29 novembro 2015

A fama

Olhou para o relógio e viu que só daí a vinte minutos, mais ou menos, é que passaria outro autocarro. Iria aproveitar o momento para pensar algumas coisas a respeito da sua vida. Uma delas prendia-se com a busca da fama, coisa que o preocupava há algum tempo, designadamente depois de ter lido (ou ouvido, não se recordava) que todos tinham direito a quinze minutos de fama. Como estava a ir para velho, receava que a oportunidade de usufruir dos «seus quinze minutos de fama» (um direito, por conseguinte) pudesse escapar-lhe, mais a mais porque suspeitava de que a fama era capaz de ser efémera, pois estava cheia de força e tinha que se pôr a andar para outras paragens, porque permitir quinze minutos de fama a toda a gente era uma tarefa digna de um «Pai Natal da Fama», por analogia com o «Pai Natal das Prendas», que tem uma trabalheira desgraçada na noite de 24 de Dezembro, como toda a gente sabe, talvez mais desgastante do que a do Pai Natal da Fama, que pode fazer o trabalho ao longo do ano e sem limite de prazo, pois não está escrito em lado nenhum que a fama tenha que ocorrer no dia 'x' ou 'y' do ano 'z'. Sendo assim, iria ver se tinha a sorte pelo seu lado e se a sua fama estava na disposição de se manifestar agora, enquanto esperava pelo próximo autocarro.
Ao contrário das prendas no Natal, em que se escreve num cartão o que é que se quer ter ou ser, na busca da fama não existe nada parecido com um cartão, podendo servir qualquer tipo de suporte ou de meio, embora sujeito à validação da entidade competente para a fama (a televisão, na maioria das vezes), que nisso leva o seu papel muito a sério, inclusive divulgando os critérios nos intervalos das emissões e das novelas, quaisquer que elas sejam, para todos os gostos, o que não surpreende, pois nestas coisas da fama as coisas têm que ser pensadas até ao mínimo pormenor, com mais ou menos glamour, ingrediente necessário e conveniente, sobretudo nos dias de festa, que não costumam ser poucos.
Mas o tempo urgia e havia que fazer os possíveis para alcançar a fama, alguém lhe mandara um sms a avisá-lo, não fosse perder-se a oportunidade e entretanto chegasse o autocarro, por sorte atrasado em relação ao horário previsto, segundo lhe garantia um outro sms, diferente do anterior, bem entendido, pois este vinha da própria transportadora.
Depois de alguma reflexão, decidira-se por um pino em cima de um banco, estrategicamente colocado junto da paragem, enquanto trauteava uma canção revolucionária do seu tempo de militante (revolucionário, também), mas dita da frente para trás, num efeito que se pretendia inovador e muito próximo da música atonal, coisa mais do que susceptível de piscar o olho à fama, caso ela estivesse nas imediações ou de passagem.
Esperava um sinal de que a fama estaria ali, «à mão de semear», mas equivocava-se, conforme podia constatar, pois o único sinal de que podia dar-se conta era o de uma câimbra numa das pernas, pormenor que o impedia de continuar a performance e esperar pela fama, mesmo que ela pudesse estar perto. Não se resignaria, contudo, e tentaria mais uma vez, pois ainda dispunha de mais dez minutos até que o autocarro passasse, com um bocadinho de sorte ainda lhe permitira trocar umas palavrinhas com a fama, onde tentaria saber, por exemplo, como é que poderia fazer render os quinze minutos de fama para, digamos, 16 minutos e meio, talvez com um programa mais intenso ou com mais alongamentos, não sabia, mas gostaria de saber a opinião dela sobre se era possível e, quiçá, se, com isso, lhe era permitido ser seleccionado para os campeonatos mundiais da fama, que ainda não sabia aonde se realizariam, mas que costumavam ocorrer lá mais para o Verão, disso tinha a certeza.
Na sequência da câimbra, mudou para a prática do Tai Chi  em cima de um corrimão, situação que lhe permitiria, estava certo, alcançar os seus quinze minutos de fama, isto depois de pedir autorização à porteira do prédio se o podia fazer, garantindo-lhe que, se quisesse, também poderiam partilhar a fama, fifty-fifty, se achasse bem. Ela disse que iria pensar, mas que precisava de fazer um telefonema.
Passado pouco tempo, aparecerem uns senhores de branco que levaram «o famoso». Não eram muito faladores, mas mesmo assim ainda disseram duas ou três palavras para as câmaras, entretanto aparecidas, mas que se tinham atrasado por causa do trânsito. Quem ouviu, não percebeu grande coisa mas parece que tinha a ver qualquer coisa com o Napoleão...
Lá longe, desfazendo a curva, o autocarro aproximava-se. Não vinha muito cheio e cruzara-se com a carrinha dos homens de branco. De dentro, mas via-se mal, alguém juntava os dedos e fazia um desenho de um coração. Foi abertura no telejornal.



Etiquetas:

27 novembro 2015

Curta

Batem as duas da tarde e ouve-se um estampido. Fora um tiro.
Correu depressa, o mais que pôde. Não chegou a tempo.
Ouve-se uma voz: «Corta!».

Etiquetas:

22 novembro 2015

Epifania 2


Ainda estava de roupão, quando a epifania lhe bateu à porta. Pediu desculpas por aparecer assim, sem avisar, mas era de sua natureza apresentar-se ao serviço como era suposto estar, se bem que uma penteadela não tivesse caído mal. Não era o que tinha sido combinado, recordaram-lhe, até porque não se tinha preparado uma refeição decente, com poucas gorduras e bebidas light. Concordou, é certo, mas que lhe desculpassem a ousadia, não sendo sua intenção ofender a quem aparecia, coisa severamente punida pelo código de etiqueta das epifanias, recentemente revisto. Não haveria problemas, sendo assim, pois a pessoa que a receberia era compreensiva e tinha bom fundo. Só lhe pediria um bocadinho de paciência, enquanto tomava um banho rápido. Até lá, que a epifania se entretecesse com as notícias.

Etiquetas:

O nabo é discriminado?

Depende do acompanhamento. No cozido, fica bem.

Etiquetas:

21 novembro 2015

A encomenda


Como todas as tardes, dava uma vista de olhos pelo jornal. Relanceava os olhos pelos títulos, detia-se numa ou noutra notícia e seguia em frente. Nesse dia, nada fazia prever o contrário dessa rotina. Mas a surpresa estava lá, numa das páginas pares, as mais difíceis de prender a atenção, por isso mais baratas para a publicidade. Mas o seu olho era um olho treinado. Sobretudo para determinados assuntos. Para outra pessoa qualquer, a matéria seria insignificante. Para outras, como era o seu caso, o texto era como se estivesse escrito em letras garrafais, de cor vermelha. Matreira como era, contudo, não se convenceu à primeira nem à segunda leitura, mas só à quinta. Mas convencera-se e decidira avançar.
Apesar de codificada, a mensagem era explícita para quem a sabia interpretar. Nem precisava da chave. Fez um telefonema para o fornecedor habitual, que não estava. Tentou nas páginas amarelas e também não teve melhor sorte. Teria que improvisar e socorrer-se do que havia, que não era muito. Mas julgava que chegava e o fim justificava os meios. Seria assim e não se falava mais nisso. Quando fizesse o relatório, veria onde colocar as vírgulas e os pontos finais. Os pontos de interrogação ficariam para mais tarde e para uma abordagem mais fina, provavelmente com os óculos.
No dia aprazado, estava tudo pronto para o envio. Conferiu tudo. Satisfeita, embora ansiosa, deslocou-se aos correios, cumpriu os procedimentos e pagou (não sem dificuldade, é certo, pois esquecera-se do cartão de crédito e só dispunha de umas moedas, que uma boa alma lhe tinha depositado na mão depois de a ter ouvido cantarolar uma ária de Puccini, junto ao metro). Pediu um recibo e abandonou a estação dos correios. Dirigiu-se para o metro e resolveu tentar a sua sorte, desta vez com Wagner. «Não foi mau», escreverá mais tarde nas memórias, e acredita-se que sim, pois as memórias não costumam mentir. Exagerar também não, mas isso é conclusão para os especialistas…
Os dias passaram-se como é habitual suceder: a claridade sucedendo-se à escuridão, ou vice-versa, com pausas para as refeições e outras necessidades. No nosso caso, falamos de três. Podiam ter sido mais, mas os correios tinham-se esmerado. Apenas com um senão: fora tudo devolvido. Incrédula e furiosa, fez uma série de chamadas para quem de direito. Em todas, respondendo à incredulidade e ao tom furioso, a resposta era sempre a mesma: o procedimento em vigor. Quando quis saber mais, lá lhe explicaram «o procedimento»: não cumpria os requisitos de processamento, segundo a entidade reguladora. Ficou desconsolada e jurou para nunca mais. Ninguém acreditou, até hoje. Junto ao metro, começa a ouvir-se uma ária de Puccini…



Etiquetas:

Livro

O Quarto Protocolo, de Frederick Forsyth.

Etiquetas:

Sentido

Apontou ao Sul e perdeu o Norte.

Etiquetas:

01 novembro 2015

O vilão

Não foi por falta de avisos. Também lhe sugeriram «cautelas e caldos de galinha», mas nada o demoveu. Estava escrito nas estrelas, pelo menos nas que se viam a olho nu: iria ser um vilão. Ponderara muito e decidira-se pelo vilão politicamente correcto, pois o politicamente incorrecto estava démodé, mesmo que muitos achassem que este é que era o verdadeiro e o que provocava mais palpitações. Apesar disso, resolvera romper com a tradição da vilanagem e renegar todos os princípios fundadores: a rusticidade, a grosseria, a abjecção, a sordidez, o carácter baixo e vil. A quem lhe criticava a opção desmentia-os com o ar dos tempos e com a lua dominante, mais para cá do que para lá, com ascendente adequado. Também se vestia melhor e de acordo com a ocasião, sinal indiscutível de bom gosto. Era bem formado e mandaria sempre um postalzinho a desejar boa sorte. Mas sem selo.



Etiquetas: