28 maio 2017

Quem paga?

Não pensara nas consequências. Ao contrário, as consequências fizeram-no. Alguém teria que pagar... Onde é que já se vira, logo naquela ocasião?! O mordomo não poderia ser, pois não se tratava de um crime e aquilo não era um filme. O pai também não, muito menos a mãe. Restava o padrinho. Sim, esse podia ser, pois tinha o perfil, mas não estava para aí virado, mas sim para a madrinha, que conhecera nesse dia e por quem sentira logo uma atracção. Talvez os convidados não se importassem...

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27 maio 2017

Águinha com açúcar


A crise existencial bateu-lhe à porta, rota e esfomeada. Também a lamentar-se de que «assim não dava», «não podia ser» e que «tinha sido roubada». Quanto às primeiras queixas não havia novidade, mas o mesmo não se podia dizer da última, pelo menos que se recordasse. Olhou para o relógio e analisou se podia condoer-se com a crise, se teria tempo, pois era uma pessoa muito ocupada e tinha um compromisso daí a pouco... Depois de analisar concluiu que sim, que daria um tempinho para ver o que podia fazer com a crise existencial. Convidou-a a entrar e disse-lhe que não se esquecesse de limpar os pés, pois quem lhe fazia as limpezas só viria daí a dias e os sapatos da crise vinham cheios de porcaria, não sabia se animais se de problemas vários, mas provavelmente alguns não vacinados ou desparasitados... A crise emocionou-se e começou a entoar um canto de hossanas a quem assim a recebia, «tão boa alma e sem preconceitos», que «já não havia pessoas assim», solidárias e preocupadas com o seu semelhante, mesmo que crises. À medida que a ouvia começava a arrepender-se e disse-lho, mais como aviso do que ameaça, incentivando-a a deixar-se dessa conversa, que já não tinha paciência... A crise ouviu-a, arregalou os olhos e começou a balbuciar, chamando pela mãe e pelo pai, «que nunca conhecera», dizia ela, e não tardaria nada começaria a chorar, previu logo, o que de facto aconteceu... As coisas não estavam a começar bem e isso não lhe agradava. Respirou fundo e procurou intimamente dar-se ânimo, caso contrário ainda se «passava dos carretos» e escorraçava a crise aos pontapés e aos berros, teria que controlar-se. Talvez um copinho de água com açúcar resolvesse o problema…

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21 maio 2017

Folha de couve


O telefone tocou. Isso fê-lo acordar, sobressaltado, mas também surpreendido, pois julgava que já não tinha telefone fixo, apenas telemóvel, o que se verificava que não era verdade, com o toque irritante de sempre, que não ajudava e que também o confrontava, pois quase que apostava que o teria mudado, quando ainda o queria manter. Não havia nada a fazer senão atender o maldito, que não se calava. Era a chefe. Começou por achar estranho mas ela tirou-lhe as dúvidas, repetindo, vezes sem conta sobre «O que é que andava a fazer, se não tinha juízo ou qualquer outra coisa parecida!?»... Deixou-a falar, dizendo «Sim, sim, está tudo controlado». Era mentira e ela sabia-o. Estava em falta, acabou finalmente por reconhecer. Não era fácil mas era um facto e, naquela profissão, isso contava. Sossegou-a dizendo-lhe que lhe mandava o texto antes do meio-dia (já eram onze…), mas tinha confiança nas suas capacidade e rapidez de escrita, que já lhe tinham feito ganhar prémios noutras folhas de couve como aquela onde trabalhava agora, como avençado às segundas, terças e quartas, como voluntário às quintas, sextas, sábados e domingos, uma opção que fizera quando se viu sem projectos e a precisar de encontrar um sentido para a vida, de preferência a direito e sem muitos obstáculos… Mas a chefe não estava disposta a largá-lo, desta vez recorrendo às sms, como pôde constatar ao ligar o telemóvel, depois de o ter conseguido encontrar debaixo de uma pilha de roupa vária.
A mensagem dizia «N te esqças do promtdo!!!», acompanhado com aquelas bolinhas amarelas que mostravam uns olhitos e umas boquinhas a fingir, método que a chefe adoptara há algum tempo depois de frequentar um workshop sobre «Comunicação Eficaz e Motivação dos Trabalhadores na Era da Internet», que ela, na sua boa fé, julgava moderno e fofinho, mas que a maioria da rapaziada achava que não, mas não havia nada a fazer pois ela é que era a chefe e a dona da folha, e, quanto a isso, era do mais conservador que havia, mas não se lhe podia dizer pois era muito sensível e facilmente largava uma lágrima, que ela teimosamente reconhecia como um problema de alergia aos pólenes, se bem que também acontecesse em outras épocas em que esse flagelo não é costume aparecer, mas isso eram contas de outro rosário…
Também o mail lhe dava conta do desconforto, dele pela falha, dela pelo prazo, pois recebera um que ela lhe reencaminhara sob o título «Cães e gatos de companhia fundam associação. Proprietários contra», o que ele interpretava como um sinal e um incentivo para um tema que se adivinhava polémico e susceptível de interessar à opinião pública, cada vez mais empenhada nestas questões fracturantes, se bem que os seus temas de eleição não fossem propriamente esses, indo da problemática da apanha do bivalve até à tensão na península coreana, passando também, ainda que mais ao de leve, pelas matérias da gastronomia, ética e afins, com particular ênfase neste aspecto à cultura e à música de assobio, de que se tornara um especialista, pese a imodéstia, nos tempos idos da militância por esses lados, ao fundo, de quem desce...
E com isto eram 11h45… Olhou para o mail e escolheu «Anexar ficheiro». Antes de clicar em enviar, decidiu-se pelo título «A angústia do autor face aos prazos». Pediu um recibo de leitura e esqueceu-se da bolinha. Quanto à folha de couve, não sendo muito dura, fazia uma bela sopa.

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17 maio 2017

Posicionamento

_ E onde é que se posiciona?
_ Ali em cima, no telhado.
_ No telhado?!
_ Sim, no telhado... Não posso?
_ Pode, claro. Mas é estranho, sabe?
_ Não, não sei... Porquê?
_ Não estávamos à espera dessa resposta... Nunca tinha acontecido, só isso.
_ Compreendo... Mas estavam à espera de quê?
_ Algo mais do tipo: ao centro, mais de direita, claramente de esquerda... coisas assim, está a perceber? Não devemos esquecer-nos de que este é um inquérito de opinião... Mas diga lá: é uma posição de princípio, com certeza?
_ De princípio é, tem razão... Está interessado em saber?
_ Sim, claro!
_ É por causa das vistas, t'a a ver? Lá em cima é melhor.

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16 maio 2017

Voa, voa!

Olhou em redor e concluiu que o local era apropriado, sem obstáculos. Pegou na máquina e montou-a no tripé, clicando duas ou três vezes para ver se funcionava, pois já era um bocadinho antiga, do tempo dos avós. Funcionava. Teria que fazer o teste do vento, o que não era difícil. Estava bom. Tinha chegado o momento pelo qual ansiara. Voltou a olhar e resolveu que seria naquele momento. Sem sobressaltos e com confiança. Livre! Retirou o relógio do pulso e lançou-o ao ar. Sorriu, pois provara o que queria: o tempo voava.

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14 maio 2017

Lá-lá-lá

Algo aconteceu e não foi de somenos. Apesar de muita gente não lhe ligar puto, o certo é que havia sempre uma mágoazita, disfarçada de desdém, pelos resultados e pelos suspiros (mais uns!). Nada que não fosse comum ao país e à rapaziada... Ontem, a coisa estaria preparada para mais do mesmo. Mas, inexplicavelmente, não foi bem assim. Lá para a meia-noite, mais coisa menos coisa, uma das maldições caía, a do Festival da Eurovisão, essa mesma, o que é que pensavam?... Sem pirotecnia, sem contorcionismos ou jogos de luzes, apenas música, letra e intérprete, com nome se calhar apropriado. Parabéns ao Salvador, Sobral de apelido, mais a irmã, pela vitória no Eurofestival.

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12 maio 2017

Ao de leve

Começara por se encantar com o nome, talvez pelas reminiscências à palavra «beleza». Não que as feias não fossem dignas de igual crédito, mas a reminiscência que invocara, de natureza sonora, é que era mais difícil de concretizar. Fosse como fosse, a subtileza, pois era dela que se falava, era um conceito delicado, mais doce e puro que uma gota de orvalho, que era um substantivo concreto, e nem aparecia todo o ano, ao contrário dela, por incrível que fosse.

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06 maio 2017

Aposta

Nas apostas, a vantagem era nitidamente para a Cultura. Mas enganaram-se, pois a vitória sorriu à Natureza. E sorriu também ao jardineiro e ao agricultor (que jogavam em casa, naqueles meses). Chegou a suspeitar-se de insider trading, mas não se provou.

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