Andava desesperado por uma história. Grande ou pequena, séria ou bem-disposta, incrível ou nem por isso, uma que fosse digna… do nome, que é coisa importante, e dos destinatários, se é que os havia…
A utilização de reticências não era um bom prenúncio… Se começasse a chegar às exclamações e às interrogações… o caso começava a ganhar contornos mais preocupantes… Talvez fosse a tempo, caso conseguisse apanhar o autocarro das sete, que estava quase a passar. Ia ver como correriam as coisas… (Para trás, reticências de um raio!... Xô!)
Apanhou o autocarro (o das sete e doze, note-se, pois perdera o das sete) e começou logo a idealizar o seu plano de se tornar um duplo (
stuntman, em inglês, que era a língua para a qual se teria que virar, caso quisesse fazer carreira enquanto duplo, aqui ou em
Hollywood). Na sua cabeça tudo era claro e pronto a ser executado, ou não se sentisse já um duplo/stuntman. E isso representava já um grande passo, bem maior do que os que tinha dado até agora, considerados relativamente pequenos no mundo do
showbizz (que era o mundo que contava para os duplos/
suntmen), pois se resumiam a um papel de figurante numa peça infantil, em que desempenhava o papel de uma abóbora, a quem cortavam o pedúnculo e não se queixava, pois estava destinada a um desígnio maior, que era o de vir a ser transformada em doce… Já aí, nesse episódio, os primórdios de um duplo/
stuntman eram evidentes, pois cortar o pedúnculo não era para todos, exigindo uma dose de coragem acima da média… Isso acontecer num cenário de uma peça infantil, constituído por cartão e papel canelado pintados, estava dentro dos padrões da ficção, domínio por excelência dos duplos/
stuntmen, para rebater os cépticos que por ali ou por aqui possam andar…
O aparecimento das reticências (de novo!), alertara-o para o perigo que significava, para um duplo/
stuntman, desviar-se do seu projecto de vida (iniciado às seis e quarenta e cinco), à semelhança do autocarro das sete e doze, que ao desviar-se do trajecto da estrada, por causa de um buraco, ia atropelando um cicloturista, pedalante indefeso e sem a preparação de duplo (aqui apenas em português, pois era essa a sua nacionalidade), que teimosamente queria contribuir para a diminuição da pegada de carbono, fazendo-o à custa das pernas e a pedalar em cima de uma bicicleta, longe de pensar que também com risco de vida… Mas isso desculpava-se-lhe, pois, como já se disse, faltava-lhe o treino de duplo… Apesar disso, safara-se! «Sorte de principiante!», filosofou o duplo/
stuntman, o herói da nossa história, coisa já reconhecida pelos leitores (se os houver, relembra-se e reforça-se), pois decerto não lhes terá escapado a referência ao significado bilingue «duplo» e «stuntman», unidos pela barra. Nada difícil, sobretudo para leitores e espectadores de policiais e de crónicas de costumes, que também são dadas a este emparelhamento das palavras com barras.
O momento de o nosso duplo/
stuntman se pôr à prova aproximava-se. A expectativa era enorme, até porque iria ocorrer numa estação de comboios, que é um dos palcos de eleição para os duplos/
stuntmen, pois é conhecida a sua predilecção por comboios, esforçando-se, também eles, por diminuir a pegada de carbono, o que só os engrandece e pode vir a dar um Óscar…
Para um duplo/
stuntman, a cena que se iria fazer era fácil: saltar para um comboio em andamento e não ser apanhado pelo cobrador - esta a parte fácil do salto, pois toda a gente sabia, incluindo os duplos/
stuntmen, que os cobradores não vão aos tectos das carruagens ver quem lá vai, a maioria deles sem bilhete… Para quem não saiba deste pormenor, é esta a razão (a acumulação de viajantes em cima dos tectos das carruagens de comboios) pela qual, nos filmes em
Bollywood nenhum duplo/
stuntman faz uma cena como aquela que irá ocorrer precisamente às 8h7 (se o comboio não vier atrasado…). Se vier, a cena só poderá ser filmada às 15h37, que é o momento em que a luz incide com a inclinação pretendida pelo realizador, mas sem implicações para o desempenho do duplo/
stuntman, uma vez que o risco e a dificuldade são os mesmos, embora num filme de
Bollywood fossem menos. Como não é, o duplo/
stuntman é que paga, não recebendo mais por isso... É algo que se terá que rever futuramente, aquando das negociações salariais entre os donos dos estúdios e os sindicatos dos duplos/
stuntmen, que são vários.
Estava, pois, tudo preparado para o salto do duplo/
stuntman para o comboio das 8h7, que acabou por chegar atrasado, como se temia e receava, mas que foi bem aceite pela equipa, incluindo pelo duplo/
stuntman, pois se considerava safo de mais um disparate dos estúdios, que não tinham noção do que um duplo/
stuntman passava, sobretudo no Inverno, que era a estação em que estávamos, embora no filme fosse Primavera, e o salto para cima do comboio fosse em nome do amor, por não ter sido possível no Dia dos Namorados/
Valentine´s Day, já preenchido com outras filmagens.
Até à próxima possibilidade, com a passagem do comboio das 15h37, não havia mais nada a fazer, pensava-se, embora houvesse conveniência em manter o duplo/
stuntman quente e obrigado pelo contrato, para que tudo corresse bem. A solução estava à vista e era conhecida: dar um saltinho a
Bollywood e fazer o salto no comboio das 11h4 para Bombaim. Mesmo com os passageiros em cima, valia a pena tentar. E, para isso, nada melhor do que o nosso duplo/
stuntman.
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