Não era muito dado às compras. Nesse dia, porém, a publicitação de uma hasta pública de imaginários chamou-lhe a atenção. Já há muito tempo que andava com vontade de comprar um, desde que fosse em conta e estivesse bem localizado, sem precisar de muitas obras. O que tinha já era um bocadinho pequeno para as suas necessidades e um imaginário de férias caía sempre bem e podia ser um objectivo para a reforma.
Como o jogo de dominó tinha sido desmarcado, por causa de um dos habituais parceiros ter sido escalado para intervir numa conferência sobre o estado do mundo, que ocorria de quinze em quinze dias, habitualmente (excepto em agosto, por via das férias, e na 2.ª quinzena de setembro, por causa das vindimas), achou que a oportunidade podia vir a calhar e sempre o ajudava a passar o tempo. Por isso, lá foi assistir à hasta pública.
Quando lá chegou, ficou um bocadinho assustado quando se viu rodeado por muita gente, de todas as cores e feitios, o que previa que a sessão viria a ser animada, concluindo ele que, das duas uma: ou o mercado dos imaginários andava muito concorrido ou esta multidão não tinha mais nada que fazer, aterrando ali como podiam ter aterrado noutro sítio qualquer. Teria que ver como as coisas correriam. Se não lhe agradasse, ia mas é aos saldos de verão das grandes superfícies, que estavam a bom preço e ainda lha permitiam comprar meia dúzia de melões, que lhe fariam chegar a casa, acondicionados e prontos para marcharem com umas tirinhas de presunto.
Ia preparado para fazer uma licitação ou outra, dependia do preço e das condições de pagamento, mas tinham-no avisado que só a dinheiro ou por multibanco, dependendo esta forma de pagamento, contudo, de se conseguir fazer ou não a ligação. Quanto a cartões de crédito, nem pensar! Mesmo assim (e já que ali estava) dispôs-se a ver o que se mostrava e ouvir o que se mandava por aquela gente, que sumariamente dividiu em dois grandes grupos: o dos imaginários sérios e o dos imaginários pândegos.
Para sua surpresa, o grupo dos imaginários sérios era mais numeroso do que o dos pândegos, o que o levou a concluir (uma mania que tinha) que a realidade do imaginário sério estava não só muito bem representada como era florescente, atendendo ao número de placas de licitação que diziam, a letras redondas, «escritor», «romancista», «novelista», «poeta», «crítico», «intelectual», rapaziada da pesada, portanto, com quem era avisado não nos metermos a licitar, por manifesta incapacidade de cabedais, pilim ou graveto, isto para não entrarmos em considerações no âmbito do tipo de imóvel e do número de assoalhadas, negócio que para ele não era atractivo pois, como se dissera no início, o que lhe interessava era um imaginário mais com características de T1 do que de mansão ancestral, tradicionalmente localizadas no campo, ainda para mais, o que contrariava um pouco o seu sonho de poder abrir uma porta, andar dois passos e dar um mergulho no mar, voltando depois para casa. Era assim que imaginava as coisas, pelo menos no Verão. Nas outras estações logo veria como seria, mas a parte do mergulho no mar era capaz de ser difícil de concretizar no Inverno, excepto talvez no 1.º de janeiro, mas que não contava, verdadeiramente, pois já era tradição. Restava-lhe, pois, ficar-se pelo grupo dos imaginários pândegos.
Era um grupo curioso, este dos imaginários pândegos. Sempre tesos, não deixava de ser surpreendente encontrá-los num lugar como aquele em que se encontravam. A falta de guito não parecia preocupá-los, antes os entusiasmava mais, por paradoxal que pudesse parecer. Habituados a nada ter e a nada seguir, para além do seu imaginário, compraziam-se em idealizar os cenários em que isso não constituía qualquer problema. Unia-os uma anarquia quase infantil, pródiga de eventos e factos mirabolantes e estonteantes, numa desbragada euforia e risível encanto. Com as consequências que, muitas vezes, se adivinhavam à partida: entretidos na paródia (ele incluído), como sempre, deixara fugir a oportunidade que chegou a aparecer nessa hasta pública, o lote 395, aquele mesmo com as caracteristicazinhas que se desejavam e que desejava… arrematado por um pato-bravo das residências literárias…
Olhou para o relógio e viu as horas. Virou-se para o seu grupo, que entretanto adoptara, e perguntou se alguém queria ir ao
happy hour da tasca ali perto. Todos se riram e disseram que sim, que era fixe. Todos?!... Não, têm razão: faltava um. Mas esse era gaulês…
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