, isto numa época em que a ida para um retiro não estava muito bem vista e em que os transportes não abundavam, mas que era longe. Deixou escapar, entretanto, que a ida para o retiro tinha sido feita maioritariamente à boleia, com excepção da parte final em que foi de burro, pois o terreno era inóspito e manhoso.
A convicção com o que o apelo falou do tempo em que esteve retirado era música para os seus ouvidos, apesar de já estar um bocadinho surdo. Atribuía isso à idade, é certo, mas mesmo assim ainda conseguia discernir as notas todas das pautas e conversas sobre retiros, conseguindo até assobiar algumas delas, desde que não abusasse dos agudos, pois perdia um bocadinho o fôlego. Admitia que também isso fosse consequência da idade bem como de nunca ter frequentado um retiro, pois era sabido que neles uma das competências que se adquiria e treinava nesses espaços e ou locais era a capacidade de respirar profundamente, quer no inspirar quer no expirar. Em qualquer desses momentos, o segredo era fazê-lo profundamente. E isso não era para todos, pois exigia uma técnica, só se aprendendo nos retiros. Como ele nunca fora, não dominava a técnica.
A conversa com o apelo continuou até fechar o café. Quando se despediram, pois o apelo tinha que apanhar o último barco, disse ao apelo que tinha gostado muito de o ver, com saúde e sem barriga, desejando-lhe boa sorte e que, se pudesse, metesse uma cunha para que também ele pudesse frequentar um retiro, pois tinha ficado muito impressionado com a técnica do inspirar e expirar, que lhe poderia vir a ser útil nas arritmias, que o acometiam de vez em quando.
O apelo disse que sim, que não se preocupasse, que logo que houvesse vagas e transporte para o próximo retiro proporia o seu nome e que depois lhe diria, provavelmente por telepatia, que era outra das técnicas que se aprendiam por lá. Mas isso seria só depois da inspiração/expiração profundas.

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06 junho 2015

A pilha (premonição)


Começara a ler Bioy Casares e estava orgulhoso. Chegara ao autor por aproximação, inicialmente de longe, depois mais perto, pois tinha alguma dificuldade em pronunciar o apelido do homem, habitualmente confundido com o de um famoso violoncelista (Pablo Casals), o que originava algumas cenas caricatas quando consultava o catálogo online, pois reconhecia-se como claramente incapaz de interpretar a partitura em si bemol ou ouvir o concerto em lá maior para violoncelo com a Orquestra Sinfónica de Londres, dirigida pelo maestro X, edição Deutsche Grammophon.
A razão para o orgulho era fácil de explicar, agora que começava a incorporar o espírito de escriba marginal. Mas sentia-se um pouco desconfortável, pois mesmo um escriba marginal, parece que sobretudo estes!, têm habitualmente muita leitura e, pormenor nada desprezível!, muita anotação e reflexão sobre os autores que vão lendo, marginais ou não, a maioria das vezes até não, o que não deixa de ser curioso e talvez fique para outras núpcias…
Vinha, pois, a pensar na melhor forma de transcrever tantas e tantas frases, expressões, períodos, parágrafos, páginas inteiras do recém-descoberto e endeusado (estava a exagerar, é certo, mas convinha à fluência narrativa) Bioy Casares, que chegara à conclusão de que tirar notas em cima do joelho, no célebre caderno de folhas A4 dobradas, que às vezes serviam de suporte a profundas reflexões acerca das três mil e uma formas de confeccionar bacalhau, com ou sem azeitonas, talvez não fosse a forma mais eficaz de vir a alcançar algum relativo êxito enquanto escriba marginal, ainda que mais marginal do que escriba. E concluía facilmente que o melhor seria arranjar um gravador, daqueles pequeninos, mas não tão pequeninos como aqueles dos espiões, que mais do que gravadores parecem é alfinetes de gravata ou botões de camisa, quando não corola de flor a imitar que é flor, ainda que de plástico, mas que é gravador. E de espião. Não, os que queria eram aqueles que os jornalistas usavam (ou usaram?), pois com os smartfhones tudo se baralhara, mesmo para fazer e atender chamadas. E era ao estar envolvido neste dúvida que se tinha dado conta de que saíra do autocarro e iniciara a travessia da ponte, que a bem-dizer não o era, mas sim uma passagem aérea sobre uma via de circulação de tráfego, concorrida e preenchida, por sinal, e nos dois sentidos, até porque era início do mês e não chovia. E foi então que a viu, no chão, num momento em que tinha deixado de ver o trânsito nos dois sentidos (embora tivesse uma especial predilecção mais para o Sul, porque lhe lembrava a praia e ainda era longe): uma pilha. Parecia-lhe de rádio, mas não tinha a certeza, pois também poderia ser de um qualquer gadget mais avantajado, que os havia, pensava ou acreditava. Do que tinha a certeza era da premonição e disso não tinha dúvidas: para ser escriba marginal teria que ter um gravador. Desses dos de jornalista. Não dos de espião, pois não tinha o curso.

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05 junho 2015

Treinei um clube e fui campeão. Se mudar de clube, fico bem na fotografia?

Depende do clube e do fotógrafo.

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Como é que posso ver-me ao espelho?

Olhando em frente. Costuma chegar.

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Na alegria e na tristeza...

Ainda está por fazer a história dos que gostam e vivem o futebol com paixão, sobretudo na faceta do amor clubístico, com muitas parecenças (demasiadas!) com o que acontece nas relações amorosas. Basta um rompimento e facilmente se transita do amor ao ódio...

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Mordidela

Entusiasmou-se e deu-lhe uma dentadinha. No ombro. Ela não gostou e meteu-o em tribunal. Apanhou pena suspensa. Mas teria que ir ao veterinário.

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