12 julho 2020

Declarar guerra

Por norma pacífico, ficou intrigado quando lhe propuseram declarar guerra a alguma coisa. Ficou muito renitente, a princípio. Obstinado, mesmo. Tentaram diversas abordagens, umas mais sedutoras do que outras, mas a resposta era sempre a mesma: não! Mas do outro lado também não desistiam. Eram duas obstinações em confronto, de resultado incerto. Ter-se-ia que recorrer a um árbitro, estava visto. Mas tinha que ser um árbitro a sério, mesmo que já retirado. O problema era encontrá-lo, ainda que com candeia. E como as candeias escasseavam e cada vez havia menos gente para trabalhar com elas ou arranjá-las quando se estragavam, a coisa adivinhava-se difícil. Parecia estar-se num impasse. Até lá, não havendo declaração de guerra, estava-se num período de tréguas, embora fosse ilógico, pois ainda não havia guerra nenhuma. Talvez fosse mais acertado dizer que se estava numa situação de paz podre. Mas ainda era cedo.
Depois de muito se porfiar, o árbitro lá foi encontrado. Não parecia ser grande espingarda, mas era o que se arranjara. Que também estava renitente em vir, note-se, mais a mais porque estava com uma grande mão de sueca, com ás de trunfos, manilha, e duque, a jeito para ganhar duas ou três vazas, duas seguras e uma logo se veria. Por via disso, tinha sido difícil convencê-lo, só se conseguindo com uma promessa de moeda mágica para a raspadinha, mas tinha que assinar já, antes que o mercado de transferência fechasse. Aceitou, está visto, senão não tínhamos mais nada para dar corda à história. Adiante, pois, e saltemos para o momento da reunião e das conversações a propósito de declarar guerra a alguma coisa, pequena ou insignificante que fosse, apenas para marcar uma posição e concretizar um objectivo de ano novo, aniversário ou porque sim.
Analisadas as propostas em cima da mesa, o impasse mantinha-se. Não havia maneira de se chegar a um consenso. Umas vezes por excesso, outras por falta de ambição, o certo é que não se encontrava aquele minimis que era necessário: o qualquer coisa a que se declararia guerra. Fácil, aparentemente, torna-se difícil pela minudência ou irrelevância das coisas de que se precisam. Parecia filosofia em saldos, tinha consciência disso, mas estava tranquilo com isso, pois já tinha aberto a época. Mas estava a afastar-se do que interessava. Acabou por aceitar a proposta de uma marca de botas de contrafacção, boas para caminhar, fazer escalada, dançar o tango, e aquecer os pés no Verão, só, pois o Inverno não estava incluído. Aceitava o patrocínio e queria começar a experimentar. Rejeitara a proposta dos ginásios. Ponto.

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