Era uma pessoa normal. Como todas as pessoas normais, tinha as suas bizarrias. A lista de contactos do telemóvel era uma delas. Não a lista, mas o número e a manutenção dos contactos, fixado religiosa e intransigentemente nos 365, para coincidir com o número de dias do ano, excepto nos bissextos, uma originalidade para a qual se encontrou solução e, se não a tivesse encontrado, facilmente a pariria (parirá?...) sob a forma de uma outra etiqueta. Mas isso é outra história, como um dia se verá...
Como normal que era, usava o telemóvel para resolver as crises internacionais, o itinerário das visitas papais e os
puzzles de figuras e bolinhas, abstendo-se, por pudor, de discutir o campeonato de futebol. Só de tempos a tempos (sempre certos) costumava telefonar aos seus 365 contactos, procurando fazê-lo no Natal, consoante as folgas, o estado do tempo e a saúde dos pés, como se verá também.
Comecemos pelas folgas: «Resolvido!»; o estado do tempo: «Frio, mas com sol.»; acabemos nos pés «Que já não era sem tempo!...», e que é parte nobre do relato, pese embora a disposição anatómica e a mal disfarçada consideração de que sofrem tais membros...
Na cabeça de uma pessoa normal, como era o seu caso relativamente às duas, o modelo funcionava como um relógio, normal também, sujeito a pequenos ajustes com a operadora da rede, mais ou menos pródiga com os clientes que tinham uma lista de 365 contactos, todos eles do peito. E que funcionava assim: andava e telefonava, correndo alfabeticamente a lista e detendo-se sempre que um sinal de trânsito fechava, como é usual nas cidades modernas e nos passeios por ela fora. Para quem desconfiar, não há razão para isso e, se a houver, é porque não se está habituado a lidar com as situações de normalidade, que são de todos. Quando abria o sinal, continuava. Excepto nos anos bissextos, tudo se processava assim. Mas naquele ano, que não era bissexto, algo aconteceu de diferente, dando um pequeno retoque em tanta normalidade, que custa a manter, é certo, mas também provoca o seu desgaste e habituação excessiva, logo, não aconselhável.
E o poste tinha sido colocado no seu trajecto por uma razão sábia, reconheceu-o posteriormente, pois era a forma mais airosa de sair do buraco escrito e criativo em que se tinha metido, por causa de um número, o 365, um aparelho, o telemóvel, e uma casca de banana deixada por alguém imprevidente e pouco amigo do ambiente e da higiene urbanas. Tudo junto se resumiu num galo na testa, cantando um fio de sangue que escorria pela cara abaixo, a desviar-se sinuosamente do nariz, pois não o queria incomodar... E nem incomodado ficou a nossa pessoa normal quando quis ligar ao 115 e pedir ajuda pelo telemóvel - com que raio é que havia de ser?!... - e uma voz melodiosa o recebeu com a frase: «Saldo não disponível. Por favor contacte o ####». Normal.
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