Recebeu a carta com um misto de alegria e apreensão. O logótipo no sobrescrito foi o que o encheu de alegria: Associação Amadora de Detectives Privados (AADP). O conteúdo da carta foi o que motivou a apreensão: estava escrita num corpo e num tamanho de letra que não eram condizentes com o estatuto de um detective privado, que tinha uma dignidade própria, e que constituía a marca distintiva no mundo dos detectives privados. O que, manifestamente, na carta da AADP não se verificava. E sobre isso era intransigente.
Teve um momento de suspensão do juízo e resolveu acender um cigarro para o ajudar a pensar. Meteu a mão no bolso, a procurar o maço, mas recordou-se de que não iria encontrar maço nenhum, pois deixara de fumar há muito tempo. Era um detalhe e não deveria ser descurado. Essa era a primeira conclusão. Também lhe fazia bem aos pulmões e ao bolso. Outro detalhe, igualmente, mas a conclusão remetia para dimensões diferentes daquela em que estava a iniciar-se: a investigação detectivesca. E era aqui que queria concentrar-se, até para justificar o investimento para se tornar detective privado e a recepção do diploma, que lhe chegara com a carta da AADP. Que ainda não abrira, note-se, mas sobre a qual já adivinhara que trazia o certificado, depois de olhar para as dimensões, o tamanho A4, que era o formato do certificado. Mas enganava-se. E isso não era bom.
Resolveu investigar por conta própria, o que também lhe era permitido pelo estatuto. Começou por uma leitura mais fina da carta, pois estava convencido que o segredo estaria aí, na finura. Desta vez acertou. Voltava a sentir a confiança que perdera, por momentos, quando se equivocou a respeito do certificado. Relevou a falha, que atribuiu à inexperiência em matéria de conclusão de raciocínio de detective privado. Podia até ir mais longe: estava convencido que o erro fora consequência de não ter preparado esse módulo no curso para detective privado por correspondência, que também poderia ser frequentado na modalidade de
e-learning, mas era mais caro. Lembrava-se de que essa fase não tinha sido fácil, até porque o módulo era difícil, o que se compreendia, pois constituía a essência do que era ser detective privado. Veria como as coisas iriam decorrer, a partir de agora. Caso se deparasse com dificuldades de aprendizagem, a solução era recorrer a um explicador privado, o que não dava muito jeito. Teria que ver.
Começava a suspeitar que o projecto de se tornar detective privado poderia ser mais complicado do que tinha pensado. E logo agora, que tudo parecia encaminhar-se… Mas desistir não era opção, logo agora que tinha alugado um baixo para o escritório e mandado fazer uma placa para colocação na parede do prédio, pois acreditava que a publicidade ao serviço de detective privado ganhava mais credibilidade assim do que anunciá-lo nos classificados, junto com anúncios de massagens, canalizadores e marquises de alumínio, de que não era adepto, aliás, sendo mais apologista da manutenção das varandas abertas, que eram melhores para as casas e proporcionavam mais ar e luz, detalhes a que sempre havia que dar atenção, mesmo que estivessem afastados da sua área de intervenção enquanto detective privado, onde se lidava mais com zonas em que o ar e a luz não refulgiam propriamente…
Mas afastava-se do seu objectivo inicial, que era o de ler a carta da AADP e descobrir porque é que o certificado não lhe tinha sido enviado, contrariando a sua expectativa inicial. É certo que estas digressões, como era o caso da reflexão sobre as marquises, costumavam ser uma das características de um determinado perfil de detective privado, o do detective profundo, capaz de evidenciar outros interesses para além da sua actividade corriqueira com as coisas da podridão e da sordidez, dos pequenos e grandes pecados, dos pecadilhos e de outras minudências, como a corrupção e o crime. A reflexão sobre as marquises entrava num outro patamar, para além dos que se referiram atrás, podendo ser acompanhada por outras, a respeito de vinhos, gastronomia e futebol, por exemplo, mas já não tauromaquia, de que não gostava, nem de pesca, para a qual não tinha jeito. No entanto, caso o serviço exigisse, que remédio teria, pois era um profissional. O futuro o diria.
Depois da digressão (em rigor tinham sido duas ou três), concentrou-se finalmente na leitura da carta. Desta vez em modo fino, como já se dissera atrás, mas que era conveniente relembrar, o que constituía mais uma técnica do novelo do raciocínio detectivesco, que era complexo.
Escolheu a medida de finura que julgou mais adequada. Naquele caso não foi preciso mais do que a grelha de três polegadas, apesar de tudo mais fina do que a de cinco, que era a usada nos casos mais elementares, daqueles do tipo: «O tipo levou duas facadas e morreu; qual era a cor do par de sapatos?» Resposta óbvia: «Nenhuma, pois foi na praia».
Foi com a de três polegadas, pois, que iniciou a leitura da carta, preparando-se para um trabalho mais meticuloso e, quiçá, elaborado. O que não se revelou necessário, felizmente, pelo menos na parte relacionada com o «meticuloso» e o «elaborado». O mistério resolveu-se logo na primeira linha, também não existindo outra, verdade se diga, pois a fórmula de cumprimentos não contava como tal, segundo um manual (que lera em tempos), quando se formara, também por correspondência, em escriturário de 2.ª.
E o que dizia, então, a primeira linha?
«O certificado só será enviado após a recepção de 5 euros, na morada da AADP.» Curto e directo. Caso desconfiasse que não estava a lidar com o mundo dos detectives privados, só por má-fé.
Ia levantar o dinheiro e remetê-lo o mais depressa possível. Talvez por correio azul, decidiu. E isso não era um detalhe.
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