29 maio 2022

Jejum

Dispondo apenas de cascas d'alho, interrogou-se sobre como produzir um texto que não fosse chato e comprido como o peixe-espada... Sem azeite, também, arriscava-se a que o resultado fosse assim para o desenxabido... Ficou-se pelo jejum.

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28 maio 2022

À procura da paisagem interior - amostra 15

É uma frase feita, mas sempre actual: «todos os pormenores contam!», com aspas e tudo, para pôr em prática o que se advoga e não se correrem riscos, «cruzes, canhoto!», mais uma vez com aspas, que a questão das autorias anda brava e quente, escolha-se o adjectivo que se quiser... E era esse o preceito que lhe assomou à cabeça, fazendo pisca e invocando prioridade. Sinal ou aviso, era para seguir. Certo e sabido, não fazê-lo era o caminho para que a coisa não corresse bem, para não dizer mal. Mas não quis saber ou dar atenção...

Pegou na tuba e começou a descer as escadas, com muito cuidado, é certo, que o instrumento, apesar do peso e do tamanho, tinha valor estimativo e necessitava de cuidados maternais, e, por aí, a coisa estava assegurada, mas deixava no ar uma dúvida, nada despicienda: não tinha o mínimo conhecimento de música, notas, pautas, escalas, afinação, jeito, nada!... Mesmo assim, não lhe estando na massa do sangue desistir (que ideia!...), confiava na sua boa estrela e mundividência, habitualmente juntas, e numas instruções que tinha visto no Youtube, num vídeo chinês, aí sim, com conhecimento aprofundado da língua e cultura, sob a forma de aprender a tocar tuba, pelo menos nalgum happening ou soirée, soava-lhe melhor, técnica que aprimoraria com a frequência de ensaios dedicados, iria pesquisar e seleccionar algum perto de casa, ia ser fácil, constatou rapidamente, e para lá se dirigia, agora, para o primeiro ensaio.

Chegada ao local, uma placa (mal colocada, falha tipicamente local, estava visto), apontava, consoante a perspectiva, para uma churrasqueira, olhada do Norte, ou para um cabeleiro, vista do Sul... «Que fazer...?», interrogava-se PI, dando voltas sobre si própria, procurando o melhor azimute de abordagem, descurando o Este, que apontava para uma barbearia, e o Oeste, que assinalava uma grande superfície, com promoções de 50% em enlatados e fraldas descartáveis, restando-lhe a churrasqueira ou o cabeleireiro... «E agora, PI...?», verbalizava ela, audível o suficiente para que alguns dos passeantes, abanando a cabeça, murmurassem, entre dentes «Estes artistas...!?...», mas nenhum se abeirando ou oferendo ajuda, coitada da nossa PI, que o raio da tuba começava a pesar-lhe nas costas... 

A primeira tentação da PI foi ligar-me, a ver se podia ajudar ou desenrascá-la, era um clássico, mas desta vez não poderia contar comigo, ocupado que estava em acompanhar o Senupe a um workshop, duas ruas abaixo da nossa, sobre Física Quântica, matéria que o entusiasmava há algum tempo, constituindo uma pausa programada para o desfastio da tese sobre literatura licenciosa do século XVIII, que se encontrava num impasse. «Que me desculpasse», disse-lhe, mas desta vez não podia, mas, assim como assim, lhe sugeria a churrasqueira, sobretudo o piano de entrecosto...


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27 maio 2022

Lembra-se...?

_ Quantas vezes ambicionou ser alguém...?

_ Desde quando...?

_ Desde que se lembre...

_ Deixe ver... nenhuma!

_ Como, nenhuma...!?

_ Que me lembre... sim. Nenhuma. Também conta a sonhar...?

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22 maio 2022

Aforismo

A culpa, mas também o gozo, é sempre dos ordinários, mesmo que não o sejam.

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Ordinário (ma non troppo)

«Sou um ordinário!», dizia, ao mesmo tempo que tirava o chapéu e fazia uma vénia. Insólito, para não dizer estranho. E, sendo-o, nada melhor do que aproveitar a ocasião e ver até onde é que aquilo nos levaria... Por azar, não trazia comigo a boina, adereço que me facilitava a abordagem a estes casos insólitos... Mesmo assim, faria a abordagem clássica, que poucos conhecem e muitos menos praticam, do: «Desculpe, tem lume...?», fazendo figas para que não me tivesse calhado um adepto da pirotecnia ou dos acendimentos, todo o cuidado era pouco... Mas teria de ser rápido, pois o auto-proclamado «ordinário» fazia vénias a torto e a direito, incluindo às árvores e às pedras da calçada, daí começar a suspeitar de que, mais do que ordinário, estaríamos na presença de um panteísta...

_ Desculpe, senhor, não leve a mal, mas a sua atitude deixa-me intrigado... Por que é que se define como «ordinário»...!?

_ Porque sou. É só isso. Há três gerações.

_ É genético, então...?

_ Não. É nome, mesmo. Próprio, ainda por cima! 

_ E não o incomoda, isso...?

_ Depende do ponto de vista... Do meu, não. 

_ E qual é, pode saber-se...?

_ É o do banal, do comum, do corrente, do trivial e por aí fora... Ou seja: do que se faz, funciona ou se realiza regularmente... É simples!

_ Sim, compreendo... Mas escolhê-lo como nome próprio, há-de convir que é bizarro!?...

_ Pois é, reconheço... Mas aí, teria de mudar de nome!...

_ E quanto à vénia...?

_ É genético.

_ Por parte de...?

_ De uma tia...

 


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21 maio 2022

Apertar o momento

'Medo' talvez fosse uma palavra forte para a situação. Talvez 'preocupação' fosse mais adequada. Sim, preocupação era a certa. Julgava, pelo menos. Mas acompanhada de outra, que também era comum nestas ocasiões: 'fuga'. Não, desta vez não! Enchendo-se de coragem, pegou na chave de estrela e dirigiu-se para o local onde se encontrava a frigideira. Com um gesto, apertou o parafuso do cabo. Um êxito!, ouvindo-se um bater de palmas vindo da casa ao lado, supostamente elogiando a iniciativa de fritar uns bifes ou fazer uma omoleta... Mas não, nada de bifes ou omoletas, apenas um momento «Mcgyver»!...

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15 maio 2022

Só hoje!

O letreiro era elucidativo: 'Dois disparates pelo preço de um', dizia. Passando por ali, coisa inabitual, a curiosidade era mais do que muita e a precisão também!... Entraria para conhecer o produto. Ao balcão, a ler o jornal, o suposto dono, tinha ar disso, de cigarro num dos cantos da boca. 

_ Bom dia!

_ Bom dia, jovem!

_ Obrigado pelo piropo, mas já não sou um jovem... Tenho 75...

_ Mas olhe que não parece nada!... Uns 74, ainda vá que não vá... agora, 75...!? O jovem está a enganar-me - dizia ele, piscando o olho na direcção da mulher, que entretanto assomara a uma porta lateral...

_ Obrigado, mais uma vez. Vim por causa do letreiro. São especializados em disparates, é isso...?

_ Se o jovem quiser... Quer, mesmo...?

_ Sim, se não fosse muito incómodo... Queria conhecer as condições...

_ Então, é fácil: dois pelo preço de um! Bom desconto, não acha...?

_ Visto assim... parece, sim. São frescos...?

_ Sabe... os frescos não são bem a nossa onda, compreende...? - dizia o dono, piscando o olho à mulher, que voltara a espreitar pela porta - faço questão de que na minha casa esse material não esteja disponível, não leve a mal, mas é um princípio do qual não abdicamos...

_ Claro, claro!... Não quis ofendê-lo... E à sua senhora também!...

_ Senhora...!? 

_ Sim, a senhora que aparece ali naquela porta. Não é a sua senhora...?

_ Ah!... sim, a minha senhora... Que estupidez!... Não ligue... Voltamos ao disparate...?

_ Claro! Queria meia dúzia! Pode ser...?

_ Claro, jovem!... E quer com guarnição ou sem...?

_ Com, se faz favor... Mas com molho!...

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Por que é que as minhas estatísticas estão mirradas...?

Talvez por não ser a época delas, será...?

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De mistério em mistério

_ É um mistério...

_ Compreendo... Mas, para si ou no geral...?

_ Nos dois. No particular, também.

_ Três, portanto?

_ Tenho dúvidas... Indo mais fundo... sim, talvez... 

_ A coisa, assim, complica-se...

_ Provavelmente...

_ Voltamos ao princípio...?

_ Qual? O do Verbo?...

_ Não. Da conversa.

_ Pois... Era sobre o quê...?

_ Sobre um mistério... Só isso.

_ Um mistério?!... Não me lembro de nada... 

_ Por conseguinte, um esquecimento...?

_ Diria que sim... É um mistério...

 


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14 maio 2022

Sobe e desce sentado...

Como são todas (ou a maioria, pelo menos), mais uma vez o escriba se sentou em frente ao computador e olhou para o ecrã. Não adiantava fechar os olhos, tal a altura, nem iludir que iria trabalhar sem rede, pese embora se encontrasse sentado numa cadeira... Era, ou julgava que seria, um momento mágico, com mais ou menos prestidigitação, logo se veria... Não estava muito confiante acerca do kit de prestidigitação de que se munira, quase a ultrapassar o prazo de validade, veria se ainda com potencialidade suficiente para sacar um ou dois efeitos de magia branca, porque para a outra não estava virado (nem nunca estivera, aliás). À cautela, munira-se de uma cabeça de alho...

Delineou um roteiro de passeio, memorizado há que tempos, mas mesmo assim recompensador, e pôs-se a andar e a falar com os seus botões, ansiosos pela conversa e disponíveis para o que fosse necessário, desde que auscultados. Quanto às pernas, não seria necessário cuidado especial, tal a padronização e o treino quilométrico que traziam, dias e dias, anos e anos.

Outra coisa era a cabeça, matéria para piar e fiar mais fino, escolhesse-se o critério que se quisesse, mas desejável que algum, escolhendo-se o algum de traço fino, por via do calor, em detrimento do algum de traço grosso, mais adequado ao frio e ao terreno saibroso... Estava-se, pois, no domínio do cavar, domínio, por excelência, excelso, decerto concordarão, mesmo não praticando...

Chegados aqui, estava-se num impasse, mexicano ou talvez não, mas um impasse típico, pelo menos, o que quer que isto signifique ou queira significar... E a cabeça de alho germinou, abrindo-se em flor!... 



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Uma maleita nunca vem só...

_ É hoje que o vamos ouvir...?

_ Não me parece... Estou com afonia...

_ Mas olhe que não se nota!... Não quer reconsiderar...?

_ Estou com afonia...

_ Repito: não se nota! Como é que explica isso?!

_ Também estou com surdez... E falta de vista!

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13 maio 2022

Planando

O passarão planava e observava... O local era privilegiado: boa localização, boas infra-estruturas... Tudo bom, para abreviar a avaliação!... Por isso, decidiu-se por uma borradela com estilo e com cheiro, à laia de toque de autor...

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07 maio 2022

Uma nêspera é sempre uma nêspera...?

Terá de perguntar à nespereira...

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Trocadilhar

Sem saber bem como, tornara-se um especialista de trocadilhos. Uma espécie de guru de pacotilha, mas da marca 'trocadilho'. Não que isso o incomodasse, nada disso, mas apenas a constatação de que tudo poderia ser diferente, era óbvio, à laia de início de história, como a habitual, ou talvez não, «era uma vez...». E a armadilha era esta: em tudo o que pensasse ou fizesse, lá estava o amigo trocadilho à espreita (sempre atento, o macacão!), a ver quando é que podia mostrar-se à audiência... Umas vezes, arrebatando a cena e o palco, outras, igualmente numerosas, em que desatava a fugir palco fora, saltando fosso e cadeiras, com uma ou outra aterragem, forçada, ou talvez não..., no colo de alguma incauta...

Tantas vezes fez isto, que deu por si a dizer «basta!», pelo menos agora, que os tempos parecem ser, mas enganam-nos, de calmaria... Vou ali e já volto, podia ser, mas não é, até porque deixara de fumar, e o mote para a compra de cigarros já não pegava... 


 


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05 maio 2022

Crivar

_ Quem é!?...

_ Sou eu. Venho apresentar-me.

_ A esta hora...?

_ Desculpe... Só me disseram para vir aqui. Se não der muito jeito... posso voltar noutro dia...

_ Passou pelo crivo...?

_ Não... Mas tomei banho, de manhã!

_ Não é isso!... Passou pela grelha? A que está ali, debaixo daquele portal?

_ Desviei-me... Era para passar...?

_ Claro! Como é que quer apresentar-se, se não passou pela crítica!?...

_ Isso da crítica... tem a ver com o meu aparecimento, assim a desoras...?

_ Pois claro!... Onde é que já se viu, uma inspiração com tal comportamento!?... Pensa que é alguma epifania?!...


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