19 abril 2020

180750 páginas ao pó (mais coisa, menos coisa)

«Se não fosse agora, não seria nunca!». Gostava da frase pelo que representava de empenho e determinação. Para começo, não estava mal. Mas ainda teria que lhe dar continuidade... E isso, minhas amigas, não era adquirido. O primeiro sinal de que algo podia descambar ocorreu quando se pôs a olhar para as estantes (eram cinco) e se apercebeu de que a coisa não ia ser fácil... Fez as contas por alto e chegou a um número, 723 livros, talvez mais um ou menos um, pouco importava. Tinha estabelecido que a limpeza deveria ser página a página, nem que fosse de passagem, mas página a página. Disso não abdicava. Feitas as contas, a uma média de 250 páginas por livro, havia ali muito trabalhinho a fazer... Veria como corria.
Sendo uma pessoa metódica, concluíra que era melhor começar pelas prateleiras de cima. Só teria que ir buscar o escadote. Enquanto tratava disso, uma ideia estapafúrdia perpassou-lhe pela cabeça e obrigou-a a parar, mas rapidamente a sacudiu com o pano do pó, que entretanto apanhara na despensa. Não podia desconcentrar-se e deixar que coisas marginais a desfocassem da sua tarefa... Voltou a entoar a frase do início, desta vez com mais ênfase, o que levou o cão a dar um salto no sofá e começado a ganir (não se sabia bem porquê...), mas ela sossegou-o, fazendo-lhe uma festa na cabeça, e o bicho aquietou, voltando a dormir. Olhou para o relógio e deu início ao trabalho.
Tinha já limpo os dois primeiros e preparava-se para limpar o terceiro livro (assim o ditado estivesse certo...), recordação que lhe provocou um ligeiro sorriso, quando se ouviu um berro provindo deste, assim parecia, não muito estridente, mas firme: «Que é isto?!... Já não não há respeito pelos Clássicos?!?... Em que mundo estamos, por Belenos e por Toutatis?!...».
Ao ouvir isto, e sobretudo ao aperceber-se de onde vinha a voz, a mulher ia tendo um baque e quase caía do escadote, apenas o evitando porque se agarrara, por sorte, a um dos volumes da Suma Teológica..., mas acabaria por se recompor, achando melhor descer e analisar a situação em cima do soalho da sala, mais seguro e terreno, concluíra também. Já em segurança, olhava para a última prateleira e para o livro que falara, o terceiro, recusando-se a acreditar no que ouvira ou julgara ouvir. Não! Ali havia coisa... Mas antes de pensar nisso, ia beber um cálice de espirituoso e racionalizar o que fosse possível. Podia ter sido uma tontura, um desfalecimento, uma sugestão, não se sabia, mas não de estranhar pois andava um pouco cansada e a dormir pouco... Não havia de ser nada, animava-se.
Regressada à sala, voltou a olhar para a prateleira e para o livro, que entretanto se chegara à frente e se desalinhara dos outros, acabando por identificá-lo: era um Astérix! Teria que ter muita paciência e tacto para lidar com ele, mas estava esperançada num entendimento. Resolveu encetar o diálogo:
_ Não leves a mal, ó livro do Astérix, mas gostava de te explicar o que se está a passar. Estou a fazer a limpeza da estante e dos livros, por causa do pó, dos ácaros e da bicharada que os ataca, percebes?
_ Nem por isso... Tinha de ser hoje?
_ Bem... não. Mas é domingo, sabes?... Durante a semana é mais difícil... Não podes facilitar?
_ Ganho alguma coisa com isso?...
_ Ficas mais limpinho... Também respiras melhor. Achas que é pouco...?
_ Acho!... Mas como sou um sentimental, dou-te uma hipótese.
_ Diz lá...
_ Corremos o risco de que o céu nos caia em cima da cabeça?...
_ Penso que não. Estamos entendidos...?
_ Ainda não.
_ Então...?
_ Agora vamos para uma patuscada de javali. Depois te digo.
_ Prometes?...
_ Vai depender da poção...






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