28 setembro 2014

À hora marcada

A carta chegou por correio normal e com a indicação correcta do destinatário, da rua e do código. Como o remetente não lhe dizia nada, não ligou e atirou-a para cima do molho das outras. Um dia, logo pela manhã, uma senhora, vestido de negro, bateu-lhe à porta e perguntou-lhe se era ali que morava o «Sr. Fulano de tal». Disse que sim e perguntou se havia algum problema, respondendo a senhora que ele estava atrasado, se não a conhecia e se não tinha medo da foice que trazia na mão. Aí ele percebeu, pediu muitas desculpas e perguntou se ainda tinha tempo de fazer a barba, ao que a senhora anuíu. Quando já estava quase a acabar de arranjar-se, descobriu que não tinha uma gravata que combinasse com a camisa e pediu à senhora uma derrogação até ao dia seguinte, pois era domingo e a loja a que queria ir estava fechada. Contrariada, mas nem por isso menos bondosa, a senhora concordou e chamou-lhe a atenção para a responsabilidade quanto aos compromissos, que são para se cumprir, afirmação com que ele concordou, pois sempre pautara a sua vida por eles. Que ela ficasse sossegada, por isso, que amanhã, já com a gravata a condizer e os sapatos engraxados, ela poderia vir sem receio, pois ele estaria à espera que a morte o levasse.

(em dívida para com J. Rentes de Carvalho e Woody Allen, de quem me lembrei agora e que, se calhar, até tem mais responsabilidades...)

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A chuva e o leitor

A chuvada era grande e o homem recolheu-se dentro de um centro comercial, junto à porta de entrada, para lhe permitir ver a chuva a cair, forte e enxurrante mas bonito de ver, para mais estando-se protegido. Como o tempo seguia e a chuva não parava, o homem, previdente e paciente, desencantou um livro dos dois que trazia num saco de plástico, coisa útil para o transporte de mercadoria, qualquer que fosse, e com a vantagem de também proteger quanto à aguada, acabara de ser provado. E pôs-se a ler, abstraído e absorto do mundo, excepto para os efeitos da chuva... Foi-se mantendo nesta espécie de transe até ao momento em que uma lojista do centro o espantou, apiedada, querendo emprestar-lhe um guarda-chuva para uso e com promessa de retorno num dia qualquer, que amável e gratamente rejeitou, mas já não o banco que lhe foi oferecido em alternativa, pois a leitura sai melhor e agradece-se em poiso confortável, que era o que lhe estava a faltar, embora já tivesse lido de pé algumas páginas. E assim foi, acabando por lá ficar até fecharem as portas. Deixara de chover, entretanto.

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Idiomático 35

Ele gostava dela, ela gostava dele e queriam viver juntos. Mas quanto a isto, chegaram facilmente a acordo: «só de casa e pucarinho».
(em dívida para com J. Rentes de Carvalho)

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Slogan

«Pare, escute e olhe».

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27 setembro 2014

A trave

O estádio estava cheio e o jogo estava na segunda parte, mais ou menos a meio. Os lances de perigo apareciam numa e noutra baliza mas, quanto a golos, nada. A dada altura - para saber ao certo é consultar a crónica -, o avançado da casa (o do remate forte e com intenção) recebe um passe do outro avançado da casa (o do passe teleguiado, primo do do remate forte e com intenção) e aplica-lhe um pontapé de primeira, sem deixar cair a bola no chão, não fosse ela magoar-se... Ooooohhhhhhhhhhhhhhhhhhh!!!!!, levantou-se todo o público (a bem dizer só o público dos da casa, pois o que não era dos da casa só estava ali por estar e os centros comerciais estavam fechados - era segunda, com certeza...), decepcionados por o Ooooohhhhhhhhhhhhhhhhhhh!!!! - aqui colocado com copy paste para se ter a certeza de que é o mesmo - não se ter transformado num GOOOOOOOOLO!!!!! (este sem copy paste, mas com 6 (seis!!!!!!) pontos de exclamação, em vez dos cinco 5 (cinco!!!!) do Ooooohhhhhhhhhhhhhhhhhhh!!!! - mais uma vez em copy paste... - e em maiúsculas, que é coisa que não deve fazer na rede mas tem que se fazer no relato, uma vez que se tratava de um GOOOOOOOOLO!!!!! (não, caros ouvintes, desta vez o copy paste não é para aqui chamado, ainda que tivesse sido requisitado...).
E ainda se estava na ressaca do O...h! que não se transformou num G...O! (mais os da casa, faz-se notar) e eis que o imprevisível e o improvável acontecem (mais este do que aquele, é certo), provocando um surpreendente e incrédulo Hhãã! em todo o público, no da casa e no outro que lá estava, que depois se alargou ao da televisão, ao que ouviu e ao que leu: a descida da trave da baliza, ainda zonza e combalida da bolada que levara por causa do remate do avançado do remate forte e com intenção, o tal que esteve na origem do O...h! que não deu G...O!, e que um imprevidente e impreparado escriba de pacotilha não contemplara no início...Já no chão, menos zonza e com a anuência do árbitro, - confirmaram os comentadores e discordaram os dirigentes - a baliza dirigiu-se ao avançado do passe teleguiado e perguntou-lhe se era ele o responsável e ele disse que não, apontando, com a caneleira, o primo avançado do remate forte e com intenção como o causador da zonzice da trave e ela agradeceu, aproveitando para lhe dar um conselho sobre cruzamentos, que estavam a sair pouco tensos, coisa com que ele concordou e que atribuía às botas, que eram novas e ainda não estavam devidamente feitas, ou seja, em futebolês: «teleguiadas». E a trave lá se dirigiu ao avançado, com ele estabelecendo o seguinte diálogo (e verdadeiro, pois consta no relatório do árbitro):
_ Achas bem o que fizeste, pá?
_ Eu...
_ Não sabias que saí do hospital das traves há poucos dias?...
_ Na...
_ Andas a treinar p'ra quê?!... P'ró tiro ao alvo?... P'rá caça às rolas?... Mete mas é golos, pá!
_ A bola era dif
_ Difícil!? Era só empurrar. Mas não... querem fazer bonitos! Assim, vais p'ró banco.
_ Estava apertado pelo defesa...
_ Defesa?! Estavas isolado, pá! Vou-me mas é embora, que é p'ra não me chatear. Da próxima que me fizeres outra... levas! Caio-te em cima, pá!
E o diálogo entre a trave e o avançado do remate forte e com intenção acabou aqui, pelo menos é o que reza o relatório do árbitro mas outros não confirmam, pois garantem que a trave terá pedido ao árbitro um amarelo para o goleador e a respectiva substituição ao treinador, pela falha escandalosa e por já não estar em condições físicas e psicológicas para continuar em jogo. E a trave foi outra vez para o seu posto, mas teve que pedir ajuda aos postes para a alçar, o que estes fizeram com agrado, pois já faziam parte do mesmo conjunto há vários anos, conhecendo-se dos tempos em que ainda vestiam o formato rectangular. Velhotes, era certo, mas ainda rijos, como a rabecada ao avançado tinha confirmado e a ginástica para subir e descer atestavam. E o jogo?!...




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Técnica

Vertia o texto com cuidado, procurando não fazer pingas. Quando isso acontecia, pegava numa borrachinha e ensopava.

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Ossos do ofício

Os cães eram cem e o osso era só um, embora garantisse que chegava para todos. Não lhe deram ouvidos. Ficaram escanzelados. Como cães.

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Evidências

Era uma cadela e, por via das dúvidas, ladrou. Eles não eram uns valentes e, sem dúvidas, fugiram.

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21 setembro 2014

A troca

_ Não estavas de saída?
_ Pelos vistos... não!
_ A guia de marcha não dizia que era agora?
_ Era, mas foi revogada. Como é que soubeste?
_ Pelos jornais.
_ E tu?
_ A mesma coisa. Já tinha trazido a tralha... Tenho que arrumar tudo outra vez e ver no que é que param as modas...
_ O que é que dizem as pessoas?
_ Estão baralhadas... a maioria já começou a trabalhar... Acham que não é justo.
_ Pois... compreendo. E a família?
_ Vai indo... Um bocadinho de pieira, só isso.
_ Bom, é a vida!... Até qualquer dia, Outono!
_ Fica bem, Verão!

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20 setembro 2014

Devo valorizar as pequenas coisas?

Deve. Se forem maiores, corte-as em pedacinhos.

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Viciado

Abriu o jogo: dois duques e três ternos. Voltou a abrir: três ternos e dois duques. Passou.

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Encartado

Tirou a carta mas não foi longe.

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Pexote 10

Apontou o foguetão à Lua e acertou em Marte.

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Aforismo

Saber esperar é uma virtude. Se demorar muito, senta-te.

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Alumiação 2

_ Já alguma vez viu a luz?...
_ Não.
_ Porquê?
_ Sou um buraco negro.

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1 em 2

Foi tiro e queda. O tiro falhou, mas a queda não: deslocou o dedo.

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Xô!

Era um fraldiqueiro, mas foi enxotado. Meteu o rabo entre as pernas e foi aninhar-se noutro lado.

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Despertar

Tinha um despertador na cabeça, que funcionava bem e não atrasava. Dava-lhe corda duas vezes por ano, nos solstícios de Verão e do Inverno, e punha-lhe um bocadinho de óleo nos equinócios da Primavera e do Outono. As formas de acordar eram as habituais, por toque ou música, o que o levou a rescindir os contratos com o cuco do relógio de parede e com o galo do quintal, pagando-lhes uma indemnização e escrevendo cartas de recomendação, que ambos rejeitaram (só as cartas...). Mais difícil foram as conversações com o relógio da torre da igreja, que deixara de recorrer às badaladas do sino, em nome do progresso, e utilizava agora uma versão radiofónica (contrariando as normas do ruído), para apelar aos fiéis. Não se sabia onde arranjara o despertador, mas suspeitava-se que tinha sido numa visita ao Oriente, aonde fora, ainda novo, na comitiva do Marco Polo... Já tinha alguns anitos, é certo, mas continuava a funcionar bem...



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Estilo

MiNi-mal-IsT-a


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19 setembro 2014

Guerra

Dar e levar.

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Encruzilhada

Escolheu o caminho mais fácil e arrependeu-se. Voltou para trás e perdeu-se.

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Marca

_ Sou um Roscofe!
_ Russo?
_ Não, rasca!

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14 setembro 2014

Aforismo

Olha para dentro de ti. Se não vês nada, vai ao oftalmologista.

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Magia ao Luar

Privilegiar o racional em detrimento do empírico ou do espiritual é uma das características atribuídas à cultura ocidental. Vou mais longe: mesmo nas situações mais corriqueiras, nas do quotidiano comum, é desconfortável que alguém nos aponte esse pecadilho da falta de racionalidade nos juízos ou nos actos. Mas isto tem um preço. Que não estamos dispostos a pagar, a maioria das vezes. E, quando o estamos, parece que o entusiasmo não chega a ser muito...
Vem isto a propósito do novo filme de Woody Allen, Magia ao Luar, estreado recentemente, em torno de uma questão de há muitos séculos, que é esta: onde é que reside a vida feliz? A resposta continua a ser procurada...

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13 setembro 2014

Reencontro

_ Olá, sou o Whisful Thinking. Posso dar-lhe uma palavrinha?
_ Não tenho moedas.... Nada.
_ Não é nada disso, sossegue. Não preciso. É mesmo só uma palavrinha. Pode ser?
_ Agora?... Sabe... tenho que ir trabalhar. Pode ser logo?
_ Vá lá! Só um minutinho... Não custa nada e ainda pode ganhar muito! Vá lá!
_ Não me vai mesmo pedir dinheiro nem fazer mal, pois não?... É que se vai, ainda se arrepende... Sou cinturão negro e fui pára-quedista!...
_ Uma alma gémea!
_ «Uma alma gémea»!?... Desculpe, mas não estou a ver bem... Também é cinturão negro?... Fizemos a tropa juntos?...
_ Não, mas podia ter sido!
_ Não compreendo... Não é maluco, pois não?
_ É o que dizem. Mas não estão certos!... É o que espero, pelo menos...
_ «Pelo menos»... E pelo mais?...
_ Isso já é... wishful thinking!...


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Aplainado

Mirou o texto e torceu o nariz. Pegou no formão e desbastou-o. Virou-se para a caneta, mas sossegou-a.

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Fundida

Olhou para a Lua e foi buscar o escadote. Subiu-o, desatarraxou-a e mudou a lâmpada. Voltou a ter lua cheia.

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07 setembro 2014

Lucy

O funcionamento e o aproveitamento das capacidades do cérebro serão sempre temas fascinantes e entusiasmantes para muitas pessoas. Não estranha, por isso, que a ficção, qualquer que seja a forma de que se reveste, se refira a eles recorrentemente, quer de forma explícita, quer mais subtil.
No filme Lucy, protagonizado por Scarlett Johansson, o enredo gira à volta destas questões, em particular sobre uma muito conhecida - a da utilização de apenas 10% da capacidade do cérebro - enraizada e generalizada, pelos vistos não sustentada cientificamente, de acordo com a investigação e o conhecimento neste domínio. Mas isso, como se comprova, não retira capacidade de atracção ao tema, curiosamente até o poderá empolar - e aí pode entrar o filme, por exemplo, ou outras formas de disseminação de algo que se inscreve no campo dos mitos ou lendas urbanas. A investigação e a especulação acerca do que é o cérebro e de como é que funciona vão continuar a manter-se como questões que interessarão a muita gente, iniciados ou não. Grande ou pequeno (cada um decidirá), talvez Lucy dê algum contributo.

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06 setembro 2014

O Avarento

Ocupa um lugar não disputado na memória, que é o de única composição em verso que decorei e continuo a reproduzir sem falhas. Trata-se de um epigrama, sei-o agora, e conheci-o e aprendi-o sob o nome de «O Avarento», desconhecendo, até ontem, o nome do autor, Bocage, e o título original: Epigrama imitado. Não podia estar ausente deste espaço, reproduzindo-se tal e qual, com a vénia e o respeito ao seu autor, bem como (porque não?) a quem possa assentar a carapuça...



Epigrama imitado

Levando um velho avarento
Uma pedrada num olho,
Pôs-se-lhe no mesmo instante
Tamanho como um repolho.


Certo doutor, não das dúzias,
Mas sim médico perfeito,
Dez moedas lhe pedia
Para o livrar do defeito.


“Dez moedas! (diz o avaro)
Meu sangue não desperdiço:
Dez moedas por um olho!
O outro dou eu por isso.” 


Bocage

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05 setembro 2014

Truz-truz

Bateu à porta da memória e foi convidado a entrar. A princípio recusou, mas acabou por aceitar. Perguntaram-lhe como estava e se queria tomar um calicezinho ou uns bolinhos, acabados de fazer. Disse não aos bolos mas sim ao cálice, pois estava de dieta. Conversaram e esqueceram-se do tempo, que não amuou, apesar de tudo. Combinaram voltar a encontrar-se e comer uma bifana ou uma chouriça, umas azeitoninhas e provavelmente uma garrafinha de tinto, caso estivessem para aí virados e com sede.

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Agradecido

O avançado era jeitoso para os golos, mas sofria do coração. Naquele dia tinha a certeza de que meteria um, que lhe dedicaria com um gesto de matador, até porque sabia que ela estaria nas bancadas. E assim foi. Na entrevista rápida, quando chegou a sua vez, não se esqueceu de o mencionar, não contendo a emoção quando pronunciou o nome dela: Coramina!

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