30 outubro 2016

Recreio

Naquele dia, Napoleão decidiu passar a chamar-se Maradona. Agora só falava Espanhol e marcava golos com a mão, não a de Deus mas a sua, de Napoleão. Maradona não gostou e tirou-lhe a braçadeira de capitão, no seu caso marechal, e mandou-o para Santa Helena, dando-lhe dinheiro para o táxi, pois era um coração bondoso e as moedas pesavam-lhe, dadas por Judas. Napoleão irritou-se e mandou Maradona «à la merde!», que era a maneira francesa de lhe dizer que tinha ficado sentido. Acabaram por fazer as pazes e jogar uma sueca, mas Maradona perdeu-se de amores por uma dama, de copas, por sinal, chamada Josefine, e Napoleão fez uma renúncia, cortando-lhe os paus, que até eram dele, note-se, mas lavava a honra. Aqui os enfermeiros intervieram e declararam o fim do recreio, que Napoleão e Maradona se dispunham a cumprir caso pudessem convidar o Nobel, Bob Dylan, a cantar ao lanche uma das suas musiquinhas, assim lhe conseguissem ligar.

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29 outubro 2016

Tenção

Era uma terra como as outras, com pouca criminalidade. A sua sensação de segurança variava consoante as condições meteorológicas, razão pela qual só saía quando os dias estavam chuvosos, considerados mais seguros. E nesse dia estava a chover. Mesmo assim, foi assaltada e tiraram-lhe o guarda-chuva, roubo feito sem violência e mediante pedido de desculpas. Nesse dia S. Pedro devia estar zangado com os mortais e dava-lhes chuva com fartura, o que para si não era bom, agora que lhe tinham roubado o chapéu de chuva. Quando chegou a casa estava cheia de febre e decidiram chamar um médico, que teria de vir de fora. A chuva fora muita e cortara a estrada, tornando impossível a vinda do médico. A assaltada piorou e acabou por morrer, vítima de pneumonia. No funeral, não passou despercebido o envio de uma coroa, com um bilhete escrito de forma atenciosa: «Os meus sentimentos, mas precisava mesmo do guarda-chuva».

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27 outubro 2016

(A)variou

_ Variou.
_ De flanco?
_ Não. Da cabeça.

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23 outubro 2016

Saltou-me a tampa. E agora?

Procure debaixo da mesa ou atrás das portas. Deve lá estar.

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Anfibologista


Apresentava-se como «Anfibologista», salvaguardando-se sempre com o dizer de que não era o seu nome. Perante a estranheza de quem era confrontado, com mais ou menos conhecimentos, precisava melhor e definia-se como tal, subalternizando a apresentação, o que não era fácil, pois primava por ela. A quem se mostrava interessado em conhecer a história (havia sempre quem, novo ou velho, homem ou mulher, deste mundo ou do outro), fazia uma vénia e, por obséquio, afirmava que ela começara no Ceilão, deitando a fugir para ver aonde ficava, nem muito longe, nem muito perto, mas dava para ver ao lusco-fusco. «E então para quem usa óculos?», perguntavam os incrédulos, com jeito para o embaraço de terceiros, sobretudo se não estiverem a ver. «Aí - dizia -, a visão que se cuide, pois pode estar mal graduada, talvez por copos ou por um argueiro!».

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22 outubro 2016

Pressão

Atirou-se ao trabalho com quantas ganas tinha, embora não fossem muitas e não estivessem treinadas. Apesar de animadas (pelo menos num primeiro momento, que é aquele que precede o aparecimento de bolhas e o ânimo arrefece), subsistia a dúvida se o empenho iria para além desse momento. A energia sentia-se e o suor começava a escorrer, pingo a pingo, numa cadência sincronizada, até ao expelir do vapor, solto e sibilante, gritando do acumular de pressão... E só então o seu trabalho de panela podia dar-se como concluído.

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16 outubro 2016

Rock(alhada)

Formara o gosto musical a ouvir e a acompanhar as grandes bandas de rock dos anos 70. Fartara-se de viajar e de vivenciar, mas agora estava calmo, numa fase zen. Mas o bichinho do rock continuava lá, sobretudo quando da meditação passava para o quotidiano corriqueiro. E aí punha-se a ouvir as bandas de então, num gira-discos que tinha herdado de uma tia. Deixara de ir aos concertos, até porque o mosteiro onde se isolara estava longe do circuito das digressões das bandas. Mas como já dominava a arte da meditação, achou que por uma vez não fazia mal dar um salto ao concerto mais próximo, que se iria realizar a cerca de 1500 km do mosteiro onde residia. Com um bocado de sorte e sem trânsito na auto-estrada da meditação, estaria de volta antes da meditação da manhã, um pouco antes do pequeno-almoço. Já não iria de blusão e de cabelos pelos ombros, como se compreende, mas estava certo de que a fruição e o gozo do concerto seriam como antigamente. Provavelmente iria sozinho mas não fazia mal, até porque as predilecções musicais não eram uniformes no mosteiro. À cautela, não fosse o diabo tecê-las (uma reminiscência do seu período bizantino), iria deixar um recado no placard do átrio, junto do gongo, a dizer que não contassem com ele para a meditação da noite, mas que não ficassem preocupados, pois ia só dar um saltinho à outra vida, pois tinha ficado com uma certa saudade desses tempos...
No dia do concerto ali estava ele, feliz e contente, disposto a viver o momento como único. Vivia intensamente cada acorde e canção, de que se recordava com precisão e nostalgia, ensaiando com os dedos o acompanhamento das mais conhecidas, que conhecia de cor e salteado. Para o que não estava preparado era para a potência das colunas, como iria verificar brevemente, quando lhe saltaram as lentes dos óculos e a placa dos dentes aterrou no colo de uma groupie, não tendo depois lata para pedir que lha devolvesse, e que desmaiara depois de ter gritado a plenos pulmões que estava «abençoada» (na língua dela blessed, pois era americana) julgando que tinha ganho um recuerdo (a americana também tinha umas luzes de espanhol) do baterista, o seu ídolo, saber-se-á mais tarde, mas que curiosa e estranhamente ainda era possuidor de dentadura completa, vá-se lá a saber como e porquê...
Apesar do episódio das lentes e da placa, o nosso herói estava contente. Talvez para isso concorresse a máxima que tinha aprendido, logo nas primeiras sessões da meditação zen, que lhe dizia o seguinte: «Nunca desesperes, caso uma porta se te fecha. Logo, logo uma janela se abrirá, mesmo que possa demorar um bocadinho», que julgava já ter ouvido numa outra vida, o que era provável, pois tivera muitas, e a globalização acabava por fazer o resto. Sendo assim, só haveria que encontrar a janela e perguntar-lhe, já agora, onde é que se podiam arranjar novas lentes e colocar uns implantes.

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O talher, esse opressor

A crise forçara-a a servir. Não tivera problemas com o novo serviço, mas o horário era prejudicial à sua outra ocupação de escritora e de comentadora da actualidade, que chocava, frequentemente, com as exigências da função de servir, apesar de tudo a principal fonte de remuneração. Era um dilema, ético e/ou existencial consoante a perspectiva. Lá procurava safar-se como podia, muitas vezes à custa do estômago, procurando melhorar a situação e as circunstâncias. Como era agora o caso, em que a urgência de um cozido se impunha face à desordem do mundo.

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15 outubro 2016

Verbosidade

Fora atacado pela verborreia e a maioria das pessoas presentes entreolhou-se, apesar de alguns se terem atirado para debaixo das mesas gritando pelo fim do mundo... Felizmente não era o caso, comentar-se-á mais tarde, mas apenas um pequeno desequilíbrio, provocado pela ingestão de algum laxante oratório, muito frequente para aquelas bandas... Costumava passar, à custa de silêncio e de chá de erva do suporte.

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Marinhar

Navegava em águas turvas mas nunca perdia o pé.

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Devoto

Quando se tratou de escolher de que queria ser patrono escolheu o das causas perdidas, defendendo-se com a fé.

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Agarrado(a)

Pediram-lhe a sua compreensão mas recusou-se a dá-la, pois tinha-lhe custado a ganhar.

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Não estica

Inventara tudo. Agora estava com um problema de espaço para a vida real.

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Aforismo

Nem sempre se desce aos infernos. Às vezes sobe-se, por escada ou elevador.

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13 outubro 2016

Nível

_ Não queria baixar o nível...
_ Porquê?
_ Por princípio, educação, por pudor... sei lá.
_ Parece-me uma posição um pouco... rígida, talvez, para não dizer outra coisa...
_ Acha... mesmo?
_ Para dizer a verdade, acho.
_ É estranho... não fazia ideia que isso assumisse esta dimensão... não compreendo... a vontade não é muita, percebe...? Sou uma pessoa de princípios...
_ Porra, para os princípios! Já viu bem o trabalho que fez?! O nível do chão não está ao nível da porta, pelo menos três palmos... Como é que se entra, não me diz?
_ É fácil: baixando o nível. Mas sou contra!

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12 outubro 2016

Diop(trias)

Começara a usar óculos. Decidiu homenagear o momento e foi buscar uma garrafa. Conseguia agora ler o rótulo: era vinho! É certo que o paladar ainda era de confiança, mas nunca fiando..., o melhor era ler. Orgulhoso do seu novel (não confundir com o Nobel) estado brindou, entusiasmando-se com o ganho das dioptrias. Mas teria que ter cuidado, pois nem tudo o que parecia era, apesar do aumento. Era o caso do dinheiro, que nem com os óculos aumentara...

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09 outubro 2016

Vertigem

Debruçou-se sobre o problema e teve uma vertigem. 

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A campanha para as vindimas é subsidiada pelo Estado?

Não. É mais pelos cidadãos, dependendo da hora e do tipo de vinho.

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08 outubro 2016

Mirada

A culpa foi da mirada, concluir-se-á mais tarde. Se foi da pressa ou da paralaxe ... não se sabe.

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Aforismo

Nem sempre, a culpa morre solteira... Nalguns casos, até se comprova que casou com comunhão de bens...

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05 outubro 2016

Agente

A missão era fácil, igual a tantas outras. No entanto, subsistiam dúvidas sobre o porquê. Mas era para isto que os treinos tinham servido: para lidar e ultrapassar os obstáculos, ainda que sob a forma de dúvidas. As ordens tinham sido claras: introduzir-se no laboratório, apanhar o envelope e deixá-lo em cima da mesa do superior. Como habitualmente, o trabalho foi executado de forma eficiente e sem deixar pistas. O nome no envelope despertou-lhe a atenção. Conhecia, como os outros agentes, as técnicas de abrir e fechar um sobrescrito sem deixar vestígios. Procurou dominar-se. Mas decidiu trair e abriu o envelope. Estava grávida.

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02 outubro 2016

Lá longe


Estava com disposição para arriscar. Os resultados dos testes tinham sido bons e achava que era o momento. Dispunha ainda de uns dias de férias e ficara satisfeito com o estado da mochila, que não usava há anos, mas que se mantinha impecável desde que a comprara, numa feira, e de a ter experimentado sistematicamente no trilho dos festivais e acampamentos pela paz e não só… Estava tomada a decisão, portanto.
Quanto à escolha do transporte, estava dividido entre o espírito da aventura e a comodidade. Ambos tinham os seus atractivos, mas teria que fazer escolhas. Talvez um mix de transportes fosse a solução mais indicada, incluindo a pedestre, até para não perder o vale de milhas que tinha ganho num concurso promovido por uma marca de botas. Para se decidir iria optar pelo velho método da moeda ao ar, que estava testado e não precisava de calibração, e nunca falhava nos momentos e nos impasses, existenciais ou não. Por isso, lançou a moeda e saiu cara, decidindo-se definitivamente pelo espírito da aventura. Agora, havia que começar a tratar e a preparar as coisas.
Para a merenda decidira que não contaria com a ajuda da mãe, que estava habituada a prepará-la à sua maneira, mas que talvez não fosse a mais indicada para o percurso e as especificidades da rota. Com o pai era capaz de ter mais sorte, mas tinha que ter cuidado com os conselhos e as recordações de quando tinha estado na tropa, pois o seu programa de «busca do eu», que estava pressuposto na viagem que se dispunha a fazer, era capaz de ser incompatível com marchas forçadas, racionamento de água e dormidas ao relento, onde calhasse, fizesse frio ou calor. Não. As coisas tinham que ser de outra forma e ter em conta as calorias, as articulações e o colesterol, fazendo esforços pela preservação do ambiente e contribuindo para o desenvolvimento sustentável, que também se aplicava ao eu… Se calhar, pensou, talvez fosse preferível perguntar ao primo e à prima, ligeiramente mais velhos do que ele, mas com outra experiência de mundo e de vida, apesar de agora estarem mais aquietados e conscientes de que as coisas tinham mudado. Iria falar com eles sobre esta questão da merenda e, já que lá ia, pedir-lhes algumas dicas sobre a melhor forma de ir até «lá longe», o seu verdadeiro destino, note-se, mas de que não conseguia obter uma localização precisa, por mais GPS ou buscas na Internet que fizesse, nas várias línguas. E este era um problema, bicudo ou rombo não sabia, mas um problema.
Antes de ir falar com os primos tentaria com os amigos saber onde raio ficava «lá longe», se próximo se distante, acedível por mar ou por terra, se com bons acessos ou caminhos de cabra, qualquer coisa ou tabuleta, uma inscrição, uma garrafa de náufrago, um pombo com anilha, qualquer coisa… Até lá, teria que fazer os deveres… E este, o da redacção, não era dos mais fáceis. Começaria assim: «Lá longe é um local muito bonito, quase paradisíaco. Já lá fui.».

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01 outubro 2016

À janela


O carro não ia com muita velocidade, pois era zona de passadeiras. Como estava calor, as janelas iam abertas. No lugar do co-piloto, um cão de raça indistinta, mas assim mais para o rafeiro, recostado e com a língua de fora, só lhe faltando uns óculos de sol, à laia de galã motorizado. No passeio, toda tremelicoques, uma cadelinha assim para o fino, de raça igualmente indistinta, mas selecta, erguendo a sua patita para um xixi perfumado (ou talvez não), gesto e odor suficientes para excitar o masculino canídeo, que não se conteve e soltou um ansioso béu-béu, salivando até mais não… Na plateia, os transeuntes ansiavam pelo desfecho, suscitando suspiros e uma ou outra lágrima, de tão comovidos, mas todos fazendo figas para que o carro parasse e o amor canino acontecesse, o trabalho ou a escola podiam esperar… Mas não foi o que aconteceu. Furioso (para não dizer outra coisa…), o dono da cadelinha vociferava contra a «pouca vergonha!» do cão e dos transeuntes, «uns depravados e uns porcos!», «gente baixa e sem educação», estava bem de ver, «uns malcriadões!»… Não se contendo, um dos visados virou-se e mandou-o «ir dar banho ao cão», neste caso cadela, mas perdoava-se-lhe… E o cão lambeu-lhe a mão.

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