Nem será uma novidade, penso, mas todos os jornalistas ou os que o ambicionam ser desejam, pelo menos uma vez que seja, vir a ser repórteres de guerra. Apesar do epíteto de malucos, loucos, destravados, passados dos carretos, inconscientes,aventureiros, destemidos, heróis, que lhe venha a ser aposto, a verdade é que esse anseio está alojado no coração do repórter e, nalguns casos, difícil de desalojar. Também foi o meu caso. Lembro-me perfeitamente desse dia, uma sexta-feira, véspera de fim-de-semana grande, em que comuniquei ao meu pai e à minha mãe a minha intenção. Também estava calor. Mesmo assim, estava com arrepios. Depois do almoço, aproximei-me dos velhotes e disse-lhes que queria falar com eles, que tinha uma coisa importante a comunicar-lhes. A minha mãe disse um «Ai, Jesus, Maria Santíssima!...» e o meu pai limitou-se a franzir o sobrolho (um clássico em quem desempenha a função de pai), levantando os olhos da leitura do jornal, curiosamente uma reportagem sobre as ideias que motivam a juventude em tempos de crise existencial ou desgosto de amor na Lapónia profunda, lembro-me perfeitamente. Entretanto, a minha mãe começava a recitar a oração que costuma usar em tempo de trovoada, a de «Santa Bárbara bendita...», já não me recordo do resto, apenas do excerto em que se refere uma «cobra com 27 filhos a mamar...», vá-se lá a perceber porquê esta recordação específica, talvez pelo simbolismo ou pela conotação visual de ver uma cena desta natureza, digna de um plano de Arrabal, meu amigo e mestre, isto não desmerecendo outros, como os dos cowboys, das comédias, de guerra, dramas, e por aí fora, estaria aqui uma vida inteira e mais algumas a desfiar memórias, episódios, picarices e outras coisas... Adelante!
A conversa com os meus pais ficou-me gravada na memória, e ainda bem. Passo a reproduzi-la aqui, consciente do efeito que ela pode ter na mente de um jovem ou menos jovem futuro repórter, de guerra ou não, pois ela é de aplicação transversal. Funciona como uma espécie de cartilha, assim se queira saber ler ou interpretá-la, a escolha é tua, jovem repórter. Não se identifica quem disse o quê, primeira regra para um entendimento abalizado e fundamentado, deixando espaço para a criatividade, outra das regras, mas sempre cingidos aos factos!
_ Queria pedir uma coisa...
_ Fala com a mãe.
_ Ai, minha Nossa Senhora!...
_ Então, perdeste a língua...?
_ Eu, eu, eu ...
_ Pai Nosso...
_ Eu quero ser repórter de guerra!
_ ?...
_ ?...
_ E como é que queres fazer isso...?
_ Tenho que te fazer a mala... Ai, e a merenda...!? Porque é que só me avisaste agora, que está tudo fechado?!... Valha-me Deus. E agora...?
_ Então... escolho uma. É simples.
_ Atiras uma moeda ao ar, é...?
_ Não, que ideia!... Escolho uma em que se combata pela liberdade, contra a opressão, pela dignidade. Não deve ser difícil escolher...
_ Queres levar t-sirts ou pólos?...
_ T-shirts e jeans.
_ Quando é que estás a pensar ir?
_ Agora. Já! É urgente.
_ E como é que vais?
_ À boleia. Faz parte.
_ Queres levar uma omelete?
_ Pode ser. Fruta também.
_ Pensaste bem nisto, não pensaste...?
_ Claro!... Também, logo vejo: se não estiver a dar, regresso... E escrevo um livro!
(in Estava Lá, Mas por Acaso, pp.4)
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