29 setembro 2020

Há quem prefira de outra forma

 _ Como é que quer as dúvidas?

_ Salteadas, num bocadinho de azeite.

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27 setembro 2020

Matinal rebate

A batidela na porta soou de fininho, como se estivesse muito longe. Mesmo assim, suficientemente audível para um ouvido apurado, daqueles em que a técnica se refinou através do colocar a mão por detrás da orelha, em forma de campânula artesanal. Como descrição não era nada mal e dava uma percepção visual a quem lê, preocupação de quem escreve, embora muitas vezes esquecida. Mas com a mania do embelezamento e de deixar correr os dedos pelo teclado, à laia de pianista, corria o risco de deixar pendurado quem batera à porta, mais minuto, mais hora, e isso não estava certo. Iria ver quem era e, se lhe agradasse, abriria a porta.

Abriu-a e a custo conteve um «Oh!», pois não estava preparado para quem viu, mais a mais a hora tão matinal - o Rebate!, esse mesmo, que lhe aparecia com má cara e envergando um sobretudo, daqueles de surrobeco, mas impressionante! E que entrou logo a matar, perguntando-lhe se não tinha vergonha!...

Enquanto procurava a vergonha, que o Rebate não gostava de esperar, perguntei-lhe se já tinha tomado o pequeno-almoço e se queria ficar para almoçar, pois ia fazer pataniscas e sabia que ele se perdia por elas... Mas ele, moita!, não dizia nada e perguntou se lhe arranjava um copo de água, pois precisava de tomar um comprimido para a tensão que eu, grande ordinário!, me comprazia em ser o principal responsável pela subida, sabia-o ele bem, e voltava a perguntar-me se eu não tinha vergonha pelo que lhe fazia e os embaraços que frequentemente lhe causava, sempre com a mania das piadas e das alusões, sempre a descambar para os ínvios caminhos da indefinição e do duplo sentido, das palavras e das cenas cinematográficas, pois também já lhe tinha chegado aos ouvidos mais esse novo delírio, essa fantasia louca, como eram sempre as que acalentava, com mais ou menos picante, azeite, vinagre ou qualquer especiaria de trazer por casa, uma vergonha!... Mas ia-se acalmando, aos poucos, e porque o comprimido começava a fazer efeito, também, preparando-se para se aninhar no sofá e passar pelas brasas. Quando acordasse, já nem se lembraria do que dissera...


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Troca-me aí uma economia

 _ E qual é a moeda de troca...?

_ Garnisés!

_ Como é que disse!?... Garnisés!?

_ Sim, garnisés. Há problema...?

_ Não... não. Problema nenhum. Só achei estranho... Sabe que eu produzo livros de filosofia, não sabe...?

_ Sim, claro. Por isso é que a troca me interessa. Se fosse de outra área, não perdia o meu tempo... Então, fazemos negócio...?

_ Os garnisés estão à altura...?

_ Sim, claro! Arranjei-os já com os prolegómenos feitos, não se preocupe. Comigo, o material é de primeiríssima qualidade! Disso não abdico...

_ Tem referências...?

_ Todos os anos mando uma meia dúzia deles para as melhores salas de teatro ou de ópera!... Só primeiros tenores tenho aí uma dúzia... Chefes de orquestra, uns três ou quatro, e dois astronautas! Mas agora quis inovar, pensar fora da caixa, está a perceber...? Ir à procura dos fundamentos, do ser, por aí fora...

_ E como é que os costuma preparar...?

_ Na maioria das vezes, no formato coq au vin...

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26 setembro 2020

Rivalidade em azeite e vinagre

Começava a ficar farto de ser pau para toda a colher... Como nesse dia, em que o chefe lhe dissera para avaliar a profundidade e o significado oculto de duas listas de compras, feitas no mesmo dia pelo chefe rival... Pensara não o fazer e mandar tudo para aquela parte, mas a cozinheira velha dissera-lhe para não o «fazerrrrr», pois isso «poderrrrria» ser visto como «embarrrraçoso» e, bem feitas as contas, precisava do emprego... Que se lixasse!

Olhando para o conteúdo das listas, a análise não parecia difícil. Numa, listavam-se os legumes: couves, brócolos, alhos franceses, agriões. Noutra, as leguminosas: feijões, grão, lentilhas. Em nenhuma delas, qualquer referência a carnes ou bebida. Mas era precisamente isso que intrigava o chefe que lhe encomendara a tarefa semântica... «O que é que o rival estaria a tramar, desta vez...?», dissera-lhe ele, limpando as mãos ao avental, depois de ter acabado de fazer uma maionese. Para mim, parecia óbvio: o que o outro chefe estava a pensar, seria uma de duas coisas - ou uma sopa ou uma salada fria. Para o meu chefe, porém, a explicação era simples de mais, convindo não esquecer que o rival tinha duas estrelas Michellin e ele só tinha uma e meia... Que não descurasse a guarda e as intenções do rival (que eram manhosas e ardilosas, segundo ele) e que depois falaríamos outra vez, mais perto do jantar... Mas que agora convinha dar saída ao pedido da mesa sete, dose e meia de cozido, com umas entradinhas de semântica picada, salteadas em azeite, para dar sabor...

 


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Aquilato muito bem. Terei futuro...?

 O aquilatar é de confiança...? É que se não for...

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Sem referências

De um momento para o outro, vira-se despojado de todas as referências. Sem aviso, alerta, nada! Ficara indignado, apesar de também esta referência do ficar indignado ter desaparecido, dispondo-se a fazer todos os possíveis e impossíveis, sem saber como, é certo, para que a realidade e a legalidade da situação, a da manutenção das referências, permanecesse. Mas iria ser duro!

Tudo começara pela manhã, um bom prenúncio, apesar de tudo, quando lhe telefonaram de uma rádio a querer marcar uma entrevista. O motivo tinha sido o lançamento de seu 45.º livro, De que me serve a flauta, se o meu jeito é o piano, obra que o tinha consagrado definitivamente como autor de literatura pop, depois de um momento de deriva em que se sentiu balançar entre a literatura profunda, em modo sinfonia, e a literatura light, modo pandeireta e ferrinhos, com um ou outro bombo pelo meio. Por aqui, estávamos conversados. Mas a conversa, pelos vistos, não estava finalizada nem encerrada, ao contrário do que sempre pensara.

As runas tinham-no avisado, mas não se apercebera. Não era rigoroso, por isso, o que se afirmava no início do texto, onde se afirmava que a perda de referências tinha chegado «sem aviso, alerta, nada!», pois a evidência das runas contradiziam-no. Não por mal, é certo, mas porque talvez isso já fosse uma espécie de prenúncio, não agoiro, note-se, de que a perda de referências estava a caminho, assim como um sintoma de que tinha sido conveniente atacar logo com um ben-u-ron ou uma aspirina acompanhada com uma xícara de chá. Não o fizera e as referências tinham-se ido!... Concluirão mais tarde os entendidos nestas coisa da perda de referências, que intervêm quando a coisa já está descontrolada e a caminho de se tornar um case study, mau para quem é alvo, mas bom para servir como laboratório vivo e palco de investigação para os profissionais que irão dedicar-se a estas coisas…

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Cruzes

_ É uma cruz que tenho...

_ Tem onde?... Não vejo nada!...

_  É uma força de expressão. Significa que é algo que tenho que carregar e aguentar...

_ E tem treinado, para isso...?

_ Como assim...?

_ Fazer exercício... alongamentos... pesos... Para fortalecer, percebe...?

_ É mais interior... Mais profundo... Duvido que com pesos se vá lá...

_ Coisas lá das culturas, talvez...?

_ Como é que sabe...!?

_ Também costumo ter a mesma coisa...

_ E como é que consegue...?

_ Cavando.

_ Aprofunda, investiga, analisa, vai até ao âmago...?

_ Isso não sei... Mas a terra tem influência!

_ A busca e o retorno às origens, à pureza, ao telúrico, é isso...?

_  Com água é mais fácil... E os resultados são outra coisa!

_ Mas é claro! A transparência, o fluir, o reencontro com as metáforas da vida!... Como é que consegue, diga-me! Diga-me!

_ Já lhe disse: cavando.

_ E isso resulta...!?

_ Então, não...?!... Olhe aqui para estes âmagos: que lindos, que tronchudos!...


 

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24 setembro 2020

Singular gesto

O gesto de cofiar a barba conferia-lhe uma singularidade que não estava ao alcance de qualquer um, sobretudo para os não possuidores da dita... O mesmo se aplicava aos que tinham pelos no nariz ou nas orelhas, bem como aos que se equilibravam nos cascos, às vezes em situações de equilíbrio instável... Como irmandade não estava mal, filosofou para si o velho bode expiatório, esticando uma das patas, como quem não quer a coisa, e ficando a olhar para o matador com a faca... Parecia que tinha chegado a sua vez.

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É a base

_ E eu disse-lhe: vá para o raio que o parta!...

_ ...?...

_ O que é que foi...?!

_ E então...? E então...?

_ Então...? Ele foi, é claro... Temos que confiar nas pessoas... Não...?

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Mesmo às cegas...

Fechou o olho e apontou. A mira perfilou-se e enquadrou o alvo. Que se mexeu e pediu uma pausa... Cansado de esperar, voltou a apontar e a enquadrar. Mas era tarde, pois a noite caíra... Não esmoreceu e apontou na mesma. Na falta de luz, atirou ao calhas. E acertou, mesmo assim... Qualidade de sniper.

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22 setembro 2020

Óculos

Ao princípio tinha-lhes medo. Depois, afeiçoou-se. Passara algum tempo, até os comprar com o dinheiro de uma raspadinha, decidindo que o namoro de longe tinha que ser concretizado nesse dia, mais a mais com o dinheiro disponível. Entrou na loja e apontou logo para eles, dizendo que os queria levar. Na loja começaram por se fazer caros, dizendo que já estavam reservados para um artista, mais ou menos conhecido... Olhou para o empregado e arregalou os olhos, apontando-lhe o indicador e pondo o dinheiro em cima do balcão. Não foi preciso mais nada. Saiu da loja já com eles postos, depois de lhe terem explicado como mexer nos botões: aumentar, para cima, diminuir, para baixo. Disse que sim e mexeu-lhes logo, rindo-se do nome que deram aos botões: personagens.

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20 setembro 2020

Mais ou menos encarpado

 _ Que redes é que tem?

_ Para borboletas, peixe e gambozinos.

_ A de gambozinos é para que quilos?

_ 2-3, mas posso encomendar para maiores...

_ Não estamos no defeso...?

_ Sim, até ao próximo mês.

_ Deixe estar... espera-se, não há problemas... E para trapezismo, não tem nada...?

_ É só escolher: com mortal ou a fazer de conta?...

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Calibrar a tempo

Olhou para o espelho e apercebeu-se de que um dos peitorais estava mais desenvolvido do que o outro. Estranhou a diferença e questionou o treinador. Que não lhe respondeu, mas que imediatamente se deslocou à arrecadação, regressando de lá com uma bomba e perguntando-lhe qual é que era a pressão.

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19 setembro 2020

Estou indeciso se devo constituir uma comissão de honra... O que é que me aconselham?

Continue indeciso.

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Joker

Visto na tv, mas um assombro pela interpretação de Joaquin Phoenix, cuja transformação se acompanha ao vivo e em antecipação, talvez remetendo para a transfiguração que um outro co-intérprete do filme, De Niro, incorporou no Táxi Driver, talvez não por acaso... E o que (n)os rodeia, senhores, não conta nada para este desfecho...?

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Questão de regime

 _ O que é que anda aqui a fazer...?

_ Estou desenfiada...

_ Tropa...?

_ Não.

_ Doente...?

_ Credo!...

_ Presa...?

_ Deus me livre!...

_ Então...?

_ Sou uma linha.

_ Sim... agora que fala nisso, está muito magra! Tem que comer mais!...

_ Depois, não caibo!....

_ Onde...?

_ Na agulha. Onde é que houvera de ser...?

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Por boas razões, felizmente...

Chegado a casa, estranhou que a caneta das escritas não lhe tivesse saltado para a orelha, como era costume e ritual diário. Talvez estivesse indisposta com qualquer coisa, pensou, ou andasse preocupada com alguma ficção mais elaborada e complexa, daquelas com que lidava na casa anterior, antes de ir para o esferografil comunitário, onde a adoptara. Essa experiência passada continuava presente e viva na memória, também por boas razões, note-se, pois a casa anterior era de um intelectual de renome e muito criativo, embora um pouco maluco e dado à melancolia, situação que motivou a intervenção dos serviços sociais e a recolha da caneta para adopção, quando se constatou que o intelectual tinha já perdido a maioria dos parafusos de origem e começava a dar sinais de que não estava em condições de assegurar uma vida digna e confortável à caneta, agora que começava a ficar mais velha, retirando-a de cenários ficcionais cada vez mais estrambólicos, para não dizer outra coisa, tendo a caneta compreendido e também achado que era preferível ser dada para adopção, na expectativa de que aparecesse alguém que a compreendesse, estimasse e incentivasse a passar os próximos tempos de uma forma singela e sossegada, talvez num cenário de prosas ou composições poéticas mais dadas ao recolhimento e à fruição das coisas simples, como o plantar das couves, o ir às compras à mercearia, fazer umas migas de bacalhau com tomate ou extasiar-se com um nascer ou pôr-do-sol, talvez com direito a um haiku, quem sabe?..., ou uma tirada daquelas que dá gosto mandar num piropo às amigas ou como assinatura num postal de boas-festas ou de cartão de felicidades para a reforma dos colegas... Enfim, devaneios que uma mente simples procurava dar vazão... mas que se mostrava preocupada, agora, com a ausência de reacção da caneta das escritas. O que se teria passado...? Uma elucubração que caíra mal...? Um sistema conceptual indigesto e inadequado à dieta a que se acomodara...? Uma análise mais aprofundada que fizera acordar memórias de uma vida passada...? Intrigante e desesperante, sem dúvida, mas felizmente não verificável nem aplicável, conforme lhe confidenciou a vizinha, quando lhe anunciou que a caneta não tinha nada de mais, só que estava grávida!!!... E o pai era o lápis.

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Amor(es) moderno(s)

Recebeu um sms e fez-lhe um like nas redes. Não se cruzando, estão felizes.

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À pala da semântica

Foi-se a ele e partiu-lhe o focinho. Dito assim, sem mais, a acusação não deixava dúvidas. Mas as coisas não são como parecem, às vezes. Havia que explorar os pormenores e tentar conhecer o contexto... Até então, davam-se bem. O que teria acontecido...? Uma desavença, pequena ou grande, não interessa. Para o que conta, os factos eram a agressão e a partidela do focinho. Haveria atenuantes...? Talvez... talvez... e aqui planta-se uma dúvida, uma suspeição de que os factos, as coisas, o que aconteceu pode não ter sido bem assim, que há nuances, partes ou pormenores da história que se desconhecem ou se conhecem imperfeitamente... Nada que nos surpreenda, note-se, mas que é conveniente ter sempre presente, à laia de um alerta. E o alerta tinha-se manifestado, o malandro!, da vez em que a pata do cavalo, vá-se lá a saber porquê?..., se esticou e fez uma rasante, uma tangente às fuças do parente, situado na prateleira de cima. Que se assustou e alertou para isso, pedindo atenção e contenção no esticar das patas. Que houvesse cuidado, da próxima, senão... Mas o senão não fora suficiente, constatava-se agora, que o mal estava feito. E já irremediável... Concluíram mais tarde os peritos no relatório, onde se afirmava, preto no branco: «a patada foi desferida, seca, mas precisa, no focinho em barro do cavalo comprado na feira, pelo cavalo de porcelana comprado em antiquário de renome, suspeita-se que por despeito, estilhaçando-o em pedaços».

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17 setembro 2020

Ganhar confiança

Para ganhar confiança, disseram-lhe, teria que fazer peito. Não custava nada, apenas meter a barriga para dentro e o peito para fora... E foi o que fez, acercando-se da porta. Abrindo-a de rompante, o efeito foi o pretendido, assomando uma peitaça de fazer vista, claramente adiantada ao corpo, em particular às pernas. Mas que se revelou fatal, revelaram mais tarde os entendidos, pois o desequilíbrio não se fez esperar e a queda no chão também... Podia ter sido grave, concluíram os espertos, mas a peitaça funcionou como amortecedor... esvaziando-se logo a seguir.


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Antecipemos, pois

_ O que é que podemos antecipar...?

_ Pouco... Muito pouco...

_ As expectativas eram grandes de mais, talvez...?

_ Em relação a quê...!?

_ Sobre a cimeira... é claro!

_ Não estava a pedir-me dinheiro...?

_ Não! Que ideia... Talvez mais tarde, sim... Mas agora, não.

_ Antecipo-lhe já, que nada feito...

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Em forma de haiku

A primeira chuva

Fecunda ávida terra:

Emoção de vida!


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13 setembro 2020

O sistema em juízo

_ Perante os factos, como se declara?

_ Culpado.

_ Qual é a sua profissão?

_ Comentador de futebol.

_ Está acusado de crimes graves, como este da «exploração da profundidade». Fica a saber que a moldura penal é agravada, caso seja provado à data dos factos que a profundidade era menor ou pertencente a estratos socioeconómicos fragilizados. Quer alegar alguma coisa em sua defesa?

_ Que seja feita justiça e se enquadrem os factos no devido contexto.

_ Muito bem. E que contexto é esse, pode saber-se...?

_ O do conceito de contra-golpe, por oposição aos do ataque planeado e da pressão alta.

_ Estamos, então, num cenário de guerra?...

_ Como assim...?

_ Então, essa terminologia não é aplicável nos cursos e nos manuais da guerra e da contra-guerrilha...?

_ Não. O cenário é o do rectângulo mágico ou o da casa dos sonhos ou o do inferno, mas este é mais raro...

_ Do domínio do emocional, portanto, propenso a excessos... Logo, condenáveis?...

_ Só os provocados pela paixão! O futebol é isto e o ser humano também... Peço justiça, por isso!

_ Veremos... Diga-me só uma última coisa: aquilo dos sistemas tácticos, serve para quê...?

_ Para controlar o espaço interior e exterior do desenvolvimento das jogadas das equipas em confronto, com a definição das linhas de contenção e de pressão com recurso aos alas e aos box to box, sem esquecer os mind games, mas isso já é ao nível da antevisão...

_ Chega!... Chega!. É-lhe aplicada uma pena suspensa! Mas em nome do 4-4-2, nunca se esqueça!

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Talvez desformatar...

Preparava-se para ver um filme num canal nostálgico, quando a televisão lhe entrou porta dentro e lhe anunciou que o vinham desformatar! Ficou intrigado... Mas estava mais era preocupado, porque a casa estava um tudo nada desarrumada, mais para o tudo do que para o nada, é certo, e nem tinha umas bolachinhas que pudesse oferecer aos convidados, televisão incluída. Se lhe pudessem dar uns minutinhos enquanto ia ao mini-mercado... Que não, agradeciam, mas não, pois o programa já estava no ar e a recusa já fazia parte do plano de desformatação, que não levasse a mal, mas era para o seu bem. E continuavam em directo a mudar-lhe o enquadramento e o recheio da casa, que carinhosa e laboriosamente tinha adquirido nos antiquários e nos alfarrabistas da zona, sempre acompanhado da patroa, infelizmente já falecida, não em sentido literal, note-se, mas figurado, graças a Deus!, pois a patroa continuava viva e de saúde, felizmente!, a atestar pelo último postal que lhe mandara, algures de uma paisagem paradisíaca, a beber drinks de pronúncia estrangeira e a fazer um vistaço nas suas fotos do Face e o do Insta, onde quem não a conhecesse facilmente a identificaria como uma jovem actriz em ascensão meteórica em Hollywood, com direito a capa de revista, fotografias e entrevistas glamorosas... 

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 Vendem-se: Textos curtos com pedigree.

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Não espetar, por favor!

 _ Os seus documentos, por favor.

_ Fiz alguma coisa de mal...?

_ Os seus documentos, por favor!

_ T'á bem!... Só a carta ou também o certificado...?

_ O senhor tem o certificado há duas horas e já vinha a 230 à hora!?... Acha bem?... Já viu o perigo que isso representa?...

_ Desculpe... não sabia. Mas tenho a desculpa do certificado...

_ Como assim...?

_ A velocidade era real, sim senhor... Mas o certificado de escriba é ficção.

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Sem vinco

 Tinha um ar erudito, mas era alugado. Devolveu-o após a cerimónia, aparentemente sem nódoas.

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12 setembro 2020

Gaiola aberta

No dia da largada, as expectativas eram grandes. Olhava para a gaiola, mas não conseguia tranquilizar-se. Apesar de lhe parecer bem, o livro era a primeira vez que seria lançado. Uma incógnita, portanto, apesar da gemada que lhe fizera, remédio santo para os primeiros lançamentos, quer de pombos, quer de livros. Sendo um jovem livro, corria-se o risco de se extraviar e ir parar a um pombal estranho, ainda que acolhedor... Também não sabia como reagiria à presença e eventual sedução das livras, mais maduras e com outro potencial de voo, a maioria das vezes planado e planeado. Tinha-o treinado bem, reconhecia, mas o voo em céu aberto e com vento desfavorável eram adversários de peso, que o dissesse a gaivota, nome próprio Fernão Capelo. Antes da largada, telefonar-lhe-ia a pedir conselhos. Mas a hora aproximava-se... Aí vai ele (we have lift-off)!... Parece-me bem, assim visto à distância... Mas tinha sido escusado aquela rasante à balzaquiana que estava a apanhar banhos de sol...

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Divirto-me muito com a ambiguidade. Está na hora do passo em frente...?

 Vá com calma... Já falou com os pais?

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Com estatística é diferente

 _ Qual é a probabilidade de nos enganarmos...?

_ Pouca. Diria que na casa dos 3,75%... Aproximadamente.

_ E de aproximadamente, quanto é que prevemos...?

_ 100%.


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Esticando o estilo

 _ Vejo aqui, no currículo, uma desproporção nos recursos estilísticos, com uma preponderância excessiva de tabuísmos. Quer explicar...?

_ Desculpe: «tabuísmos»...?

_ Sim... Palavrões!

_ Ah, isso!... Não tenho culpa.

_ Não tem culpa...!?

_ Não. São de herança.

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Bodas de prata

Afiançara à esposa de que lhe lhe revelaria um segredo quando comemorassem as bodas de prata. Proposta temerária, reconheça-se, digna de quem está convicto do que afirma e acredita que uma promessa é para cumprir... Como se confirmaria agora, decorrido o prazo.

Chegados ao restaurante, o casal e o filho único, foram conduzidos à mesa reservada, curiosamente já ocupada (certamente por lapso, pensara a esposa...).

Ocupavam a mesa uma senhora e uma jovem, presumivelmente filha, atendendo às parecenças com a mulher... Mas que também apontavam para o seu marido, agora que avaliava melhor...

E que ele cumprimentava de beijo, manifestando felicidade por finalmente poder juntar as suas famílias...

 


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Problema

 Gostava muito do diálogo... Praticava era pouco.

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Talvez idiomáticas, quem sabe...?

 _ Tenho aqui umas expressões que gostava que visse...

_ Legítimas...?

_ Sim... sim. Não se preocupe. Posso mostrar...?

_ São recentes...?

_ Fresquíssimas! Olhe para esta séria, hã...!? E que me diz a esta descontraída...? Espectáculo, as duas! Diga, que me diz...?

_ Hum... Que é que sugere para a séria...?... Gravata...? Laço...? Lenço...? Fato...?

_ Claro... claro. Qualquer um está bem. Mas tons discretos, se me permite... A elegância deve prevalecer. Um clássico, sem dúvida... Ideal para aqueles momentos em que está tudo em jogo, percebe...? Só para alguns... só para alguns!... Com a luz e o enquadramento certos, então...!... Não é para todos... De facto.

_ E quanto à descontraída...?... Um pólo...? Uma sweat...? Umas jeans...? Uns óculos escuros, talvez...?

_ Outro clássico!... Para aqueles momentos em que tudo corre bem, em que o mundo está ali ao alcance de um estalar de dedos, compreende...? Mas não ao alcance de todos!... Tem que haver ali qualquer coisa... Sim, um je ne sais quoi (desculpe-me o francesismo)... Muito poucos conseguem, essa é que é a verdade...

_ E descarada, não tem...?

_ Bem... Até onde está disposto a ir...?

_ Sem factura, até ao Céu!

 


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06 setembro 2020

Registar... é importante

 _ Quantas vezes é que lhe disse para não fazer isso...?

_ 2372.

_ Não foram 2373...?

_ Não sei.

_ Não sabe...!? Então porquê?

_ Não há registos.

_ E quantas vezes é que lhe falei sobre a importância de existirem registos...?

_ 4586.


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Azar

 Com um bocado de sorte chegava-se lá... Mas o bocado era curto.

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Lasca a lasca

Chamava-lhe «podadura em sol natural», talvez uma reminiscência derivada de uma precoce e frustrada carreira enquanto podador e uma outra mais profunda, localizada no quarto escuro da alma sensível, aquele local onde se decidem as carreiras e as vocações musicais: aquele vai para o coro, mas lá para as filas de trás, e este vai brilhar como solista, «luzes, acção e silêncio, que não se vai cantar o fado»... E tudo começou assim, com um pedido para polir um texto, na origem fino e comprido, uma delicadeza, não há dúvida, expressão doce de uma veia poética e luminosa, mas que no final ficou curto e grosso, talvez por ainda o formão estar rombo...

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No lançamento do meu livro só consegui alcançar uns miseráveis 3,5 metros... Tenho que treinar mais...?

 É óbvio, não lhe parece...? Tome também umas vitaminas, não se esqueça.

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ISBN vs. Depósito Legal, talvez uma tripla

A edição do livro tinha sido preparada com todo o carinho. Em termos percentuais, 25% de preparação e 75% de carinho. E talvez fosse esta distribuição percentual que estivesse na origem do lapso, sem grande importância, mas um lapso, que determinara a troca de posição entre os números do ISBN e o do Depósito Legal. Depois de deitar as mãos à cabeça, o autor quis matar-se, mas o editor não deixou, dizendo que não eram horas nem razão para isso. Tinha tempo, que não se preocupasse, que o tempo se encarregaria disso, mais coisa, menos coisa... Sendo assim, havia que analisar o incidente sob a perspectiva do «fechar uma porta e abrir uma janela», coisa que o autor não estava a perceber muito bem, pensando que o editor lhe estava a falar de obras em casa, mas o autor tinha acabado de as fazer recentemente, e com IVA!... Que não, sossegava o editor, que não se tratava de nada disso, mas de uma visão criativa e optimista sobre o lapso, quiçá bem-vindo, pois ainda poderia trazer muitas venturas e royalties, começando logo a esfregar as mãos, por causa do frio… E que visão era essa, perguntam-se vocês, leitores ávidos e seguidores famintos desta bodegada de histórias? A do mercado coleccionista, está bem de ver… E o editor até se lembrava de uma vez em que, por lapsos que acontecem, certo livro, escrito por um membro respeitável da comunidade, sobre o decoro e as virtudes da contenção, foi atribuído a uma famosa moçoila muito conhecida da comunicação social e afins, enquanto o respeitável membro aparecia como autor de um belíssimo livro ilustrado sobre as 150 melhores posições para enfrentar a câmara, de manhã, à tarde e ao pôr-do-sol (sunset para a rapaziada cosmopolita). E o resultado tinha sido um final feliz para ambos (happy end para os amantes da cinefilia), que passaram a correr o mundo e arredores a promover os respectivos livros, embora com os autores trocados, falando-se já em licitações absurdas nos leilões conceituados… E isto porquê, perguntam-se vocês: pelo coleccionismo, é óbvio! Por isso, que tivesse esperança, que a coisa iria correr bem… Sobre a falta das últimas páginas do livro, precisamente aquelas onde se concluía que o vilão era, afinal, o pai da criança, que também não se preocupasse… Segundo garantia, o êxito estava garantido nos leilões. Olá, se estava!...

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A história secreta de um lançamento

A culpa tem de ser imputada a uma epifania, pequena que fosse, mas claramente identificada. Tudo começara em dois mil e troca o passo, com a criação de um blog, esse instrumento ilusório e circunstancial de contacto e projecção de fama e do nome, mas tudo em regime discreto e pausado, ao correr dos dias, das noites ou das estações do ano.

Dos contactos e da fama, rapidamente se desiludiu. Tentaria outra via. E foi o que fez. E tê-lo-á feito bem, a crer na epifania, que lhe garantiu que esse era o caminho. Ainda procurou fugir, mas não deu. «Era o karma», sussurrava-lhe a epifania, enquanto lhe ia esvaziando a garrafeira. Que esvaziou depressa, diga-se, e saiu porta fora, até hoje, com o pretexto da compra de cigarros... Compreende-se a demora, pois os cigarros que fumava, o Kentuchy, um must em determinada época e cigarro de culto, já era difícil encontrá-los. Pior do que isso, só a procura do Graal.

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05 setembro 2020

O cluster dos lançamentos

A esposa perguntou-lhe que camisa, gravata e meias queria levar, e que não se esquecesse de pôr um pouco de perfume. A mãe também lhe telefonara a desejar boa sorte e que não se esquecesse de levar um agasalho (estava-se em Agosto e a temperatura prevista era de 35 graus) pois estava fresco, e se queria que lhe fizesse uma merendinha com uma omoleta, duas bananas, um sumo e um yogurte de morango, pois a cerimónia podia demorar ou, quem sabe?, não haver nada para comer. Agradeceu e com ternura relembrou à mãe de que já não era propriamente um menino e que tinha 72 anos. Que não se preocupasse.

Uma política consistente e estruturada permitira chegar ali com estes resultados: praticamente todo o habitante daquele país estava habilitado para publicar livros! Começando no jardim-escola e prosseguindo até à formação superior, todos estavam munidos de conhecimento e ferramentas que os credenciavam como autores de livros. Fora um investimento enorme do governo, com o inevitável recurso aos fundos comunitários, e o apoio generalizado e entusiástico das forças e actores sociais, transformando o sector editorial num cluster elogiado e invejado em todo o mundo, sem excepção, sob o lema: «Fazer de cada habitante um autor publicado, uma visão de e para o futuro». Como lema não era original, reconheça-se, mas os resultados tinham sido espectaculares! No espaço de duas gerações, o país tinha arrasado em todos os indicadores micro e macroeconómicos, transformando toda a santa alma daquele pedaço num autor publicado com direito a constar no catálogo da biblioteca nacional, e participante em sessões de autógrafos, animações culturais e afins, festas e romarias várias. E isto, era um facto: inquestionável, objectivo e animador.

Certo que nem tudo eram rosas, mas um ancestral hábito para o desenrasca, outra competência inata, trabalhada em todos os domínios do país, fazia com que as coisas acontecessem, umas vezes melhor, outras pior, contribuindo para o incrementar da performance e orgulho nacionais, cada vez mais à frente. E nesse dia, como em tantos outros anteriores e, seguramente, posteriores, essa verdadeira máquina editorial iria dar mostras, mais uma vez, do que fazia e era capaz de fazer. Mas não havia tempo a perder, pois as coisas estavam já marcadas há muito e tudo teria que ser feito como estava previsto e delineado: concentração, entrada no recinto, distribuição pelo espaço, apresentação, debate, beijos, abraços, palmadinhas nas costas ou nos ombros, autógrafo de dimensão e profundidade várias.

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