19 julho 2020

Antes da ordem do dia...

A história era sempre a mesma. Mesmos protagonistas, mesmos enredos, mesmos tempo e espaço. Já cansava um bocado e as gorduras acumulavam-se. Iria pedir um orçamento e um lifting. Até que isso acontecesse, ia dar uma volta ao quarteirão. Para não cair na rotina da escolha habitual, iria seleccionar um quarteirão umas ruas mais abaixo, da mesma época, mas com acabamentos diferentes, pelo menos quando se olhava de esguelha, palavra plebeia, ou de perspectiva, léxico mais talhado para a arte ou a arquitectura. Mas Senupe estava reticente... Não era por mal, mas por causa de uma literatura recentemente entrada na casa, vagamente erótica, mas do século XVIII! E, neste campo, Senupe não abdicava, viesse quem viesse, incluindo o dono, que era eu. E compreendia-se: a literatura vagamente erótica do século XVIII tinha sido a tese de mestrado de Senupe, nos idos anos loucos dessa época dourada, ela própria, os anos 80. Estava visto: a volta ao quarteirão teria que ser sem Senupe...
Mal tinha iniciado o passeio, encontro uma das vizinhas, jovem ainda nos seus 84 anos, mas possuidora de uma persistente teima que se manifestava quando me encontrava, já nem valia a pena dissuadi-la, e que era a de me considerar seu conterrâneo, engenheiro e administrador, possuidor de talentos imensos, incluindo o de apreciador de figos ou de uvas, dependia dos dias. Por mais que lhe dissesse que não, que era mais das literaturas, de melões e de pêssegos, não havia maneira de a convencer... Não que daí resultasse um impasse, nada disso, mas apenas um hiato no que à sequência da conversa poderia acontecer, fosse uma deriva sobre as infiltrações na fachada, a idade do telhado e se podia dar uma mãozinha para acelerar o pagamento da pensão lá pelo conselho dos ministros, ou como é que estávamos em matéria de chuva, melancias, almanaques e curas para as dores nos ossos, mesmo que em tempo quente. Mas hoje a conversa fora mesmo para as uvas e os figos, quando me presenteou com uma tirada do melhor da sabedoria popular, obviamente que de experiência feita e mediante reflexão aprofundada, acerca da brandura, aplicada a uma saudada corrente de fresco logo pela manhã, aplicada e preciosa para o amadurecimento dos figos e das uvas. Que beleza!.. E que sorte!... Amanhã, já saberia como começar o conselho dos ministros...

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