Não estava muita gente no supermercado. Era um final de tarde de um dia de semana. O supermercado estava bem localizado, mas não era dos que tinha preços mais em conta. Esta questão dos preços era importante, devido à época por que se passava, daí talvez o número reduzido de pessoas que se verificava nesse dia. Talvez para combater essa escassez de clientes, apesar da boa localização e da variedade de produtos, a referida cadeia de supermercados (pois de uma cadeia se tratava) passou a utilizar um chamariz, potencialmente apelativo para consumidores avisados e preocupados com a conjuntura, que mais não era do que um vale de desconto, de determinado valor, aparentemente pequeno, quase irrelevante (mas um «bónus», apesar de tudo...), para descontar numa próxima compra.
Na caixa registadora, o número de pessoas era ainda menor: três clientes e a operadora. De forma ordeira, sem pressas, a fila estava constituída e a operadora passava os produtos, um por um, numa cadência pautada pelo som emitido pelo scanner.
Enquanto esperava pela sua vez, algo lhe chamou a atenção e fez accionar um pequeno turbilhão de sentimentos contraditórios, provocando-lhe um pequeno, mas evidente, desconforto.
Os seus olhos fixavam-se, teimosamente, no papelinho branco, papel onde sobressaíam, como pequenos fogachos de luz, os sinais impressos de letras e de números, marcas de água dos característicos talõezinhos de desconto, de valor praticamente insignificante, como se salientou, que o cliente anterior, fosse por despeito ou distracção, tinha, olimpicamente, ignorado. Mas que não era o caso do nosso outro cliente, posicionado, logo a seguir, na fila, e que se via acometido por uma daquelas pequenas «tentações» colocadas como teste às convicções e aos pergaminhos das pessoas consideradas e tidas como de bem, insuspeitas, mesmo, mas sujeitas, como se constatava, a verem-se confrontadas com uma situação, para elas, inimaginável, mas real. Por isso, potencialmente perigosa.
«- 57 cêntimos!» pediu a operadora e, com o ressoar da voz, o nosso homem acordou do seu transe, poder-se-ia dizê-lo, em que, por breves mas impagáveis momentos, a tentação de apropriação do «alheio», o talãozinho, pertença, de facto e de direito, do anterior cliente pagante,
tomou literalmente conta da mente e do espírito do «ladrão», que de facto se julgava, pelo menos em tese.
Era uma fracção de segundo tornada numa eternidade, uma tensão insuportável para lidar com a dicotomia entre «o que se pode» e «o que se deve» fazer, um verdadeiro e genuíno dilema ético, ainda que embrulhado numa forma e num contexto quotidianos, aparentemente desfasados destas preocupações tão sérias e, para alguns, perfeitamente esotéricas, para não dizer inenarráveis.
Mas o bom senso prevaleceu. Aliviado, libertado de um peso que, por instantes, se tornara difícil de carregar, o nosso protagonista prosseguiu o seu caminho, pagando o valor que lhe era pedido e foi-se embora. Curiosamente (seria coincidência?... Esquecimento?...), não levava consigo o seu talão, que legitimamente adquirira... Ao olhar para trás, de relance, reparou que a pessoa que lhe sucedeu na fila, subrepticiamente, o apanhou e guardou, aparentemente sem remorso. E o nosso homem sorriu. Mas, mais do que ele, o Diabo também...
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