28 fevereiro 2015

Birdman

Birdman ganhou o Óscar para melhor filme. Esta distinção é suficiente para lhe garantir um lugar na história do cinema. A história fala de uma realidade que, parece, apenas se circunscreve à realidade e aos participantes no mundo artístico, quaisquer que eles sejam. Mas também pode ser vista numa perspectiva mais ampla, se pudermos e quisermos fazer esse esforço de análise e compreensão. E aí os protagonistas podemos ser todos nós, designadamente quando nos questionamos ou confrontamos com aquilo que fomos, somos e queremos ser. Somos todos Birdman?

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21 fevereiro 2015

O clique


O clique deu-se quando deixou de escrever nas folhas soltas do bloco e passou a fazê-lo no computador. O clique tinha sido pequeno e isso surpreendeu-o, pois julgava que iria ser uma coisa mais forte, tipo «CLIQUE!», com maiúsculas e exclamação, e menos como «Cliiiiiiique», sem maiúsculas e sem exclamação. Podia ser um problema de condutividade ou de potência (iria investigar), mas o mais certo era ser mesmo assim. Mas ainda não estava convencido da mudança.
Tinham sido muitos anos a escrever nas folhas. Não tanto como os que tinha a saber juntar as letras, mas alguns desde que o convenceram a tentar ser escritor. E esses eram poucos. Mas era um sentimental e o abandono das folhas pesava-lhe.
Nos anos em que tomara as suas notas no bloco (que de bloco tinha pouco, pois eram só folhas soltas dobradas em quatro), nem sempre tinha sido fácil, pois as folhas escasseavam e nem sempre podiam ser utilizadas. Às vezes, desapareciam.
Até as substituir por outras, pois nunca mais via as desaparecidas, ficava nostálgico pela falta, o que lhe lembrava a efemeridade da vida. Seguia em frente, porém, e resignava-se à perda e ao que pudessem conter: um pensamento, o esboço de uma história, um pseudopoema, ou uma lista de compras do supermercado, minuciosas e frequentes. Tudo se juntava naquelas folhas, perdidas ou mantidas.
Uma vez chegaram a conter a chave premiada de um Euromilhões (felizmente um dos prémios mais pequenos), mas não foi contabilizado, pois não tinha transposto a chave para o boletim. Tinha colocado uma outra e acertara nas estrelas. Não ficou surpreendido, pois sempre tivera talento para adivinhar as estrelas.
A frustração durou pouco (só um bocadinho), rapidamente esquecida pela rotina do dia-a-dia, que não estava dependente do concurso mas do fogão, que exigia um quilo de batatas, uma cebola, duas curgetes, três cenouras e um alho francês, se queria comer sopa. E como gostava de sopa, a escolha era óbvia. E aqui surpreendia-se com uma conclusão profunda: a escrita era importante para as receitas de sopa, pois a transmissão oral dos ingredientes estava a perder-se.
Não compreendia porque se endeusava o caderno. Atribuía isso ao fatalismo, caro aos que escrevem, para fazerem passar uma imagem de incompreensão ou de distanciamento do mundo, a penar miséria ou desconforto pelas ruas ou cadeiras da amargura, quiçá sem a sopa…
Não estava para isso: não havia nada melhor do que o processador de texto!

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Telefonema

_ Está lá?
_ Estou.
_ Está-me a ouvir?
_ Estou. O que é?
_ Nada. Telefonei só para ver como é que estava.
_ Estou bem. E tu?
_ Também estou bem. Como é que vão todos?
_ Também estão bem.
_ Há novidades?
_ Não, não há.
_ Vou desligar, está bem?
_ Está bem.
_ Até amanhã.

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Herança

_ Que voz tão sensual... É de família?
_ Não. É do resfriado.

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19 fevereiro 2015

Gostava de trocar as vogais. Posso fazê-lo?

Pode. Mas não as misture com as consoantes.

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Tontura

Levantou a voz. Teve vertigens e baixou-a.

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15 fevereiro 2015

O duplo

Andava desesperado por uma história. Grande ou pequena, séria ou bem-disposta, incrível ou nem por isso, uma que fosse digna… do nome, que é coisa importante, e dos destinatários, se é que os havia…
A utilização de reticências não era um bom prenúncio… Se começasse a chegar às exclamações e às interrogações… o caso começava a ganhar contornos mais preocupantes… Talvez fosse a tempo, caso conseguisse apanhar o autocarro das sete, que estava quase a passar. Ia ver como correriam as coisas… (Para trás, reticências de um raio!... Xô!)
Apanhou o autocarro (o das sete e doze, note-se, pois perdera o das sete) e começou logo a idealizar o seu plano de se tornar um duplo (stuntman, em inglês, que era a língua para a qual se teria que virar, caso quisesse fazer carreira enquanto duplo, aqui ou em Hollywood). Na sua cabeça tudo era claro e pronto a ser executado, ou não se sentisse já um duplo/stuntman. E isso representava já um grande passo, bem maior do que os que tinha dado até agora, considerados relativamente pequenos no mundo do showbizz (que era o mundo que contava para os duplos/suntmen), pois se resumiam a um papel de figurante numa peça infantil, em que desempenhava o papel de uma abóbora, a quem cortavam o pedúnculo e não se queixava, pois estava destinada a um desígnio maior, que era o de vir a ser transformada em doce… Já aí, nesse episódio, os primórdios de um duplo/stuntman eram evidentes, pois cortar o pedúnculo não era para todos, exigindo uma dose de coragem acima da média… Isso acontecer num cenário de uma peça infantil, constituído por cartão e papel canelado pintados, estava dentro dos padrões da ficção, domínio por excelência dos duplos/stuntmen, para rebater os cépticos que por ali ou por aqui possam andar…
O aparecimento das reticências (de novo!), alertara-o para o perigo que significava, para um duplo/stuntman, desviar-se do seu projecto de vida (iniciado às seis e quarenta e cinco), à semelhança do autocarro das sete e doze, que ao desviar-se do trajecto da estrada, por causa de um buraco, ia atropelando um cicloturista, pedalante indefeso e sem a preparação de duplo (aqui apenas em português, pois era essa a sua nacionalidade), que teimosamente queria contribuir para a diminuição da pegada de carbono, fazendo-o à custa das pernas e a pedalar em cima de uma bicicleta, longe de pensar que também com risco de vida… Mas isso desculpava-se-lhe, pois, como já se disse, faltava-lhe o treino de duplo… Apesar disso, safara-se! «Sorte de principiante!», filosofou o duplo/stuntman, o herói da nossa história, coisa já reconhecida pelos leitores (se os houver, relembra-se e reforça-se), pois decerto não lhes terá escapado a referência ao significado bilingue «duplo» e «stuntman», unidos pela barra. Nada difícil, sobretudo para leitores e espectadores de policiais e de crónicas de costumes, que também são dadas a este emparelhamento das palavras com barras.
O momento de o nosso duplo/stuntman se pôr à prova aproximava-se. A expectativa era enorme, até porque iria ocorrer numa estação de comboios, que é um dos palcos de eleição para os duplos/stuntmen, pois é conhecida a sua predilecção por comboios, esforçando-se, também eles, por diminuir a pegada de carbono, o que só os engrandece e pode vir a dar um Óscar…
Para um duplo/stuntman, a cena que se iria fazer era fácil: saltar para um comboio em andamento e não ser apanhado pelo cobrador - esta a parte fácil do salto, pois toda a gente sabia, incluindo os duplos/stuntmen, que os cobradores não vão aos tectos das carruagens ver quem lá vai, a maioria deles sem bilhete… Para quem não saiba deste pormenor, é esta a razão (a acumulação de viajantes em cima dos tectos das carruagens de comboios) pela qual, nos filmes em Bollywood nenhum duplo/stuntman faz uma cena como aquela que irá ocorrer precisamente às 8h7 (se o comboio não vier atrasado…). Se vier, a cena só poderá ser filmada às 15h37, que é o momento em que a luz incide com a inclinação pretendida pelo realizador, mas sem implicações para o desempenho do duplo/stuntman, uma vez que o risco e a dificuldade são os mesmos, embora num filme de Bollywood fossem menos. Como não é, o duplo/stuntman é que paga, não recebendo mais por isso... É algo que se terá que rever futuramente, aquando das negociações salariais entre os donos dos estúdios e os sindicatos dos duplos/stuntmen, que são vários.
Estava, pois, tudo preparado para o salto do duplo/stuntman para o comboio das 8h7, que acabou por chegar atrasado, como se temia e receava, mas que foi bem aceite pela equipa, incluindo pelo duplo/stuntman, pois se considerava safo de mais um disparate dos estúdios, que não tinham noção do que um duplo/stuntman passava, sobretudo no Inverno, que era a estação em que estávamos, embora no filme fosse Primavera, e o salto para cima do comboio fosse em nome do amor, por não ter sido possível no Dia dos Namorados/Valentine´s Day, já preenchido com outras filmagens.
Até à próxima possibilidade, com a passagem do comboio das 15h37, não havia mais nada a fazer, pensava-se, embora houvesse conveniência em manter o duplo/stuntman quente e obrigado pelo contrato, para que tudo corresse bem. A solução estava à vista e era conhecida: dar um saltinho a Bollywood e fazer o salto no comboio das 11h4 para Bombaim. Mesmo com os passageiros em cima, valia a pena tentar. E, para isso, nada melhor do que o nosso duplo/stuntman.




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Sinapses


O corpo humano é uma máquina de hábitos. E o cérebro mais do que todos os outros órgãos, segundo terá lido ou quer acreditar… talvez por o ter lido. Acreditado sem ler ou lido para acreditar, procurava pôr em prática o que tinha aprendido e apreendido.
Era dextro. Como muitos e muitas. Escrevia e manipulava objectos com a mão direita. Se pintasse, o que não acontece, provavelmente seria essa a mão que utilizaria. Não havia, pois, qualquer dúvida: dexter est.
Em nome da saúde do cérebro (e também fazendo-lhe pirraça…), resolveu contrariar a «dextreza», simultaneamente destreza da mão direita, procurando fazer com a mão esquerda o que habitualmente e quotidianamente se fazia com a mão direita … Descascar batatas, por exemplo.
Uma tentativa de introdução à pintura teria sido mais fácil, mas gostava de desafios difíceis. Daí o descasque das batatas.
No dia aprazado para o descasque, perto do almoço de um dia de semana, lá se dispôs a iniciar o projecto de vergar e obrigar o cérebro a pensar em módulo mão esquerda, impedindo e contrariando o módulo mão direita.
Como não estava habituado (obrigado, amigo cérebro!...), o que se previa acontecer aconteceu. Mas isso já se sabia. O que não se sabia era o pormenor relacionado com o tipo de batata: branca ou vermelha, para cozer ou para fritar. Para a mão direita, coisa de somenos; para a mão esquerda (de um dextro) uma preocupação do tamanho da sé, habitualmente para o grande…
Sendo crente (mesmo sem o ter lido…), o obstáculo foi entendido como uma prova de fé: batata branca. E não se falava mais disso. Constituía-se como dogma. E era mais fácil para quem se iniciava no corte em módulo de canhota…
A coisa não começou por correr bem. Mas a fé era muita e, no final, obtiveram-se resultados: três batatas descascadas, só por metade, e dois dedos cortados, o mais grave no mindinho, que tinha perdido a unha. Insuficiente para o estufado, no entanto…
Nada mau como história, pensavam os devotos. Mais um bocadinho de sal, talvez… foi a opinião dos canhotos.

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14 fevereiro 2015

Circular

Fartou-se da conversa e foi ao cinema. Escolheu um filme mudo. Interrogou-se porquê: «Para ser coerente!», disse em voz alta. Puseram-no na rua. Protestou. Restituíram-lhe o bilhete. Recusou. Mandaram-no passear. Ficou quieto. Propuseram-lhe uma conversa. Aceitou.



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Mind games

_ Temos de ter uma conversa séria ...
_ Está bem. E sobre quê?
_ Ainda estou a pensar...
_ Vai demorar muito?...
_ O que for necessário.
_ Há algum problema?...
_ Pode haver...
_ É razão para ficar preocupado?...
_ Depende da perspectiva... Vamos a ver...
_ Mas... vemos hoje?...
_ Não te precipites... estas coisas levam tempo... É uma maçada!
_ Pois... compreendo. Mas vês solução?...
_ Bem... dito assim... é complicado... Talvez ha...
_ Tens de me dizer! Chuta lá, porra!
_ Está bem... Quem é que marca o penalty?

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Pode acontecer-te

Começou a correr rua fora. Sentia-se bem e confiante, com os seus sapatos de couro, o fato de bom corte e o cachecol. Acelerou. Estava quase a chegar à meta e foi mandado parar por um enfermeiro, que fazia o papel de juiz, e que o mandou voltar ao início, pois fizera uma falsa partida.


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Aforismo

Convença-se de que é uma rica pessoa. Mesmo que isso não lhe pague as contas, aumenta-lhe o ego.

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13 fevereiro 2015

Emparelhar

O rock não sabia dançar agarrado. A valsa, pelo contrário, não o fazia de outra forma. Foram juntos pela zumba.

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08 fevereiro 2015

Sniper Americano

Alguém que tenha participado em combates terá sempre uma experiência e uma perspectiva radicalmente diferentes de quem não o fez. E todas as conversas, teorizações ou explicações à volta da guerra ou de situações de combate tem que levar isto em consideração, goste-se ou não, seja-se contra ou favor. Sniper Americano, realizado por Clint Eastwood, inscreve-se nesse universo, ao trazer para a tela a história de um combatente real, humano, pois, com tudo o que isso sugnifica e implica para si e para outros, próximos ou distantes. Ninguém sai imune de situações destas.

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Endireita

_ Não está com grande aspecto... Vai ter que se lhe dar um jeito...
_ Não será melhor um especialista?
_ Estamos na província... Para chegarmos a um especialista.. com estas curvas e este tempo... Você é que sabe...
_ Estou muito desacertado... Vou arriscar. O que é que sugerem?
_ Conhecemos um mestre. Pode ser que esteja em casa... Quer ir?
_ Vamos. Já não aguento...
Deslocam-se cerca de 200 metros, até uma casa, numa rua paralela ao clube.
_ Quem é?
_ Somos nós, mestre.
_ Nós, quem?...
_ Os seus antigos alunos. Já não se lembra?
_ Estou reformado. Deixem-me em paz... Estou a ver a novela!
_ Não pode ser, mestre! Temos aqui um perdido, com dores nas concordâncias e os elementos da frase desmanchados. Tenha dó, mestre, e abra-nos a porta! Com o que o senhor sabe, ele fica logo bom...
Ouve-se um correr de um fecho e o mestre aparece à porta, com um barrete enfiado na cabeça, pois estava frio.
_ O rapaz é de cá?
_ Não sabemos. Mas já anda por cá há algum tempo... Julgamos que seja das quintas...
_ Bem... Tragam-no ali para a cozinha.
Entram para a cozinha. Não há cadeiras.  Há uma mesa e uns bancos. De madeira tosca e velha, parece.
_ Então, rapaz, mostra lá isso!...
O que mostra não lhe agrada, vê-se pelo torcer do nariz... Pergunta-lhe:
_ Sabes qual é a posição dos elementos na frase?
_ Não. Ai!!!
_ Que foi?..
_ Deu-me um esticão... e doeu-me. O que é que me fez?
_ Nada. Compus-te foi o sujeito, o predicado e os complementos. Tinhas a frase toda torcida.




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07 fevereiro 2015

Um duro

Tinham-no avisado, por isso estava atento. Quando a garrafa se aproximou, dengosa como só uma garrafa pode ser, não ficou surpreendido pelo convite:
_ Não me pagas um whisky, filho?...
Pegando no chapéu, um Fedora, símbolo de gângsteres e de detectives, respondeu-lhe:
_ Sou abstémio.

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A tasca

Não era uma tasca muito grande. Na verdade, até era mais para o pequeno, o que levava alguns a chamar-lhe «tasquinha». Isso incomodava (um bocadinho, só) o dono, pois achava que era uma designação para o infantil, o que podia dar má fama à casa. Gostava mais de «tasca», porque achava mais apropriado e, de certa forma, mais digno. E com a dignidade não se podia brincar e, muito menos, menosprezá-la. Ficava «tasca», e pronto.
A tasca, propriamente dita, era constituída por um balcão e três mesas. Tinha também um reservado, formado por uma mesa e um banco corrido, destinado a ilustres, que também iam à tasca, não vá pensar-se o contrário... Dado o nome, «reservado», não falaremos mais dele, até porque nunca lá fomos. Destino de «não-ilustre», que costuma ser diferente do dos «ilustres», embora às vezes se cruzem... Não me parecia ser o que aconteceria na tasca...
O dono da tasca era uma personalidade curiosa. Nem alto, nem baixo, com peito à custa de camisolas, dado à crítica literária e à composição poética, com uma passagem breve, mas ovacionada, pelos palcos de ópera e de teatro. Peladinho também por uma partida de sueca ou dominó, histórias brejeiras e sérias, com acompanhamento de bandolim ou violino, que podia ser (quem diria?...) um Stradivarius... Era, como se vê, uma Figura, só que servia copos e era dono de uma tasca...
Todos os que frequentaram tascas conheceram um dono (ou uma dona) assim, certamente que com poucas diferenças entre eles (ou elas), a maioria das vezes só à volta das árias que interpretavam ou interpretaram: umas vezes de Puccini, outras de autores mais contemporâneos, que talvez os houvesse...
Para quem não as frequentou, ilustres ou não, pode parecer-lhes que não existem ou existiram donos (ou donas de tasca) assim... E será verdade. Como todos os estereótipos (palavra já não de tasca, mas de café), este dono (ou dona) de tasca nunca existiu, afirmar-se-á com a presunção de café e não com a humildade de tasca.
Será que não?... Tenho as minhas dúvidas...


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Anticoncepcional

_ Temos que conversar.
_ Há problemas?
_ A continuar assim...
_ Diga-me o que se passa. Eu aguento.
_ Tem uma imaginação muito fértil. Na sua idade...
_ O que é que quer que faça?... Sempre tive uma imaginação regular, como sabe. Não estou a pensar mudar, só porque agora está mais descontrolada... Mas diga-me: o que é que me aconselha?
_ Já pensou em ter cuidado?
_ Pensei que já não fosse necessário... Há risco, é isso?
_ Pode haver... Sobretudo, se não for tratado... Não se esqueça que tem uma imaginação fértil...Conheço uma clínica... São discretos e o trabalho é bem feito. Quer que lhe marque uma consulta?

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06 fevereiro 2015

Cortesia

«Despeço-me com amizade».
(pequena homenagem a Sousa Veloso, autor de TV Rural).

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Até ao fim

Era um rematado cretino. Umas vezes mais rematado, outras mais cretino, mas sempre coerente com um, com o outro ou com os dois. Morreu feliz.

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À margem

A margem de progressão era grande, mas não tinha tempo. Por isso, achou melhor ficar na margem. E disse adeus à progressão.

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Olhar em frente

Olhou para trás e viu que não vinha ninguém. Sossegou. Agora, podia olhar para a frente... Foi o que fez. Não viu o buraco e caiu nele.

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05 fevereiro 2015

O futebolista


O maço de cigarros estava no chão e deu-lhe um pontapé, longe de pensar que estava a marcar um destino. Era a primeira vez que o fazia, pois não era fácil encontrar maços de tabaco no chão. Bolas também não, que eram ainda mais raras do que os maços de tabaco. Não deixava de ser irónico, embora desconhecesse o significado da palavra, que o seu destino de futuro futebolista estivesse a ser traçado pelo pontapé num maço de tabaco, quando o devia ter sido por uma bola… Parecia que marcara um golo na sarjeta em vez de na baliza e, em vez de ser aplaudido, era antes vaiado… Mas lá se aguentou.
Por sorte, tinha-se cruzado com um olheiro que, apesar de vesgo, percebia e sabia muito de bola. Também sabia alguma coisa sobre pontapés em maços de cigarros, pois fora fumador e, em tempos, também famoso pelos seus pontapés nos tais, e com os dois pés! Quando deixou de fumar, tornara-se olheiro.
Rapidamente se entenderam, futuro futebolista e olheiro, pois falavam a mesma linguagem: a dos pontapés nos maços de cigarros. Apenas nas embalagens, é certo, pois o futuro jogador ainda fumava, ao contrário do olheiro, que só já olhava. De pontapé em pontapé, treinando um pé de cada vez, mas sempre com a cabeça levantada, facilmente o olheiro se apercebeu de que o jogador estava destinado a mais altos voos do que os dos pontapés nos maços. Com um pouco de sorte e condições das grandes equipas, rapidamente estaria a dar pontapés em embalagens de charutos ou de cigarrilhas, quisesse o jogador e tivesse juízo… E teve.

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04 fevereiro 2015

Livro

A Amante Holandesa, de J. Rentes de Carvalho.

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01 fevereiro 2015

Tremelicante

Tinha uma escrita tremente. O que era um risco, como teve oportunidade de o comprovar várias vezes. A perda de sujeitos e predicados era comum. Mas nunca recuperou totalmente da perda de uma interjeição, pela qual tinha grande afeição. Foi grave, mesmo sem acento.

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A estátua


Escolhera aquele local porque era sossegado, podia tomar café e ler um livro. E também ir ao cinema, se lhe apetecesse. Portanto, era um espaço onde se podia estar, tomar café, ler e ver cinema, embora ainda não fossem horas. Nada mau para espaço citadino, o quer que significasse esta frase… Aproveitava também o momento para escrever no seu caderno de notas, que não era um moleskine nem um de capa dura, mas feito com cinco folhas, dobradas em quatro, reutilizadas de uma fotocopiadora e cujo destino seria o papelão, se tivessem sorte, ou o contentor de indiferenciados, que seria o mais provável. Teria que ver isto e pensar se justificaria um alerta, por correio electrónico ou presencial, dependeria do tempo e da disposição na altura. Decidira que seria por correio electrónico, consultado o tempo e com a concordância da disposição. Havia poucas pessoas, se calhar por não serem horas de cinema. O café não era mau, mas havia muitos ali próximos. Também por isso, concluía, o número reduzido de pessoas. A hora também teria a sua influência, neste caso benfazeja, ao contrário de outras que nos atentam, conhecidas por malfazejas. Era um assunto a explorar, este das horas bem e malfazejas, pois podia dar-se o caso de ser questão de feitio ou inclinação do fuso, o que poderia ser relevante. Ao olhar em frente, viu-a. Mas, primeiro do que ele, quem a viu foi uma criança, que vinha com a mãe. Não deveriam vir ao cinema, pois não estava previsto nenhum filme para crianças. E, mesmo que estivesse, ainda não eram horas do cinema abrir. Só o café. Como se disse, a criança vira-a primeiro do que ele, que só a viu depois. E o que a criança vira era uma estátua, que ele não vira, mas que estava mais ou menos à sua frente, ligeiramente à esquerda da orientação do olhar, quase a entrar na área da visão periférica, mas ainda um pouco longe. E a visão periférica ajudou-o, entretanto, conseguindo que visse uma outra estátua, mais para a direita e uns metros afastada da outra, que ele não vira mas a criança sim. Ela tinha a curiosidade típica das crianças, curiosidade que se perdia em adulto, pelos vistos, e que costumava afectar a visão, a directa e a periférica, pelo menos nos locais em que se podia estar, tomar café, ler e ir ao cinema quando apetecesse e fossem horas. E onde existiam estátuas. Não surpreendia que a presença da estátua suscitasse a curiosidade da criança, pois era criança. Talvez por isso, dirigiu-se na sua direcção e fez-lhe uma festinha. Decerto não era para saber como se sentia ou de que era feita. Era mais como se lhe perguntasse porque é que ali estava tão sossegada e sem a mãe. Ou ela própria fosse uma mãe sem a sua criança, não sabia. Como não lhe disse, foi-se embora.

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