O bloqueio da página em branco bateu-lhe à porta e entregou-lhe o aviso de recepção para assinar. O escritor assinou o aviso e entregou-o ao bloqueio, que agradeceu e lhe desejou boa-tarde. Reflectindo acerca do que acabara de vivenciar, o escritor sentou-se em frente à sua lousa, que nunca abandonara, apesar da máquina de escrever ou do computador, e começou a redigir com o seu pau de giz, que herdara de uma tia-avó, combatente na Grande Guerra (da I, da II ou talvez da Restauração, caso se tivesse enganado na tia-avó...), aquilo que vários críticos consideraram a simbiose perfeita entre a banalidade, a receita afrodisíaca e o ensaio de salão de 3 x 3, anotado e comentado por especialista de trocadilhos e afins, impresso em caracteres góticos e
new wave, em esmerada edição de autor, em papel reciclado, para alertar a humanidade e arredores para a crise ambiental nos países do 1.º, 2.º, 3.º e andares seguintes.
Pensado como obra de maturidade, o livro acabou por se tornar um
bestseller e contrariou as previsões dos investidores, que o julgavam destinado à fogueira ou, na melhor das hipóteses, a servir de base a um candeeiro ou a uma enxerga de vagabundo. Estavam enganados, como se viu ou ainda não se aperceberam, pois os investidores não costumam ter sensibilidade para estas coisas da cultura, ainda para mais de maturidade. Mas volta a repetir-se: enganaram-se!
Para os fãs, contudo, a história e o livro arrasaram, depois de terem conseguido perceber, no meio dos gatafunhos do giz, que o escritor bloqueado se tinha tornado artista contemporâneo, adoptando a cultura
zen como musa inspiradora, revelando e revelando-se como a pura imobilidade e fazendo a apologia do livro em branco como o remédio para todos os males e imparidades, excepto as do reumático, aquelas onde se terá que fazer uma introspecção mais aprofundada, pelo menos até onde se consiga ver sem o recurso a uma lanterna. Mas a polémica instalou-se no seio do clube de leitura, que reúne às quartas e às sextas, das 17h45 às 18h12, pois reina a incredulidade face à maneira como o dito livro em branco acaba, com a frase inglesa «The End», que muitos são tentados a explicar pelos efeitos nefastos da influência do cinema comercial e outros pela massificação do ensino, que desde que abandonou o Latim como língua franca nunca mais foi o mesmo. «Pormenores», dirão os ingénuos, causa suficiente para invalidar o Memorando de Entendimento, dirão os estadistas, sem contar com os nostálgicos da Liga Zon, cuja insatisfação crónica em nada os abona, sobretudo quando o respectivo clube não escapa às garras da descida de divisão...
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