31 agosto 2020

Há limites para o pintar da manta?

 Depende da manta. E do artista...

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Podia ser melhor, mas...5

 ... estava a pensar noutra coisa.

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Com e sem o monólogo

Apeteceu-lhe um passeio e convidou o monólogo para o acompanhar. Não sendo de muitas falas, o monólogo era uma boa companhia num passeio ou numa ida ao cinema. Para as compras não, pois não estava habituado. Quando o acompanhava, tinha uma média de intervenções de duas ou três, dependia dos dias ou do estado de espírito. Compreendia-se. Era mais um observador do que um falador. Nos dias de maior exuberância, levantava o polegar quando concordava ou queria sublinhar alguma coisa importante. Também não se importava se não o convidassem, pois isso permitia-lhe ficar em casa, a ler, coisa de que era um particular entusiasta (levantava os dois polegares, nesta situação). E dava de comer ao Senupe.

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30 agosto 2020

O lançamento a que horas é...?

_ Está para que lançamento...?

_ Para o das 10h30. E você?

_ Para o das 15h45.

_ E já cá está...?

_ Teve de ser... É do meu neto. A patroa ainda está em casa, a fazer a merenda para o almoço.

_ Vão almoçar cá...?

_ Sim. Quer que o convide? 

_ Não, obrigado. Trouxe umas sandes. E de que é que trata, o livro do seu neto...?

_ Parece que é de uns contos... A professora é que sabe. Mas dizem que são bons!

_ Que idade tem o seu neto...?

_ 12. Mas está crescido para a idade!... Quem o vê, não acredita. E o seu, de que é que fala?

_ Não é meu. É da minha prima... Escreve muito bem e profundamente... Tenho muito orgulho nela.

_ Sim, mas de que fala...?

_ Da angústia e do desfasamento existenciais... Mas é um livro pequeno, lê-se bem.

_ E já cá está, a prima escritora?

_ É uma incógnita... Ela gosta de provocar e gorar as expectativas... É artista, percebe...?

_ Estou a ver... E já foi ao médico...?

_ Ao médico...!?... Desculpe, mas não percebo. O que é que quer dizer com isso, se já foi ao médico...?

_ Então o mal dela não é ser envergonhada...!?

_ Não, nada disso! Só não gosta de se expor...

_ Ah, não pode estar ao sol...!?... Pois, nos dias de hoje, tem que ter cuidado... Quer que lhe empreste o meu chapéu...?

_ Não é preciso, obrigado... Estou já a vê-la, ao longe, nem aguento com a emoção!... Vai-me dar uma coisa, eu sabia... Um último adeus, prima!... Um sorriso, pálido que seja, uma carícia, quem sabe?... Faleço!...

_ Não morra aqui, homem!... Então, não se sente bem...?

_ Já passou... Já passou... Não era ela, ainda... Mas este meu maldito coração romântico não aguenta... São muitos anos, sabe...?

_ Então não sei!?... Porque é que não experimenta as termas...?

 




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29 agosto 2020

Como no cinema

Levantara-se cedo. Como habitualmente, abrira a janela e correra o estore. Mas fizera mal, disseram mais tarde os vizinhos. Tudo isto porque, numa feliz ou infeliz coincidência, a descida do estore até determinada altura, por causa do sol, fazia com o parapeito da varanda uma espécie de visor de câmara de filmar, daquelas dos filmes, num formato rectangular. E foi essa similitude que fez descambar definitivamente o juízo do vizinho, garantiram os condóminos, sobretudo a vizinha do 4.º direito, que já andava desconfiada que os fusíveis da personagem andavam prestes a fundir-se... E a partir daí foi o que já se antevia: uma compulsão para olhar para câmara simulada, a apontar para uma nespereira em frente, num plano contínuo, é certo, mas sujeito a cambiantes de luz à medida que sol se movia, a gritar «Acção!» e a barafustar, de forma veemente, às vezes, sempre que um pombo, um melro, ou o estender de roupa interferiam com o plateau. É claro que depois das primeiras sessões a coisa ficou descontrolada, cabendo ao condomínio decidir que fazer. E que o condomínio fez, como é apanágio destas figuras legais, convencendo o condómino realizador a fazer as malas, pois tinha sido seleccionado para um festival de cinema algures, na secção Avant-Garde - tendências que estão a dar, devendo apanhar o comboio das 15h15. Que não se preocupasse com a máquina de filmar, pois já tinham uso para ela, pelo menos enquanto estivesse bom tempo: matinés a um preço simbólico, com distanciamento físico e distribuição de milho para os pombos.

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Metáfora (com giz)

As expectativas não eram famosas... Sem se aperceber, deixara-se enredar pela manobra do adversário e ficara encurralado... Porém, um relance de esperança vislumbrou-se, permitindo a tacada final... E foi às três tabelas que a preta entrou no buraco.

 


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Desconsolo

 Olhou para as suas unhas e abanou a cabeça. Ainda não seria hoje que tocaria guitarra...

Vocação radical

_ Então o meu amigo é que é um autor de culto...!?

_ Às sextas. Só da parte da manhã.

_ E nos outros dias, o que é que faz...?

_ Sou repositor de armazém.

_ Como é que chegou a autor de culto...?

_ Fui a uma entrevista numa editora.

_ E gostaram do que escreve, está visto, começando logo a publicá-lo!...

_  Não propriamente...

_ Ai não!?...

_ Não. Mas disseram-me que tinha perfil.

_ E para quê, pode saber-se...?

_ Para autor de culto estátua.

_ Para fazer o quê, mais propriamente...?

_ Ficar imóvel no átrio, só numa perna. Como os flamingos.

_ A perna direita ou a esquerda?

_ Alterno.

_ E qual é o objectivo...?

_ Servir como metáfora sobre a condição de autor. É um alerta.

_ Vai continuar...?

_ Até que as pernas me doam.

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28 agosto 2020

Marketing literário

Embora pequena, nunca lhe passara pela cabeça que a sua coroa de glória enquanto escritor obscuro seria a divulgação de um livro seu numa revista cor-de-rosa, nas páginas dedicadas às sugestões de leitura, paredes meias com as receitas e a preparação de mezinhas caseiras. Se essa proximidade lhe dava um certo conforto, agora que começávamos a aproximar-nos de tempos mais frescos, por outro lado também lhe causava alguma angústia, daquelas para que não costuma haver mezinha, caseira ou não, provocada por uma alma sensível às coisas das literaturas e um apurado sentido crítico sobre os critérios que determinam esta classificação das obras, uns dias emparelhadas com uma receita de lombo de porco e, noutros, quase a sentir o aroma fresco e desinfectante de uma tisana de camomila e mel, com uns pozinhos de erva cidreira. É certo que nunca estamos contentes, característica inata ao ser humano, mas que já se aceitava uma redefinição dos critérios de selecção era verdade, atestavam-no as receitas e as mezinhas, também elas, porque receavam que a proximidade do seu livro pudesse interferir com o espírito e essência dos leitores da revista. Talvez por isso, pela manifestação desse desconforto, ficara estabelecido uma solução de consenso: o livro iria para a secção de cosmética e não se falava mais nisso. Mais a mais, estava muito maciço. Um pouco de creme adelgaçante não lhe faria mal.


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Estava a pensar fazer o lançamento de um livro, mas tenho uma dúvida: tenho que contratar um especialista em balística?

 Só se o livro entrar em órbita. Se não for o caso, um fogueteiro resolve-lhe o problema.

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27 agosto 2020

À procura da paisagem interior - amostra 3

O tom da mensagem parecia inócuo, mas era só aparência. Conhecendo-a como a conhecia, a mensagem «Preciso de ti» era uma espécie de chamamento para apresentação ao serviço. O que não vinha nada a calhar, note-se, pois tinha pensado num dia de completo ripanço, daqueles «à séria», como os magnatas ou os especialistas do ripanço. Enfim, lá teria que ir...

Como já conhecia o caminho, não foi difícil pôr-me lá. Desta vez não levava nada, mas estava a contar que a Paisagem Interior tivesse preparado qualquer coisa. Quase de certeza que sim, que ela não deixava essas coisas por mãos alheias... Honra lhe seja feita!

Não a visitava há algum tempo, é certo, mas estava tranquilo e descansado, pois se tivesse havido qualquer problema ela tinha-me avisado. «Pas de nouvelles, bonnes nouveles», costumava-me ela dizer, naquela sua pronúncia de francês arrastado, digna de uma diva de tempos idos, mas ainda a causar alguma impressão nos utilizadores de óculos graduados, sobretudo estes, mais vocacionados para as referências francesas ou com elas relacionadas, incluindo a Torre Eiffel e o Festival de Cannes. Não que eu não a tivesse tentado desviar várias vezes (ainda não tinha perdido essa fé...) para as ondas e o look anglo-saxónico, mas sem êxito, até ao momento, pois a cada tentativa dessas ela vinha-me com a lengalenga que eu já ouvira e conhecia de ginjeira do: «Ha, toujours Paris... l'amour, le glamour, a Piaff!, etc., etc, etc....». Para mim uma pepineira, para ela um monumento de cultura, cosmopolitismo e saber viver. Nada a remediar por esta parte e por enquanto...

À medida que me aproximava da casa, uma pequena vivenda, com um jardim em estilo mediterrânico, ia-me apercebendo do pormenor das portas e janelas se encontrarem semi-abertas, com um ângulo de abertura em simetria entre elas, aparentemente de forma não casual. Era estranho, pois sempre me lembrara da tendência dela para o escancaramento completo, «Para arejar sem medos», dizia, e não nesta versão «semi». Teria que lhe perguntar.

Encontrava-se à porta, sorridente, de boina e de bata cheia de tinta, e deu-me três chochos, parece-me que uma moda francesa (lá está!) e convidou-me a entrar. Foi buscar uma garrafa de vinho (escusado será dizer de que nacionalidade), verteu-me uma porção para um copo de pé alto e revelou: «Dá os parabéns à tua amiga, que agora é pintora e vai fazer uma exposição. Não te importas de me encaixotar os quadros...? Depois convido-te». E pôs- se a andar, não sem antes dar um jeito num dos alinhamentos de uma das janelas, que se tinha deslocado do local exacto onde deveria estar. Parece que era algo que tinha a ver com feng shui, ou lá o que era, sob pena de isso poder escangalhar o karma... Mas isso ficaria para outras núpcias...


 



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Diálogo (em baixo)

A página em branco piscava-lhe o olho, mas nada... Voltava a piscar, aumentando a intermitência, e aí as coisas tornavam-se mais difíceis, pois se estava já no domínio do código Morse... Correndo-se o risco da intercomunicabilidade frustrada, a solução era encontrar outra forma. Como a gestual ou a verbal, por exemplo. Talvez por ser mais fácil, pensava, tentaria a gestual. Mas o ensaio não fora famoso, quiçá mesmo desastroso, porque à medida que procurava fazer compreender à página em branco o que é que pretendia com o piscar de olho, esta respondia fechando os olhos e abanando a cabeça. Com a gestual também não se iria lá... Restava a verbal.

_ O que é que queres...?

_ Hã...?

_ O quê...?

_ Não percebo nada...

_ Não responde... Deve ser surda...

 



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26 agosto 2020

Meia dose

 _ Arranje-me aí um tema...

_ Actual, requentado ou intemporal?

_ Os requentados têm muitos dias?

_ Não lhos aconselho...

_ Dos intemporais, pode ser meio...?

_ Do início ou do fim?

_ Talvez do início, parece-me... Acompanha com quê?

_ Salada e um bocadinho de arroz.

_ É indigesto...?

_ Não. Foi salteado um bocadinho, com azeite virgem, e leva umas aromáticas. Faz bem ao ego.


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Mal dormido

Deitara-se bem disposto, disponível para os sonhos cor-de-rosa. Mas só lhe saíram pesadelos, daqueles escuros e cinzentos, um horror!, comentou com as amigas. Que foram meigas e tolerantes, mas não fizeram desconto.

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Aforismo

Todo o animal é de hábitos. O estúpido também.

 


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Escrito na madeira

Abraçou a marcenaria e sabia que o seu destino não era o fado. Mais do que mesas e cadeiras, dedicou-se às estantes e ao que iriam mostrar, especializando-se na utilização do formão e da plaina. Mas não contara com uma proposta que alguém com olho para o negócio lhe fez, já não se recordava quem, mas empreendedor, sem dúvida, garantindo-lhe que o futuro estava no desbaste das peças, à procura de uma arte e de um conceito minimalista que não se escangalhasse à primeira rabanada de vento ou espirro mais veemente. E que experimentasse outros materiais, não tivesse receio. Como textos, por exemplo. Começou por vacilar e recusar a proposta, em princípio, pois o seu negócio era mais pregos, travessas, entalhes e afins. Para os textos havia os doutores, da mula ruça ou não, mas doutores, versados nessa difícil arte de colocar palavra a palavra e obter um texto. Agradecia, ficava muito sensibilizado, mas teria que descartar a oferta. Porém, como reconhecimento pela sugestão e totalmente de borla, ira fazer uma estante para o filho do empresário colocar o computador, a playstation e o phone. Mas o raio da proposta ficara a encher-lhe a cabeça... Aconselhando-se com a patroa, lá se dispôs a experimentar. Modesto, iria começar por baixo. Pediu ajuda aos especialistas do marketing: que lhe fizessem um cartaz, como os dos filmes, mas que pudesse ser pregado nas árvores, com os seguintes dizeres: «Desbastam-se textos finos e compridos e transformam-se em curtos e grossos. O orçamento é grátis».


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25 agosto 2020

Matinal

Acordou cedo e pensou. Não que isso também não acontecesse quando acordava tarde, mas era mais raro. Era uma forma diferente de acordar e de pensar, só isso. Pensar outra coisa, só se fosse tarde. A cair de sono.

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23 agosto 2020

Tratamento mediterrânico

Deitou uma pinguinha de azeite nas articulações da escrita e esta agradeceu. Quem lho tinha sugerido fora um endireita, daqueles dos bons, com a mão feita à custa de muitos pulsos abertos, espinhelas caídas e ossos desencaixados. Com uma costela de artista, facilmente detectou uma falha entre o sujeito e o predicado, com fortes probabilidades de vir afectar o complemento directo ou indirecto, dependia do alinhamento. Aconselhava-se azeite virgem, de preferência, na impossibilidade poderia ser refinado, mas com moderação.


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Tréguas

A maçã bichosa olhou para a sua rival com o calibre certo e a cor brilhante e sugeriu uma lagarta como aperitivo.


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16 agosto 2020

Uma arte esquecida

 A arte de polir esquinas não era uma actividade socialmente reconhecida. Não percebia porquê. Mais ainda, com a sensibilidade vigente, em que se privilegiam actividades com pouco ou nenhum impacto ambiental. Inconformado, decidiu meter mãos à obra e consultar os especialistas. Mas a hora ainda não era apropriada, por demasiado cedo. Talvez mais para o fim da tarde, começo e entrada na noite fosse mais adequado. Aguardaria, por isso. Até lá, dedicar-se-ia a fazer um reconhecimento das esquinas mais frequentadas pelos polidores. Sendo muitas, nem por isso deixava de existir um ranking de esquinas para polir: esquinas de primeira, para os mestres da arte, de segunda, para os ajudantes, e de terceira, para os iniciados. E esta distinção era reprodutível nas costas de cada um dos grupos dos polidores de esquinas, mostrando maior ou menor rugosidade na pele do lombo, uma impressão digital inequívoca sobre o número de anos que se levavam na profissão. E não estava estudado!... Daqui a uns anos, adivinhava-se já, lá viriam as carpideira do costume a lamentar-se pela extinção ou quase de uma profissão ancestral... Também pela moda arquitectónica, reconheça-se, com a tendência para o arredondar das formas.

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15 agosto 2020

Um dom não, outro sim

Cedo descobrira que tinha um dom comum: uma voz de cana rachada. Mas não desistiu. Obcecado em fazer carreira no competitivo mercado das vozes de cana rachada, decidiu recorrer ao apoio de especialistas, procurando saber se a sua voz de cana rachada seria mais do domínio do tenor, do barítono ou do baixo. Todos os que consultou lhe afiançaram que a sua voz era de cana rachada. Apenas... Para fazer carreira, talvez fosse mais aconselhável o assobio...



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Peça sem acto

Num dia de sol, com pouco vento, uma partida de um jogo realiza-se à sombra de uma árvore. Como protagonistas, 4 pessoas, e alguns mirones, que contribuem para o cenário e mandam de vez em quando uns bitaites, mas em off, e se mantêm a uma distância de segurança. Opta-se por um cenário urbano, por estar em maioria, mas também pode ser em cenário rural, mas aqui as árvores têm que ser outras. O jogo representa uma metáfora e os participantes espelham uma perspectiva como outra qualquer, mais crua e enigmática, mas com hora marcada para encerrar. Por opção despersonalizam-se referências a figuras ou nomes reais, porque inibidoras da liberdade de quem vem assistir ou queira encenar a peça, pois é disto que se trata, mas também pode vir a ser outra coisa. Ouvem-se as três pancadas regulamentares: pum, pum, pum! (peço desculpa, foi sem querer...).

Jogador 1 - Façamos a chamada: pronto!

Jogador 2 _ Também.

Jogador 3 _ Idem.

Jogador 4 _ É mesmo necessário, isto...?

Jogador 1 _ Sem isto, não há jogo. É uma espécie de invocação. Regras do clássico.

Anónimo 1 (num murmúrio) _ O clássico não é no Domingo...?

Jogador 3 _ Shiu! O público deve ouvir e calar. Quem não gosta, faz favor de sair.

Jogador 2 _ Quem é a dar?

Jogador 1 _ És tu.

Jogador 4 _ Este jogo é um bocadinho chato. Não podíamos arranjar outro?

Jogador 1  _ Não! Faz parte da tradição.

Jogador 2 _ Jogamos ou quê!?...

Jogador 3 _ Podemos falar, não...? Ou isto é uma ditadura...?

Jogador 4 _ Se for, não quero... Passo.

Jogador 2 _ Neste não podes... Tens de assistir.

Jogador 1 _ De preferência ao que está em cima da mesa... Vê lá, hã...?

Anónimo 2 _ Estes tipos não as conhecem... Que podões!...

Jogador 4 _ Era capaz de estar mais inclinado para um jogo assim... mais intelectual! Alguém quer experimentar...?

Jogador 1 _ Sim, mas não hoje... Joga. E abre os olhos!...

Jogador 2 _ Já baralhaste...?

Jogador 3 _ Agora que falas nisso... No jogo da semana passada, deu-me uma espécie de branca...

Anónimo 2 _ Sim, da falta de jeito...

Jogador 2 _ Que ainda se mantém, parece... Viste bem o que fizeste...?

Jogador 4 _ Como é que queres que ele saiba...! Já viste o tamanho da branca...?!

Jogador 1 _ Então, não bebemos nada...?

Jogador 4 _ Agora não... No fim.

Anónimo 1 _ Eu já bebia uma... Ainda faltará muito...?

Jogador 2 _ Quem ganhar esta, paga a despesa...

Jogador 4 - Mas não era a leite de pombo...?!

 

Cai o pano (neste caso, algumas folhas, simbolizando a efemeridade e piscando o olho à possibilidade de rejuvenescimento). A luz do sol escoa-se lentamente.





 



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14 agosto 2020

Tem de ser, Senupe

Abriu o armário das surpresas e espreitou lá para dentro: o cheiro a mofo, ligeiro, aconselhava a fechar a porta com delicadeza.

Tentaria o moleskine (artesanal, nada de confusões, com folhas do mais genuíno papel de fotocópia, da edição de 1973, coloração ligeiramente amarelada), porto seguro de inspirações (e algumas expirações, também), algumas epifanias e profusas listas de compras para supermercado, detalhadas por tipo de produto, peso, e conteúdo nutricional. Mas debalde, também: «Encerrado para férias. Por favor, não incomode».

Que fazer...? 

Fixando-se no 'debalde', algo lhe espicaçava a curiosidade. Um som...?, Uma referência...?, Uma memória...?

Olhou para Senupe e não gostou do que viu... Iria buscar o balde. À falta de melhor, daria banho ao cão.



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13 agosto 2020

Palavra amiga

 _ E o que é que diz ao tempo...?
_ Que tenha juízo, que estude e se porte bem. Ah, e que respeite os pais!
_ ?...

_ Que foi, esqueci-me de alguma coisa...!?


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12 agosto 2020

O Paraíso, Provavelmente

 E ao fim de uns meses de ausência das salas, pôr o pé numa delas para ver o filme de um cineasta palestiniano, Elia Suleiman, que não conhecia, com o delicioso título O Paraíso, Provavelmente, se calhar foi a melhor forma de celebrar o visionamento, de máscara, é certo, mas reconfortado com um filme em que o nonsense, a ironia, o burlesco e um questionar sobre os quotidianos, aparentemente tão distintos mas radicalmente idênticos nos seus fundamentos e manifestações, detectados por um olhar que se posiciona e questiona, vá-se lá a saber porquê?, e a que nem a máscara contém... Por onde andavas tu, espécie de Hulot de Tati, de Pamplinas e, porque não?, de uns rapazes que se chamavam Monty Python?... Para quem duvida, talvez o paraíso exista...

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11 agosto 2020

Balada por um gajo que vai por uma rua e cai redondo

Um gajo vai por uma rua e cai redondo. Alguém diz: «Ia ali um gajo pela rua e caiu redondo». Mas ninguém sabe quem é o gajo que ia pela rua e caiu redondo. E os outros gajos que vão pela rua ficam pacificados pelo facto de ninguém poder dizer deles que eram um gajo que ia pela rua e caiu redondo...

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10 agosto 2020

Sublinhar ou não sublinhar? (that is the question...)

_ E o que é que o traz por cá, hoje...?

_ Preciso de melhorar a minha técnica do sublinhar. 

_ O traço é grosso ou fino?

_ Nem grosso nem fino. Depende do bico.

_ Lápis ou esferográfica?

_ Lápis, na maioria dos casos. Esferográfica, às vezes. Marcador, esporadicamente, depende do texto e do formato (mais fácil nas fotocópias).

_ Em livros seus ou também em emprestados?

_ Meus. Nos emprestados não me atrevo... Talvez uma vez ou outra, muito, muito raramente, mas fico desconfortável. Procuro evitar.

_ Como lida com aquela história do respeito pelos livros...?

_ Não penso muito nisso... É importante...?

_ Pode ajudar... mas não é garantido. Sublinha muito ou pouco?

_ Bastante. Faço mal?

_ Nem bem nem mal... É uma questão de técnica. Pode trabalhar-se... Vamos começar pela página em branco.

_ Mas essa não tem nada escrito...! Para que é que a vou sublinhar?!

_ Para treinar a mão. Com trabalho e afinco chega lá.

_ E é eficaz...?

_ Não sei. Mas pelo menos não se esquece!


 


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09 agosto 2020

A galope (talvez noutros tempos)

 A manada de frases selvagens pastava tranquilamente na pradaria. Mas esta tranquilidade era aparente, apenas perceptível para quem sabia ler os sinais. Com a mudança do vento, a nossa presença fora detectada. Foi o suficiente para desfilada se iniciar. Não havia tempo a perder. Com o laço armado,  a única hipótese era acompanhar o galope da manada e apanhar uma que justificasse o desafio... Mas a pileca recusou-se.


 


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Ciência aberta

 _ Admitamos que sim, que foi assim que as coisas se processaram...

_ Não o admitir, seria problemático...

_ Concordo. Mas temos que manter uma atitude open mind...

_ Certo. Mas sempre sujeita a validação...

_ É óbvio. Só assim é que se avança...

_ Concordas, então, que perguntemos aos dois...?

_ Nada a opor.

_ Na magna questão do ovo e da galinha, qual apareceu primeiro?


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Fixemo-nos no número

 «325!». É este o número mágico. Não me perguntem porquê, mas é o número mágico que se perpetua de geração em geração, remontando a uma filiação ancestral que vai até ao filósofo Pitágoras, jurava a pés juntos uma tia, tia-avó. Como fonte é o que temos. Seja como for, apesar da tia-avó, que também afirmava que mantinha contactos extra-sensoriais com vozes do Além e também de mundos mais próximos, mesmo que afastados por distâncias medidas em anos-luz, a verdade é que esse número, o 325, assumiu sempre para mim conotações místicas, em especial naqueles dias mais apropriados a essas manifestações, os chamados «dias místicos», como hoje, dia em que redijo esta memória futura para o manuscrito, esse futuro best-seller... Adelante! E essa conotação evidenciou-se logo na escola primária, sobretudo a partir do momento em que descobri o fascínio e as implicações da utilização sapiencial da prova dos nove, não é para todos, reconheço, mas uma espécie de propedêutica para quem tenha propensão mística. No caso do 325, «era só fazer as contas», como dizia o outro, e aplicá-la de acordo com as regras que se perpetuavam: 3+2=5+5=10, noves fora=1, lá está, a unidade, não havia nada que enganar e era um sinal!... Para bom entendedor nestas coisas das místicas, o caminho para o misticismo tinha-se aberto... Mas há mais sequências com esse resultado, afirmarão os mais cépticos (os menos são mais flexíveis), uma rapaziada difícil de contentar, na verdade, mas com os seus méritos, há que reconhecê-lo. Na sua objecção, esqueciam-se do pormenor do equilíbrio, facilmente detectável no 325, mas já não no 721, por exemplo, ou no 901, no 820, e por aí fora... E, convém não esquecê-lo, qualquer um deles sem uma tia-avó a garanti-lo...


(in Estava Lá, Mas por Acaso, pp.325)

Nota: qualquer utilização do número 325 para fins não apropriados à mística ou ao misticismo não podem ser imputados ao autor destas linhas manuscritas, que em tempo oportuno registou a respectiva patente e se comprometeu, segundo o código pitagórico, a só o utilizar para esses fins.

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08 agosto 2020

Anatomia

 _ Não há muita coisa que ver...

_ Nem ali, onde está aquela mão...?

_ Onde?!

_ Ali, perto daquele pé.

_ Aquele, junto do braço...?

_ Não, o que está por detrás da cabeça.

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Se fizer uma publicação viral tenho que a vacinar?

 À cautela, não acha preferível optar por uma não viral?

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Aura em teste

Olhou em volta e procurou um sinal. Nada no chão, na parede, nem no tecto. A última esperança residia no rodapé. E lá estava ele, de facto. Se havia certezas na vida, o sinal no rodapé era um deles. Bom e fiel rodapé, quantos e quantos sinais tinhas fornecido, de forma desinteressada e solidária!... E este sinal era aquele de que estava a precisar, não havia dúvidas: um sinal gold, quase a fugir para o platina! Verdadeira caixa de correio de sinais, a ranhura do rodapé fornecia as condições necessárias para que os sinais referenciassem a sua presença, na maioria das vezes sob a forma de folhetos promocionais, que uma traiçoeira aragem (sempre traiçoeiras, as aragens...) conduzia ou induzia para lá, para a frincha do rodapé, à espera que uma alma caridosa ou que para lá caminhe o venha resgatar de uma cura de pó ou de encontrões de vassouras ou aspiradores, quando não pontapés de frustrados jogadores de bola ou de empreendedores dos sete costados derreados por mais uma crise e à espera de uma mão salvadora do pai Estado, sempre presente, em sonhos ou pesadelos, decida quem quiser e puder... E o folheto dizia: «Resgate a sua aura. Faça o teste e tenha um bom dia». Nem mais!

Já há algum tempo que andava preocupado com o estado da sua aura. Não se incomodara, ao princípio, pensando que seria coisa normal, fruto de uma  vida assoberbada com realidades pouco dadas à aura, mas necessárias, mesmo assim, à manutenção da alma titular da aura. Em suma, acabaria por acomodar a aura às circunstâncias, com mais ou menos barriga, peito descaído ou rugas, mas preservando, dentro do possível, que isso se reflectisse na aura. Isso é que não! Mas chegara o momento de avaliar a sua aura e, quiçá, encontrar outras auras com as quais pudesse partilhar algumas das angústias, receios e sonhos com que toda a aura se confronta, habitualmente em dois, três momentos ao longo do dia, ao levantar, à hora das refeições e ao deitar. Iria fazer o teste.

A sala onde se encontrava era muito agradável, mobilada com gosto e um suave encanto, a revelar mão de alguém, por certo, com uma aura recomendável e candidata a apresentação à família. Estava com a sua gente! E a sua aura também concordava, pois piscara-lhe o olho, de forma maliciosa, não era normal, mas revelador do contentamento que mostrava, pedindo-lhe desculpa por querer descobrir as maravilhas que o local oferecia, uma verdadeira cornucópia de guloseimas, passe a expressão, para auras à procura de conforto e libertação. Perdi-a de vista, por conseguinte, e dirigi-me ao balcão para obter o teste e proceder ao pagamento.

O teste era acessível e respondi-lhe sem necessidade de cábulas. Conhecido o resultado, «aura dispersa», (não me surpreendia) com áreas claras e escuras mais ou menos equivalentes, seguia a proposta para um plano individualizado e eficaz, não havia dúvidas, tudo pelo módico preço de X, pagável em prestações suaves, gostamos de ter o aqui e força, que a sua aura vai agradecer-lhe! Agradeci e disse que ia pensar. Quando procurava a minha aura para regressarmos, não quis vir. Descobrira que a vida comigo não a satisfazia na sua plenitude de aura, agora que se descobrira como aura radiante. Despediu-se sem hard feelings e desejou-me felicidades. Retribui, é óbvio, e disse-lhe que estava contente por ela já saber exprimir-se em inglês. E o espaço vazio anteriormente ocupado pela minha ex-aura iluminou-se...


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Mai' nada!

 Chegou e clarificou as coisas. Se não fosse suficiente, ameaçou, recorreria à lixívia.

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Horizontal, quatro letras

 _ Desafio-a para um duelo!

_ Ok, aceite. E qual é a arma: faca, espada, machado, pistola, fisga...?

_ Essas não. Estão ultrapassadas. Palavras!

_ Muito bem. Mas de quais: das incisivas, das cortantes, das rombas...?

_ Estou mais treinado nas rombas... Você não se importa...?

_ Ok, rombas. E marcamos para onde?

_ Pode ser nas cruzadas de um diário...?

_ Não pode ser nas das revistas...?

_ Porquê?

_ Tem mais glamour.

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The beginning

 _ Qual foi o ponto de partida?

_ O do 3º parágrafo da penúltima página.

_ Mas isso já era praticamente no final!!...

_ A história era curta.

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Sol com nuvens

 A ex-sniper olhava da janela com um ar triste e distante. Muitas memórias lhe passavam pela cabeça... Mas não havia nada a fazer... Reformara-se. No beiral em frente, um passarito pousou e começou a chilrear. Estava sol. Dia lindo! Uma, duas nuvens encobrem-no parcialmente. O pilrear extingue-se. Espreitando discretamente para a rua, a bengala do avô retira-se...

 

 

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02 agosto 2020

Essa frase já não mora aqui

Despassarado, para não dizer outra coisa, saiu porta fora sem se aperceber de que ela estava a meter a chave. Sendo inevitável, o choque e o atirá-la ao chão foi concretizado. Pouca coisa, pois ela era praticante de ioga e estava com os músculos e a flexibilidade no ponto. Mesmo assim, o mínimo que se exigia era um gesto de cavalheirismo e uma mão para ajudar. Foi o que o autor fez, pedindo desculpa. Mas esqueceu-se da ordem canónica e isso foi-lhe fatal. Quando recompôs os seus elementos pela ordem certa, a frase despediu-se e saiu de casa.

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Pincel(adas)

_ Você tem muitas coisas daquele artista famoso... Ai, daquele... Do coiso!...
_ Ah, sim... Sei quem é. Bondade sua... Talvez uma das narinas, a esquerda..., e as vírgulas.
_ Só isso...?! A ponta do nariz não...? As vírgulas?... Nem um pouco de exclamações...?
_ Penso que não... Uma vez ou outra, talvez uns travessões, mas coisa pouca e só a meio da frase... Discurso directo é pouco provável. Mas pinto muito bem!
_ A sério!?... Não fazia ideia... E é mais fachadas ou interiores?
_ Paisagens. Impressões, percebe?
_ Não estou a perceber: você é dos livros ou da pintura?
_ Dos dois. Depende da disposição.
_ Não sofre de azia, pois não...?

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01 agosto 2020

A múmia era verde, mas a bicicleta não se sabe

Na minha profissão temos que ter cuidado com a credulidade. Também na vida de todos os dias, é certo, mas no exercício de uma profissão ligada às notícias o risco e a atenção têm que ser maiores. Não que não nos satisfaça o bizarro ou o inverosímil (muitas vezes o procuramos para o expor), nada disso. Dependendo do artista, a coisa até pode correr bem e ajudar a dar uma perspectiva invulgar daquilo de que se fala, descreve ou relata. Depende do artista, do contexto e também do público, que também aqui é soberano, mesmo que não se aperceba. Para o bem ou para o mal, a escolha por este tipo de matérias sempre me cativou e granjeou grande fama (pelo menos na minha rua, as manifestações são eloquentes e inequívocas desse entusiasmo e excitação sempre que está para sair uma peça, e tenho muitas!, algumas enterradas no quintal, num lugar secreto, que só eu sei, e destinadas a virem a ser um dia descobertas por povos alienígenas, mas dos bons e avançados, para ficarem a perceber um pouco melhor a nossa maneira de ser e de estar, talvez um primeiro passo para a paz e a concórdia universais, nunca se sabe...). Mas disperso-me, eu sei, pecadilho que a minha idade autoriza e os leitores aceitam com bonomia, já mo disseram e acredito. Adelante!
Corria um desencontrado boato de que uma múmia, vestida de verde, andava a passear de bicicleta algures pelos campos e afins, desconhecendo-se quem seria e o que quereria. Na altura, estas notícias não eram invulgares (vá lá a saber-se porquê...), mas que os espíritos cépticos e avançados olhavam de lado e com sobranceria para eles e isso ajudava pouco, para não dizer nada. Impunha-se que alguém com o meu perfil e tarimba (era um facto que tinha estado envolvido, jovem nos meus vinte e tal anos, em explorações arqueológicas realizadas numa necrópole algures ali para os lados de... agora tive uma branca, mas era longe, e onde, curiosamente, tinham sido encontradas múmias, não «paralíticas» (aqui não resisto a introduzir uma piada célebre de um show televisivo que passou pelas berças e arredores anos atrás), mas em perfeito estado de conservação). Mas as ligaduras não eram verdes! E isto já era um indício... Importante, como se verá.
Eu próprio um entusiasta de bicicletas, resolvi pegar na pasteleira e dar uma volta por montes e vales a ver se encontrava a dita múmia vestida de verde. Não foi difícil, confesso, mas tive que esperar que acabasse uma etapa de contra-relógio em que estava a participar. Acabado este, e ainda a bufar, resolvi abordá-la de rajada, para evitar fugas ou tergiversações, embora já sabia qual seria o resultado.
_ Então o amigo ciclista é que é a múmia de que se fala...?
_ Eu!?... Quem é lhe contou tal disparate?
_ Não fuja! Então e essas ligaduras todas à volta do corpo, para que é que servem?
_ Ah, isto!... Dei um tombo num dos treinos... Caí por uma ribanceira abaixo... Mas não parti nada. Foi só pele.
_ Então, confirma que não é uma múmia vestida de verde?
_ Sim, confirmo.
_ Então é o quê?
_ Sou artista de circo, em regime ambulante, e aspirante a ciclista, nas horas vagas. E gosto muito do verde, daí a cor das ligaduras. Não quer ir dar uma volta de bicicleta?
_ Claro! Mas posso levar a amarela?



(in Estava Lá, Mas por Acaso, pp.3428)



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Sou produtor de uma variedade regional de chocheira, a tchutcheira, e queria saber se poderei vir a beneficiar de apoio comunitário. Posso?

Só se tiver a visão e o calibre adequados.

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Sensi(ha)bilidades

_ Execute a tarefa!
_ A tiro ou no cadafalso?
_ Execute-a, já lhe disse.
_ Com ou sem venda?
_ Quer ir para a rua...?
_ Não me dá muito jeito...
_ Então porquê?...
_ Está a chover.
_ Quer poncho ou guarda-chuva?
_ Não podem ser os dois?

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