Conhecia o apelo desde criança. Perdera-lhe o rasto entretanto, mas ouvira dizer que fizera um retiro algures. Ainda tentou saber se podia contactá-lo pelo telemóvel mas logo o desenganaram, já não se lembrava por quem, mas decerto por alguém que também conhecia o apelo.
Estava neste pé quando lhe bateram à porta e perguntaram se ela ali que ele morava. Não respondeu logo, pois era feriado e estava a descansar, tendo ido espreitar à janela a ver se não seria alguém a propor-lhe um contrato para a TV por cabo com 256 canais, Internet de não sei quantos megas e três, quatro ou mais cartões de telemóvel, tudo incluído num pacote de promoção, ou uma ou duas almas que lhe vinham trazer a casa a mensagem divina, caso dispusesse de um tempinho para a ouvir. Para o bem ou para o mal não era nenhuma destas possibilidades, mas apenas o seu velho amigo e conhecido apelo.
Depois dos cumprimentos do costume, convidou o apelo para entrar e tomar uma cerveja, pois estava calor. O apelo agradeceu a cerveja mas não aceitou, sugerindo antes uma ida ao café para pôr a conversa em dia, coisa que era capaz vir a demorar algumas horas, calculava, pois tinham passado muitos anos, como se podia comprovar pela cor do cabelo e o tamanho da barriga.
No café acabou por reconhecer que o apelo estava com melhor aspecto do que ele, se calhar por efeitos do retiro, que o apelo lhe confirmou ter sido a decisão mais acertada que tomara na sua vida, depois de ter tido uma crise de consciência. Não chegou a avançar muitos pormenores sobre que crise de consciência tinha sido, se de baixa, média ou grande intensidade, mas calcula-se que não tenha sido pequena porque o levou ao retiro, isto numa época em que a ida para um retiro não estava muito bem vista e em que os transportes não abundavam, mas que era longe. Deixou escapar, entretanto, que a ida para o retiro tinha sido feita maioritariamente à boleia, com excepção da parte final em que foi de burro, pois o terreno era inóspito e manhoso.
A convicção com o que o apelo falou do tempo em que esteve retirado era música para os seus ouvidos, apesar de já estar um bocadinho surdo. Atribuía isso à idade, é certo, mas mesmo assim ainda conseguia discernir as notas todas das pautas e conversas sobre retiros, conseguindo até assobiar algumas delas, desde que não abusasse dos agudos, pois perdia um bocadinho o fôlego. Admitia que também isso fosse consequência da idade bem como de nunca ter frequentado um retiro, pois era sabido que neles uma das competências que se adquiria e treinava nesses espaços e ou locais era a capacidade de respirar profundamente, quer no inspirar quer no expirar. Em qualquer desses momentos, o segredo era fazê-lo profundamente. E isso não era para todos, pois exigia uma técnica, só se aprendendo nos retiros. Como ele nunca fora, não dominava a técnica.
A conversa com o apelo continuou até fechar o café. Quando se despediram, pois o apelo tinha que apanhar o último barco, disse ao apelo que tinha gostado muito de o ver, com saúde e sem barriga, desejando-lhe boa sorte e que, se pudesse, metesse uma cunha para que também ele pudesse frequentar um retiro, pois tinha ficado muito impressionado com a técnica do inspirar e expirar, que lhe poderia vir a ser útil nas arritmias, que o acometiam de vez em quando.
O apelo disse que sim, que não se preocupasse, que logo que houvesse vagas e transporte para o próximo retiro proporia o seu nome e que depois lhe diria, provavelmente por telepatia, que era outra das técnicas que se aprendiam por lá. Mas isso seria só depois da inspiração/expiração profundas.
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