Nem sempre as histórias estão disponíveis. Ou estão, só que não se lhes presta a atenção que deviam ter. Não sei explicar a razão pela qual isso acontece, mas é verdade que isso se verifica. Mesmo que seja omitido pelos pares ou entendidos, as razões estão lá, ainda que escondidas. Seja como for, encontrava-me ou estava a passar por um período desses, de pousio ou de pouca atenção para notícias ou acontecimentos um pouco estrambólicos, que era o core business onde me tinha especializado e ao qual gostava de me dedicar com mais interesse. Na falta disso, ia passando pelas brasas e dedicava-me a meditar, com um ou outro rouco pelo meio, é certo, mas tudo dentro de limites aceitáveis, era uma preocupação minha, que cedo tinha incorporado uma atenção aos efeitos e as implicações provocados pelo ruído, ainda que provindos do nosso corpo. Adelante!
Ainda que em pousio, mantinha-me em contacto permanente com as fontes. Para facilitar o contacto, à falta de pombos, que estavam em pousio, também, tinha desenvolvido um original processo recorrendo a problemas de palavras cruzadas, uma curiosidade de que me tinha lembrado ao constatar que muitas delas eram praticamente viciadas neste passatempo, o que era uma boa notícia e contribuía para cimentar alguns conhecimentos de ortografia e gramática, sem esquecer também os de cultura geral, sempre úteis, nos dias que correm, é a minha convicção.
E foi precisamente na resposta ao enigma do exercício do dia, «alma do outro mundo», 8 letras, vertical, que se fez luz na minha cabeça e percebi que a explicação para a ausência de notícias das que gostava afinal era fácil, só tinha que seguir a pista que a fonte, nome de código, 'Ave trepadora cuculídea, frequente na Primavera', horizontal, quatro letras, me apontava, assim como quem vai mais para cima, mas nem tanto, um bocadinho ao lado, sabia perfeitamente onde era.
Ia prevenido, claro. Sabia o que me esperava. O lençol tinha as dimensões adequadas e as aberturas para os olhos estavam alinhadas, não havia problemas. Como suspeitava, cheguei à hora em que a confraria dos fantasmas se encontrava reunida em Assembleia-Geral, era o dia aprazado, e existia quórum. Não suspeitavam quem eu era, lógico, até porque me sentei nos lugares destinados aos jovens associados, pagadores de quotas, está bem de ver. Aprovado o Relatório de Actividades e o de Contas, com a minha abstenção, pois achei estranho que a verba para aquisição de lençóis tivesse aumentado na ordem dos 200000%, apesar dos subsídios, mas disseram-me que estava tudo bem, se não gostasse das conclusões que apresentasse uma lista e me sujeitasse ao veredicto dos sócios... Não estava disponível, infelizmente, daí ter que me reservar para a discussão dos 'Outros assuntos de interesse para a Confraria'. Que chegou, já ia adiantada a hora. Tomando a palavra, e esvoaçando um pouco o lençol, para dar um tom dramático e apelativo à intervenção, perguntei se a confraria era a responsável pela ausência de notícias estrambólicas e se isso estava previsto nos Estatutos. Fez-se um silêncio sepulcral!... Tinha acertado na mouche, estava certo!... Queria ver como se iriam desenrascar desta... Esperei, pacientemente. Talvez meia-hora. Ao não ouvir resposta nem movimento, estranhei. À minha volta, pousados nas respectivas cadeiras, mas bem dobrados, um número de lençóis correspondente ao número de associados presentes, mas sem os seus utilizadores. Na mesa da presidência da Assembleia-Geral, um cartaz manuscrito, a marcador, com o aviso: 'Por favor, entregar na lavandaria Abentesma'.
(in Estava Lá, Mas por Acaso, pp.197)
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