29 março 2015

Teses


Aderiu às teses num dia de festa. Esta foi a primeira recordação: havia festa e foguetes, embora não fossem para ela. Veio a descobrir que eram para o senhor manda-chuva. E esta foi a segunda recordação. Rapidamente se adaptou, porém. E esta foi a primeira tese: a adaptação é a forma. Continuou a adaptar, numerando as teses pela sequência numérica: dois, três…, e por aí fora, mas parou no sete, que era um número pelo qual se sentia atraída. Casou com ele.

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Pexote 16

O tiro era fácil, a dois pés, mas acertou num deles.

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Mudança

Mudou a hora para uma posição mais confortável, com mais luz.

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28 março 2015

A lista


Sempre fizera listas. Começara na escola, onde era obrigado, e desenvolvera o princípio ao longo da vida, desta vez por opção. Como estava familiarizado com as listas, estranhava o charivari que por ali andava, quando resolveu fazer uma lista mais cuidada, em papel de qualidade e com boa gramagem, mesmo próprio para impressão. Ao princípio pensava que era por causa do papel, pois suspeitava que podiam acusá-lo de não ser ambientalista, por não querer usar papel reciclado. Em sua defesa dizia que se limitara a seguir o conselho dos gráficos, que aconselhavam o couché. Talvez pedisse uma segunda opinião, por via das dúvidas. Até lá, suspendia a impressão mas não a lista.
Prevendo que a sua lista passaria a ser de referência, dedicou-lhe todos os cuidados possíveis e imaginários, sendo estes os mais fáceis, pois só dependiam de si. Quanto aos possíveis, a coisa era mais complexa, pois não dependiam de si, que era uma pessoa simples, daí a necessidade das listas.
A história das suas listas era uma influência da cultura anglo-saxónica, que era a dominante, quando apareceu pelo mundo e aprendeu a fazer listas. Não estranha, por isso, que a maioria delas tenha referências a esses cantos (e encantos?) e não a outros, que não conhecia ou conhecia mal. Daí talvez a preponderância, pensava agora… Às vezes queria ensaiar listas provenientes de outros dos cantos mas era difícil, pois não dominava os instrumentos e o ensaio corria mal, habitualmente. Ficava com as que tinha, que já lhe davam muito trabalho.
E um dos maiores tinha a ver com os expositores, que era coisa que levava a sério e pela qual se batia, apesar de às vezes se partirem, pois eram de vidro. Com esta lista que estava a preparar, e que estava suspensa, por causa daquela questão relacionada com o papel da impressão, tinha que encontrar uma solução que fosse simultaneamente eficaz e transparente, o que não era fácil. Mas havia uma coisa sobre a qual já tinha a certeza: a sua lista faria referência ao que de melhor encontrava na praça em matéria de legumes, com especial relevo para a beterraba, fonte de vitaminas, sais minerais e de antioxidantes, merecendo, por isso e legitimamente, o título de um genuíno VMI (vegetal muito importante).

Nota do editor: A utilização da sigla VMI pode prestar-se a confusões, sobretudo para quem tenha sido influenciado pela cultura anglo-saxónica. A dúvida é pertinente, pois não resultou claro qual a classificação a atribuir à beterraba: se vegetal ou raiz, que a verificar-se alteraria a sigla para RMI. Mesmo assim, aconselha-se o seu consumo.

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Vozes

_ Começo eu?
_ Tenho dúvidas...
_ Oponho-me!
_ Qual é o problema de ser eu a começar?
_ Talvez ainda não estejamos prepar...
_ Nem pensar!
_ Escuta lá: queres ser tu, é isso?
_ É evidente. Estavas à espera de quê?!
_ Não é melhor termos calma?
_ Por mim, faz favor... Já que és tão bom...
_ E sou! Tens dúvidas?
_ É melhor estar calado...
_ Porque será que não chegamos lá, ao Céu... Não me sabem dizer?

(Em coro) _ Porque somos vozes de burro!!

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27 março 2015

O juízo (suspensão d’)

Declaração prévia: «O título é uma charada. Mas é fácil». Fim da declaração prévia.
Aguentara o tempo que julgou adequado. Mas fartara-se. Conteve-se, porém, na sanção que idealizou. Apesar de tudo era humano e devia contas à sensibilidade. Contava pagá-las, era um facto, até porque já tinha rendimento fixo e tinha-se na conta de pagador de calotes. Que no seu caso eram pequeninos, mas calotes. Mas isso ficaria para depois, pois agora não estava com muito tempo e tinha uma sanção para aplicar, escolhida a dedo no catálogo de sanções para a suspensão do juízo. Mas ainda tinha dúvidas. Atribuía isso a uma sensibilidade exacerbada, por excesso de vitaminas, reconhecia-o agora, o que não se recomendava a sensibilidades exacerbadas e era consequência da automedicação, embora em conivência com uma vizinha, recentemente reformada, que descobrira as virtualidades do natural numa visão que tivera, em sonhos, convidando-a a converter-se. O que fez.
Ensaiou uma nova punição, mas o resultado foi o mesmo. O dedo, persistentemente, fixava-se na punição anterior, até parecia bruxedo! Recusou esta hipótese, era óbvio, pois o seu juízo fortalecera-se no método e na explicação científicos, apesar daquele pequeno constrangimento de só acreditar que chovia quando as galinhas tivessem dentes, o que era frequente. Mas isso era pormenor, pequeno também. No resto, que era a maioria dos pormenores, a explicação e o raciocínio científicos eram os reis para explicar a causalidade do mundo, se bem que nalguns lados a alteração do regime, de monárquico para republicano, tivesse originado alguma turbulência, apesar de tudo não imputável ao vento, que era o da História. Estava a divergir, havia que ter cuidado, até porque não estava para ser chamado à pedra por Bruxelas, que era sítio onde nunca tinha posto os pés, mas que continuava a preocupá-lo, não sabia muito bem porquê…
Mas a sanção aguardava, obediente e sossegada. Até parecia um cão. Se fosse um gato já se teria ido embora. Provavelmente. Como era cão, ainda ali estava. Provavelmente, também. Estava.
Eram horas. Chamou o juízo e disse que lhe ia aplicar uma suspensão, pedindo desculpa e solicitando que compreendesse, mas tinha atingido o limite e não podia ser. Reforçou que as suspensões podiam ser úteis, tivesse o suspenso juízo, o que às vezes não se verificava. No seu caso acreditava que lhe iria fazer bem, apesar da suspensão. Escolhera uma suspensão leve, atendendo ao bom comportamento anterior e ao facto de ser o primeiro amarelo. A partir de agora, cuidado! Mais uma suspensão e o caldo estava entornado! Tivesse juízo, pois. Sobretudo agora, que estava suspenso.

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22 março 2015

Balanço

Olhou para trás, procurando fazer um balanço da sua vida, e foi de encontro a uma porta.

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Moralidade

A história era infantil, mas não tinha moral. Fizeram queixa e deram-lhes razão. Reclassificaram-na e puseram-na para adultos.

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Direito ao nome

A voz fez-se ouvir, sem entoação especial: «Anda, Monga». Não aconteceu nada. «Anda, Monga! Mexe-te!» - continuou a voz, levantando o tom e dando mostras de impaciência. Apesar disso, não se mexia e permanecia impassível.
De repente, dois portentosos murros calam a voz e o seu proprietário cai redondo. Ouve-se um comentário:
_ O meu nome é Songa Monga! E exijo que o digam completo.

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A excursão é à costa, em hotel de 5 estrelas. A meio fazem um sorteio e posso habilitar-me a dois prémios. Devo ir?

Sim, se um dos prémios for um faqueiro. Não, se for uma almofada de penas.

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Horas mortas

_ Já viu que horas são?!...
_ Esqueci-me das horas.
_ Não tem juízo?...
_ Perdi-o.
_ Isso é uma loucura! E agora?!...
_ Agora, nada.
_ É o fim?...
_ Nã.
_ Há esperança, então?...
_ Talvez...
_ Está a brincar, não?...
_ Sim.
_ Não tem juízo?!...
_ Tenho.
_ Não o tinha perdido?!...
_ Sim... Mas já o achei. 


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Fosquinhas


O folheto tinha sido deixado na caixa de correio. Não era diferente da maioria dos folhetos, mas tinha uma particularidade: apitava quando se passava o dedo pelo endereço. E este pormenor já era suficiente para o tornar mais atractivo do que os outros, até porque a música que se ouvia era dos Beatles, que era um grupo do seu tempo. É certo que o toque se assemelhava ao dos telemóveis, que não tinha, mas que não deixava de ser engraçado, embora não conseguisse identificar muito bem a música, que às vezes lhe parecia a do Yellow Submarine e noutras o Hey, Jude. A propósito disto também tinha chegado a uma decisão: iria ter telemóvel. E o toque da música seria o da 9.ª Sinfonia, de Beethoven, de que também gostava muito, embora não fosse do seu tempo.
Para além de apitar uma música dos Beatles quando se passava o dedo pelo endereço, e só nessa zona, porque nas outras era igual a todos os folhetos, publicitava uma viagem à costa atlântica, «pela módica quantia de 22,50 €, no regime de meia pensão, em hotel de quatro estrelas», o que lhe parecia um preço justo, «e o habilitaria ao sorteio de um faqueiro, um colchão e a frequência gratuita de um Curso de Fosquinhas», o que também não lhe parecia mal, sobretudo a frequência do curso, pois sempre se interessara por fosquinhas e acreditava convictamente que a formação tinha que ser um processo permanente, sob pena de estiolar o cérebro e impedir a perfeição e a progressão pessoal e profissional, o que não se desejava, e Bruxelas impedia.
Não vamos falar aqui da excursão, até porque isso fica para o capítulo das memórias, mas pode adiantar-se que o sorteado já se adivinha quem foi… Esse mesmo!
Sobre o faqueiro e o colchão também não iremos falar. Quanto ao curso de fosquinhas, não há entraves, até porque está reconhecido e passa diplomas. Como o que está na minha posse, onde se atesta que «F…, natural de…, filho de… e de…, concluiu, com aproveitamento, e a nota final de…, o curso de Iniciação, com equivalência a Mestrado, de Fosquinhas, teoria e método». Só o título é um monumento, o que revela bem a sua categoria. Dizer que estou orgulhoso é pouco. Não seria verdade e não seria fiel ao que sinto. Estou muito orgulhoso, essa é que é a verdade! Depois da frustração de não ter sido seleccionado para o Master Degree de Columbófilo, só um curso como o de Fosquinhas me podia dar uma satisfação tão grande, permitindo-me a realização plena no mundo do saber. Aleluia, pois! Habemus Fosquinhas! (*)

(*) A partir do momento em que preencha o certificado com os meus dados.

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Foi-se (e não, foice)

A ironia fora vista a entrar numa casa e não fora vista a sair. Nas primeiras horas ninguém se importou e nas segundas também não. Foi só nas terceiras, quase a passar para as quartas, que começaram a aparecer as preocupações e as suspeitas. A princípio não era claro qual a tendência dominante, se a da preocupação ou a da suspeita, mas rapidamente se estabeleceu um consenso em torno da expressão «preoc-suspec», que dava um ar até modernaço, quase do domínio da gestão, ciência que não era para toda a gente. Estavam pois as pessoas em estado de preoc-suspec quando, vindo não se sabe de onde, apareceu um cão. Foi uma excitação geral, que abrangeu mesmo os curiosos, umas alminhas que costumam aparecer em situações habituais de preoc-suspec. Mas havia que tentar encontrar explicações para o que se estaria a passar. Após várias tentativas, que tinham mais de várias do que de tentativas, alguém se lembrou de consultar o catálogo das preoc-suspec para sair do impasse. Todos concordaram, excepto um, que era céptico, mas que desta vez tinha razão: o catálogo não existia. Aliás, «Como poderia existir?», perguntava-se, e acabavam por lhe dar razão os outros, os não-cépticos, que eram a maioria menos um, «Se a expressão tinha acabado de ser inventada e ainda permanecia no estado de neologismo, como o uso do itálico atestava?». E foi neste momento que a consternação resolveu aparecer, cansada de estar a observar, de longe, mas mortinha por se chegar e participar. Chegou e o desânimo apoderou-se de todos. A ironia já era.

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21 março 2015

A tara



Desenvolvera uma tara. Para os que não acreditavam, aí estava a resposta ao seu cepticismo: a sua tara crescera, desenvolvera-se e transformara-se numa bonita tara.
Tudo começara num dia, como o de hoje, com a Primavera já entrada, como a de ontem. A Primavera chegara de armas e bagagens, disposta a arrasar. As armas eram as de anos anteriores, mas as bagagens não.
Como estávamos em Março, toda a gente se preparava para os dias que aí vinham: «manhã Inverno e tarde Verão». Quem achasse estranho que aprendesse o ditado, que era fácil, e até servia de refrão para cantorias, sobretudo quando as ocasiões se proporcionavam e as pessoas se dispunham a cantar.
Vinda a Primavera, que chegava sempre a tempo e com data marcada, como a de ontem, que chegou cerca das 23h00, no comboio da noite, e até trouxe um bónus, um eclipse, em rigor ainda com o fato de Inverno, mas assim como uma prenda que a estação anterior dava à seguinte, o que era elegante e revelava uma educação cuidada, própria de estações do ano.
Tinha sido bonito, segundo lhe disseram, mas que ele não vira, pois estava a trabalhar num gancho, actividade que desempenhava para além da que fazia nas horas normais, de que não se irá falar, pois não está relacionada com a tara, que foi o que nos trouxe aqui. Não defraudemos os leitores, por conseguinte.
A actividade de gancho era o que era, como se compreende, mas tinha as suas vantagens. Uma delas era o salário (melhor do que o outro, diga-se, até porque era limpo e higienizado). Outra era a de o trabalho ser ao ar livre, o que não era mau, pois sempre lhe dava vantagem na obtenção de uma tez bronzeada primeiro do que todos, o que também contava e dava um atractivo especial ao gancho.
De facto, não era para todos que se estivesse já com um assinalável bronzeado em Abril, antes das «águas mil», consequência de as tardes de Março, as de Verão, serem bem aproveitadas. E talvez tenha sido por isso que, num belo dia, melhor dizendo, numa bela tarde, pois estávamos em Março, viu, junto a uma moita, aquela que viria a ser a sua tara.
A princípio, não se apercebeu que estava ali uma tara. Só quando se aproximou é que verificou que a tara tinha sido abandonada, mas aparentava estar bem tratada. Ficou siderado. Reagiu, contudo, e depois de ter confirmado que a tara não tinha sido deixada ali por engano nem se tratava de uma cena para os Apanhados, pegou na tara e levou-a para casa. Logo explicaria à vizinhança onde a arranjara, o que aconteceu, e também a vizinhança acabou por se afeiçoar a ela.
Os anos passaram e a tara teve um desenvolvimento comum às diversas idades das taras: a infância, a puberdade, a adolescência, e a adulta, onde se encontra agora. Das diversas fases da tara, a da adolescência foi a mais complicada, mas isso já se estava à espera, e o próprio psicólogo já o tinha posto de sobreaviso. Tirando isso, nada de mais.
Parece que foi ontem, mas a minha (a nossa, melhor dizendo, pois a vizinhança também é responsável e ajudou muito) tara está adulta e vai iniciar-se na vida activa, depois de ter tirado o curso de tara, e sempre com as melhores notas!
Qualquer dia (que espero ainda venha longe) a tara sairá de casa. É a vida e também acontece às taras.
Quando isso acontecer, faremos uma festa. Não sei ainda quando vai ser, mas está garantido que será de arromba, embora sem taradices! Haja respeito.


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Conhecimento

Ficara a pensar numa expressão que ouvira e que sintetizava, com grande argúcia, o que se verificava em relação aos especialistas e aos generalistas. Segundo o que ouvira e julgara ter percebido, um especialista ia sabendo cada vez mais sobre sobre cada vez menos coisas; um generalista, pelo contrário, ia sabendo cada vez menos sobre cada vez mais coisas.
Parecera-lhe que tinha sido esse o sentido do que ouvira. Caso não o fosse, contudo, arranjara uma fórmula mais simples, e que era esta: o especialista é aquele que sabe cada vez mais sobre pentelhos e cada vez menos sobre o resto do corpo. Com o generalista é o contrário.

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20 março 2015

Detalhes


Recebeu a carta com um misto de alegria e apreensão. O logótipo no sobrescrito foi o que o encheu de alegria: Associação Amadora de Detectives Privados (AADP). O conteúdo da carta foi o que motivou a apreensão: estava escrita num corpo e num tamanho de letra que não eram condizentes com o estatuto de um detective privado, que tinha uma dignidade própria, e que constituía a marca distintiva no mundo dos detectives privados. O que, manifestamente, na carta da AADP não se verificava. E sobre isso era intransigente.
Teve um momento de suspensão do juízo e resolveu acender um cigarro para o ajudar a pensar. Meteu a mão no bolso, a procurar o maço, mas recordou-se de que não iria encontrar maço nenhum, pois deixara de fumar há muito tempo. Era um detalhe e não deveria ser descurado. Essa era a primeira conclusão. Também lhe fazia bem aos pulmões e ao bolso. Outro detalhe, igualmente, mas a conclusão remetia para dimensões diferentes daquela em que estava a iniciar-se: a investigação detectivesca. E era aqui que queria concentrar-se, até para justificar o investimento para se tornar detective privado e a recepção do diploma, que lhe chegara com a carta da AADP. Que ainda não abrira, note-se, mas sobre a qual já adivinhara que trazia o certificado, depois de olhar para as dimensões, o tamanho A4, que era o formato do certificado. Mas enganava-se. E isso não era bom.
Resolveu investigar por conta própria, o que também lhe era permitido pelo estatuto. Começou por uma leitura mais fina da carta, pois estava convencido que o segredo estaria aí, na finura. Desta vez acertou. Voltava a sentir a confiança que perdera, por momentos, quando se equivocou a respeito do certificado. Relevou a falha, que atribuiu à inexperiência em matéria de conclusão de raciocínio de detective privado. Podia até ir mais longe: estava convencido que o erro fora consequência de não ter preparado esse módulo no curso para detective privado por correspondência, que também poderia ser frequentado na modalidade de e-learning, mas era mais caro. Lembrava-se de que essa fase não tinha sido fácil, até porque o módulo era difícil, o que se compreendia, pois constituía a essência do que era ser detective privado. Veria como as coisas iriam decorrer, a partir de agora. Caso se deparasse com dificuldades de aprendizagem, a solução era recorrer a um explicador privado, o que não dava muito jeito. Teria que ver.
Começava a suspeitar que o projecto de se tornar detective privado poderia ser mais complicado do que tinha pensado. E logo agora, que tudo parecia encaminhar-se… Mas desistir não era opção, logo agora que tinha alugado um baixo para o escritório e mandado fazer uma placa para colocação na parede do prédio, pois acreditava que a publicidade ao serviço de detective privado ganhava mais credibilidade assim do que anunciá-lo nos classificados, junto com anúncios de massagens, canalizadores e marquises de alumínio, de que não era adepto, aliás, sendo mais apologista da manutenção das varandas abertas, que eram melhores para as casas e proporcionavam mais ar e luz, detalhes a que sempre havia que dar atenção, mesmo que estivessem afastados da sua área de intervenção enquanto detective privado, onde se lidava mais com zonas em que o ar e a luz não refulgiam propriamente…
Mas afastava-se do seu objectivo inicial, que era o de ler a carta da AADP e descobrir porque é que o certificado não lhe tinha sido enviado, contrariando a sua expectativa inicial. É certo que estas digressões, como era o caso da reflexão sobre as marquises, costumavam ser uma das características de um determinado perfil de detective privado, o do detective profundo, capaz de evidenciar outros interesses para além da sua actividade corriqueira com as coisas da podridão e da sordidez, dos pequenos e grandes pecados, dos pecadilhos e de outras minudências, como a corrupção e o crime. A reflexão sobre as marquises entrava num outro patamar, para além dos que se referiram atrás, podendo ser acompanhada por outras, a respeito de vinhos, gastronomia e futebol, por exemplo, mas já não tauromaquia, de que não gostava, nem de pesca, para a qual não tinha jeito. No entanto, caso o serviço exigisse, que remédio teria, pois era um profissional. O futuro o diria.
Depois da digressão (em rigor tinham sido duas ou três), concentrou-se finalmente na leitura da carta. Desta vez em modo fino, como já se dissera atrás, mas que era conveniente relembrar, o que constituía mais uma técnica do novelo do raciocínio detectivesco, que era complexo.
Escolheu a medida de finura que julgou mais adequada. Naquele caso não foi preciso mais do que a grelha de três polegadas, apesar de tudo mais fina do que a de cinco, que era a usada nos casos mais elementares, daqueles do tipo: «O tipo levou duas facadas e morreu; qual era a cor do par de sapatos?» Resposta óbvia: «Nenhuma, pois foi na praia».
Foi com a de três polegadas, pois, que iniciou a leitura da carta, preparando-se para um trabalho mais meticuloso e, quiçá, elaborado. O que não se revelou necessário, felizmente, pelo menos na parte relacionada com o «meticuloso» e o «elaborado». O mistério resolveu-se logo na primeira linha, também não existindo outra, verdade se diga, pois a fórmula de cumprimentos não contava como tal, segundo um manual (que lera em tempos), quando se formara, também por correspondência, em escriturário de 2.ª.
E o que dizia, então, a primeira linha?
«O certificado só será enviado após a recepção de 5 euros, na morada da AADP.» Curto e directo. Caso desconfiasse que não estava a lidar com o mundo dos detectives privados, só por má-fé.
Ia levantar o dinheiro e remetê-lo o mais depressa possível. Talvez por correio azul, decidiu. E isso não era um detalhe.

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