26 julho 2020

No que ficamos, afinal?

_ Temos que fazer uma coisa à séria! Se não for à séria, não quero.
_ E tem que ser agora...?
_ Sim! E à séria!
_ ... Porque se não for à séria...?
_ É a brincar.

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Fica no ouvido

Charlot, a Pantera cor-de-rosa e um Tretas (como eu) entram numa tasca.
Ouve-se um tarã, tarã...

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Em nome dos marcadores precários

Usam-me como marcador de livros. Não gosto e não me sinto confortável. E não me venham com a conversa sobre os benefícios da proximidade com os livros ou a literatura e de o papel que desempenho, ainda que contrariada, contribuir para sinalizar a página onde o leitor deve reiniciar a leitura ou, caso mais raro, aquela página em que, vá lá adivinhar-se porquê?, detectou algum pormenor estilístico, uma ideia, uma imagem que quer reter ou fazer perdurar... Já disse: não quero dar para esse peditório! Falo em meu nome, factura que sou e filha de factura. Mas também o poderia fazer, se para aí estivesse virada, em nome de todo o desgraçado cartão, papel, tira, pedaço, folheto, recibo, clipe, guardanapo, publicidade a curandeiro ou folha de papel higiénico. Uma verdadeira rebaldaria e pouca vergonha! E os direitos, senhores, onde é que estão...? As condições de trabalho, quem fala delas...? E o tempo para a família, alguém me diz como é que se gere...? Como não ouço ninguém, presumo que também não vou ouvir... E os queques...? Sim, os queques dos marcadores com pedigree, aqueles muito lindinhos  e cheios de estilo, bem impressos e guilhotinados, a fazerem aquilo para que foram feitos (e bem!), pagos a peso de ouro pela gramagem, o tipo de papel e o livraço que vão ajudar a vender...? Pois é, assobiam para o lado (e que bem que assobiam, note-se, verdade seja dita, boas academias de assobio devem ter frequentado!...). Mas, mesmo que ninguém faça nada, eu não me calo! Algo vai ter que mudar e é já!
Para começar, uma petição a circular online para recolher assinaturas e a apresentar na assembleia. Faço-a num piscar de olhos (publicada em www..., é só pôr o Google a trabalhar e encontram-na logo). De seguida, vamos começar a preparar o movimento dos separadores de livros precários (abaixo! ...desculpem mas foi do entusiasmo); recusar o horário de trabalho vigente, instituindo de imediato (acima!... desculpem, de novo, mas é da emoção) as pausas relaxantes e com afastamento físico dos livros, da literatura e das prateleiras; instituir um subsídio de risco e férias pagas (upa, upa!..., ups!,... sorry). Unidos venceremos!

Não sejas marcador precário (a não ser que queiras, tu é que sabes). Organiza-te!

Factura n.º 123321MR
IVA: isento.



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25 julho 2020

Buffet frio

Não havia muita coisa que ver: alguns melões, meia dúzia de melancias, batatas, cebolas, alhos e alguns tomates. Para banca, era fraca. Ao lado, ainda era pior: textos manhosos, livros sem jeito, manuscritos descosidos. Dentro da vasilha, algumas expressões: idiomáticas, umas, chulas, outras, mas também de origem. Pediu que lhe tirassem uma malga delas, a ver no que dava. Pagou e foi para casa. Passou-as por água e puxou por uma: «Tanto se lhes dá como se lhes deu». Estava um bocadinho mortiça, talvez da salmoura, ou por ser de sua natureza. Mas, agora, já não havia volta a dar: tinha que lhe pegar e fazer qualquer coisa com ela. Era esse o acordo... Olhou para o relógio. Tinha um tempinho, ainda. Poderia fazer uma marinada, a ver se apanhava um saborzito, esperando não ficar muito envergonhado quando a servisse... À cautela, comprara um frango.




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A daninha e o versejador

Não era habitual baterem-lhe à porta àquela hora. Quem seria?
_ O vizinho das escritas dá-me licença...?
_ Olá. Então, como é que passa?
_ Mal. Não posso com dores...
_ Ora, ora, então...? Já foi ao médico?
_ Ao médico!? Não é preciso. Estou forte e rijo! Apesar da idade... ainda faço a minha perninha, t'á a perceber?... ( e piscava o olho).
_ Então, se não tem dores, de que é que se queixa...?
_ De amores!... É isso que me traz desgostoso... Ai, amigo das escritas, se aquela daninha quisesse!...
_ Daninha!?... Não se apaixonou por uma erva, pois não?... É que se é um problema desses não tem que falar comigo, mas com a minha prima, que é das coisas da cabeça, mas hoje não está em casa, está de banco. Quer lhe marque uma consulta...?
_ Qual consulta, homem!?... Eu quero é lá saber de consultas!... Quero é que me escreva uns versos para uma moça, um pouco mais nova do que eu, a ver se me aceita e se quer juntar-se... O vizinho das escritas não me arranja aí uns versos desses, daqueles de que as mulheres gostam, cheios de beijos...?
_ Bem... não é bem a minha especialidade... Eu sou mais de histórias, sabe, de versos não percebo muito... E as histórias são um bocadinho... bizarras, está a entender?...
_ Bizarras?!... Qu'é lá isso!?... Não, bizarras ou bizárrias (que raio de nome!) não... Então você, uma pessoa com estudos, não é capaz de me arranjar uns versos...? De amor, pois então?... Para que é que andou a estudar...?
_ E uma carta...? Quer que lhe escreva uma carta?
_ Quero! Mas sou eu que a dito!
_ Pode ser. Diga lá, então.
_ «Minha querida vizinha, porque quem tanto suspiro, só quero que sejas minha, e anda morar comigo. Não sejas daninha, agora, que senão eu vou-me embora, tenho 84, mas só por fora, e tu 63, mas não se nota. Dá-me um beijo repenicado, que é o melhor tempero, e comigo a teu lado, teu galante namorado. Vamos...».
_ Chega, chega, homem!... Ainda mata a mulher, caraças, com tanto entusiasmo!... Já reparou que a maioria do que ditou está em verso...?
_ Não me diga!?... Foi ela, foi ela, vizinho das escritas!... Aquela daninha!... Foi feitiço que me lançou, está visto!... Já viu, daninha que é!?...



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24 julho 2020

Voo picado

Pegou no texto e sopesou-o: estava no ponto. Dobrou as pontas e vincou-as com a unha. Deu-lhe um toque aerodinâmico. Semicerrou a janela, filtrando a entrada de ar. Levantou o braço pouco acima da cabeça e lançou o texto, em formato de avião de papel, e ficou a observá-lo, planando com os parágrafos à mostra. Aterrou no caixote do lixo sem um 'ai' nem um 'ui'. Não houve sobreviventes.

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23 julho 2020

Oui, peut-être

Não estavam com disposição para tais coisas... Noutros tempos, talvez... Mas agora... era tarde. Por isso, quando o relógio deu as doze badaladas, o rato pegou na sua companheira e foram aninhar-se num dos cantos da sala, virando o focinho ao pedaço de queijo... Francês, ainda por cima...

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Aforismo

Nos dias de calor refresque-se. Mas tenha cuidado: não se constipe!

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Disseram-me que vem aí muito dinheiro... Qual é o melhor lugar para o ver passar?

Na beira da estrada, tal como na Volta.

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Em provas

Escolhida a indumentária, abriu a gaveta das máscaras. Onde é que ficaria melhor: no pescoço, para condizer com as calças, ou no queixo, para estar de acordo com a sweat?... Difícil, isto de estar nos trinques... Mas a urgência impunha-se. Olhou para os ténis e decidiu-se... pela testa!


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19 julho 2020

Antes da ordem do dia...

A história era sempre a mesma. Mesmos protagonistas, mesmos enredos, mesmos tempo e espaço. Já cansava um bocado e as gorduras acumulavam-se. Iria pedir um orçamento e um lifting. Até que isso acontecesse, ia dar uma volta ao quarteirão. Para não cair na rotina da escolha habitual, iria seleccionar um quarteirão umas ruas mais abaixo, da mesma época, mas com acabamentos diferentes, pelo menos quando se olhava de esguelha, palavra plebeia, ou de perspectiva, léxico mais talhado para a arte ou a arquitectura. Mas Senupe estava reticente... Não era por mal, mas por causa de uma literatura recentemente entrada na casa, vagamente erótica, mas do século XVIII! E, neste campo, Senupe não abdicava, viesse quem viesse, incluindo o dono, que era eu. E compreendia-se: a literatura vagamente erótica do século XVIII tinha sido a tese de mestrado de Senupe, nos idos anos loucos dessa época dourada, ela própria, os anos 80. Estava visto: a volta ao quarteirão teria que ser sem Senupe...
Mal tinha iniciado o passeio, encontro uma das vizinhas, jovem ainda nos seus 84 anos, mas possuidora de uma persistente teima que se manifestava quando me encontrava, já nem valia a pena dissuadi-la, e que era a de me considerar seu conterrâneo, engenheiro e administrador, possuidor de talentos imensos, incluindo o de apreciador de figos ou de uvas, dependia dos dias. Por mais que lhe dissesse que não, que era mais das literaturas, de melões e de pêssegos, não havia maneira de a convencer... Não que daí resultasse um impasse, nada disso, mas apenas um hiato no que à sequência da conversa poderia acontecer, fosse uma deriva sobre as infiltrações na fachada, a idade do telhado e se podia dar uma mãozinha para acelerar o pagamento da pensão lá pelo conselho dos ministros, ou como é que estávamos em matéria de chuva, melancias, almanaques e curas para as dores nos ossos, mesmo que em tempo quente. Mas hoje a conversa fora mesmo para as uvas e os figos, quando me presenteou com uma tirada do melhor da sabedoria popular, obviamente que de experiência feita e mediante reflexão aprofundada, acerca da brandura, aplicada a uma saudada corrente de fresco logo pela manhã, aplicada e preciosa para o amadurecimento dos figos e das uvas. Que beleza!.. E que sorte!... Amanhã, já saberia como começar o conselho dos ministros...

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18 julho 2020

A página em branco está sempre a provocar-me... O que é que devo fazer?

Escreva-lhe em cima!

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Uma história de Senupe

Senupe abanava as orelhas para afastar o calor. Mas o sacana era persistente. Mesmo depois de lhe aplicar um golpe de cauda, o mafarrico ainda se ria. Senupe desesperava. Mas foi assim que o derrotou. Na sua história, o desespero era mais forte. E foi assim que o calor se esfumou.

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Encontrei-o cansado, arrependido, confuso. E agora?

Já experimentou mudar a ordem?

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Uma expressão como outra qualquer

_ Escolha a expressão da sua vida!
_ Oh diabo...
_ Então, não se lembra de nada...?
_ Já disse.
_ Já...?! Oh diabo!...
_ Foi o que eu disse... Também gosta dela, é?

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À boleia para a linha da frente

Nem será uma novidade, penso, mas todos os jornalistas ou os que o ambicionam ser desejam, pelo menos uma vez que seja, vir a ser repórteres de guerra. Apesar do epíteto de malucos, loucos, destravados, passados dos carretos, inconscientes,aventureiros, destemidos, heróis, que lhe venha a ser aposto, a verdade é que esse anseio está alojado no coração do repórter e, nalguns casos, difícil de desalojar. Também foi o meu caso. Lembro-me perfeitamente desse dia, uma sexta-feira, véspera de fim-de-semana grande, em que comuniquei ao meu pai e à minha mãe a minha intenção. Também estava calor. Mesmo assim, estava com arrepios. Depois do almoço, aproximei-me dos velhotes e disse-lhes que queria falar com eles, que tinha uma coisa importante a comunicar-lhes. A minha mãe disse um «Ai, Jesus, Maria Santíssima!...» e o meu pai limitou-se a franzir o sobrolho (um clássico em quem desempenha a função de pai), levantando os olhos da leitura do jornal, curiosamente uma reportagem sobre as ideias que motivam a juventude em tempos de crise existencial ou desgosto de amor na Lapónia profunda, lembro-me perfeitamente. Entretanto, a minha mãe começava a recitar a oração que costuma usar em tempo de trovoada, a de «Santa Bárbara bendita...», já não me recordo do resto, apenas do excerto em que se refere uma «cobra com 27 filhos a mamar...», vá-se lá a perceber porquê esta recordação específica, talvez pelo simbolismo ou pela conotação visual de ver uma cena desta natureza, digna de um plano de Arrabal, meu amigo e mestre, isto não desmerecendo outros, como os dos cowboys, das comédias, de guerra, dramas, e por aí fora, estaria aqui uma vida inteira e mais algumas a desfiar memórias, episódios, picarices e outras coisas... Adelante!
A conversa com os meus pais ficou-me gravada na memória, e ainda bem. Passo a reproduzi-la aqui, consciente do efeito que ela pode ter na mente de um jovem ou menos jovem futuro repórter, de guerra ou não, pois ela é de aplicação transversal. Funciona como uma espécie de cartilha, assim se queira saber ler ou interpretá-la, a escolha é tua, jovem repórter. Não se identifica quem disse o quê, primeira regra para um entendimento abalizado e fundamentado, deixando espaço para a criatividade, outra das regras, mas sempre cingidos aos factos!
_ Queria pedir uma coisa...
_ Fala com a mãe.
_ Ai, minha Nossa Senhora!...
_ Então, perdeste a língua...?
_ Eu, eu, eu ...
_ Pai Nosso...
_ Eu quero ser repórter de guerra!
_ ?...
_ ?...
_ E como é que queres fazer isso...?
_ Tenho que te fazer a mala... Ai, e a merenda...!? Porque é que só me avisaste agora, que está tudo fechado?!... Valha-me Deus. E agora...?
_ Então... escolho uma. É simples.
_ Atiras uma moeda ao ar, é...?
_ Não, que ideia!... Escolho uma em que se combata pela liberdade, contra a opressão, pela dignidade. Não deve ser difícil escolher...
_ Queres levar t-sirts ou pólos?...
_ T-shirts e jeans.
_ Quando é que estás a pensar ir?
_ Agora. Já! É urgente.
_ E como é que vais?
_ À boleia. Faz parte.
_ Queres levar uma omelete?
_ Pode ser. Fruta também.
_ Pensaste bem nisto, não pensaste...?
_ Claro!... Também, logo vejo: se não estiver a dar, regresso... E escrevo um livro!

(in Estava Lá, Mas por Acaso, pp.4)

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17 julho 2020

In vino veritas

O dilema plantou-se à entrada do prédio, empunhando um cartaz. Como era de esperar, as vizinhas e os vizinhos começaram a aparecer às janelas, à espera do que ia sair dali... Teria preferido que as coisas não tivessem que se resolver daquela maneira, mas era o que tinha de ser. Ainda lhe passou pela cabeça lançar uma mangueirada ao dilema, mas não deu sequência ao impulso, pois seria um desperdício de água, recurso sempre precioso, mais a mais agora, que fazia um calor que berrava!... Não, a coisa teria que ser resolvida com diplomacia. Começaria pela abordagem clássica, a do passar a mão pelo pêlo, sempre útil em situações semelhantes e muito vocacionada para protagonistas que costumam ter-se numa grande conta, como é o caso dos dilemas e outras espécies que gostam de lidar com oposições ou contrários e se reconhecem pelo símbolo 'ou', uma marca de prestígio, poderá concluir-se. Mas o pêlo deste parecia um pouco áspero... Teria que arranjar outra abordagem. Num passe de mágica, sua característica secundária, mas útil em situações desesperadas, começou por enumerar o conjunto de regalias, mordomias e outras coisas terminadas em 'ias' que o dilema poderia vir a usufruir se o deixasse em paz. Mas a coisa não estava também a correr bem, não porque o dilema não estivesse entusiasmado com as hipóteses e perspectivas que lhe iam desfilando pelos olhos, mas porque algumas das vizinhas e vizinhos começaram a entusiasmar-se com o que viam e desatavam, elas e eles, a também desfilarem dilemas à laia de cânticos à desgarrada, correndo-se cada vez mais o risco de uma situação descontrolada, não tardava a necessitar de intervenção das autoridades... Que fazer...? Só via uma saída: perante escrever ou cavar resignar-se-ia... indo para os copos!

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Não se pode saber

_ Como é que o encontrou?
_ Enrodilhado.
_ E estava à espera disso...?
_ A bem dizer... não, pois andava à procura de cogumelos.
_ Como?
_ Tenho um porco...
_ E está licenciado...?
_ Quem, o porco?
_ Não, você. Tem licença?
_ Para quê?
_ Ora, para quê?... Para poder andar na apanha dos cogumelos!
_ Não preciso.
_ Não precisa...?!
_ Não. O porco é que tem a licença. Mas não diga nada!...
_ Então porquê?
_ Está caducada.

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16 julho 2020

O rebate do unhante

«Cada um é para o que nasce», diz o povo. No caso deste unhante, o ditado conferia. Como se constatou uma ocasião, ao passar pela caixa de esmolas... Mas o que o povo não sabia, era isto: o unhante teria um rebate, devolvendo tudo e mais alguma coisa. Pela salvação das almas, dizia-se.

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Tarã!

Estava entre a espada e a parede. A situação parecia desesperada, mas não se resignou. Com habilidade, negociou uma saída e propôs a solução: seria em pladur, mas discreto.

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15 julho 2020

Contraditório em final de tarde

_ Diga-me já no que está a pensar!
_ Em nada.
_ Podemos dar isso por adquirido?...
_ Depende.
_ Depende...?!
_ Sim, depende. Quanto é que está a pensar gastar?
_ Gastar em quê?...
_ Com o adquirido. Ou julgava que era de borla?...

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Sem título (mas com golpe de asa)

Emboscado, camuflado, contido, ascético, não contou com o gás e descuidou-se. Cabisbaixo, recolhido, inconsolável, ferido, verteu águas e regenerou-se.

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Com rigor é outra coisa...

_ Quantas vezes é que disse que não?
_ 327.
_ Não foram 328...?
_ Não, 327. A 328 foi um nim.

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12 julho 2020

Posição de princípio

_ Vou deixar de publicar...
_ Mas tu não tens nada publicado!?...
_ É para que saibas que me mantenho coerente.

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Declarar guerra

Por norma pacífico, ficou intrigado quando lhe propuseram declarar guerra a alguma coisa. Ficou muito renitente, a princípio. Obstinado, mesmo. Tentaram diversas abordagens, umas mais sedutoras do que outras, mas a resposta era sempre a mesma: não! Mas do outro lado também não desistiam. Eram duas obstinações em confronto, de resultado incerto. Ter-se-ia que recorrer a um árbitro, estava visto. Mas tinha que ser um árbitro a sério, mesmo que já retirado. O problema era encontrá-lo, ainda que com candeia. E como as candeias escasseavam e cada vez havia menos gente para trabalhar com elas ou arranjá-las quando se estragavam, a coisa adivinhava-se difícil. Parecia estar-se num impasse. Até lá, não havendo declaração de guerra, estava-se num período de tréguas, embora fosse ilógico, pois ainda não havia guerra nenhuma. Talvez fosse mais acertado dizer que se estava numa situação de paz podre. Mas ainda era cedo.
Depois de muito se porfiar, o árbitro lá foi encontrado. Não parecia ser grande espingarda, mas era o que se arranjara. Que também estava renitente em vir, note-se, mais a mais porque estava com uma grande mão de sueca, com ás de trunfos, manilha, e duque, a jeito para ganhar duas ou três vazas, duas seguras e uma logo se veria. Por via disso, tinha sido difícil convencê-lo, só se conseguindo com uma promessa de moeda mágica para a raspadinha, mas tinha que assinar já, antes que o mercado de transferência fechasse. Aceitou, está visto, senão não tínhamos mais nada para dar corda à história. Adiante, pois, e saltemos para o momento da reunião e das conversações a propósito de declarar guerra a alguma coisa, pequena ou insignificante que fosse, apenas para marcar uma posição e concretizar um objectivo de ano novo, aniversário ou porque sim.
Analisadas as propostas em cima da mesa, o impasse mantinha-se. Não havia maneira de se chegar a um consenso. Umas vezes por excesso, outras por falta de ambição, o certo é que não se encontrava aquele minimis que era necessário: o qualquer coisa a que se declararia guerra. Fácil, aparentemente, torna-se difícil pela minudência ou irrelevância das coisas de que se precisam. Parecia filosofia em saldos, tinha consciência disso, mas estava tranquilo com isso, pois já tinha aberto a época. Mas estava a afastar-se do que interessava. Acabou por aceitar a proposta de uma marca de botas de contrafacção, boas para caminhar, fazer escalada, dançar o tango, e aquecer os pés no Verão, só, pois o Inverno não estava incluído. Aceitava o patrocínio e queria começar a experimentar. Rejeitara a proposta dos ginásios. Ponto.

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Altissonantes

Desde pequeno que se impressionava com elas. Pareciam-lhe vir de outro lugar, mais fino e, sobretudo, mais audível. Quando perguntava onde ficava, assobiavam para o ar. Isso levou-o a concluir que era esse o caminho para lá chegar. Mais tarde, já tenor, recordou esta história.

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Lombo, só.

_ Arrotou umas postas de pescada.
_ Do Cabo ou do Chile...?
_ Do mar da Imbecilidade!

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11 julho 2020

(Des)encontro

O destino marcou a hora. Por correio registado e sms. Mas a destinatária não compareceu.

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Reciclar, reutilizar e pagar uns trocos (RRPUT)

Mais de metade ia para o lixo. E isso era nos dias bons. Também não pagava grande coisa, era o que se constava. Fosse pelo que fosse, estranhou em receber uma convocatória para a Comissão de Reciclagem e Reutilização, às 10h, e outra para a do Emprego e Remuneração, às 11. A boa notícia é que era no mesmo edifício e na mesma data. E ainda diziam que os serviços não funcionavam bem... Deslocar-se-ia a pé. Chegou com tempo e tirou uma senha. Chegada a vez, indicaram-lhe o balcão. Sentou-se e ficou à espera do que lhe iam dizer.
_ Sabe porque é que está aqui, não sabe...?
_ Mais ou menos... Tem a ver com o lixo, certo?
_ Pode dizer-se que sim, no geral, mas em particular com a rejeição das palavras. Nunca ouviu falar de reciclagem ou de reutilização?
_ Sim, mas para os resíduos... Para as palavras não.
_ Mas também se aplica, fica a saber... Qual é o problema de reciclar ou reutilizar as palavras, não me diz...?
_ A maioria delas não presta. Não servem!... Pelo menos para aquilo que quero...
_ E que é o quê, pode saber-se?
_ Ser um escriba reconhecido por elas. Pelo menos na minha rua!
_ Pode sempre dar-lhes outro uso. Sabe disso, suponho...?
_ Sim... talvez. Mas para quê?
_ Para baixarmos a taxa de palavras rejeitadas! É um bom começo, ou não?
_ Mesmo as rascas...?
_ Claro! Nem tudo tem que ser transformado em romances, novelas, poesia, discurso, proclamações de encher o olho e a mente... Há mais usos. Não quer pensar nisso...?
_ Tipo ditos, frasesinhas, quadrecas, histórias para pequeninos...?
_ Nem mais! Vá, vá-se lá embora e pense nesta conversa.
Agradeceu e saiu, dirigindo-se ao balcão do Emprego e da Remuneração. Não esperou muito.
_ É acusado de pagar pouco às suas palavras... Quer dizer alguma coisa...?
_ Pago-lhes o que acho que é justo. Para o que valem, é suficiente...
_ E acha isso bem...?
_ Acho.
_ Para o que ganha com elas, bem podia pagar um pouco mais...
_ Ganhar com elas!?... Não brinque comigo!... A maioria do trabalho sou eu que o faço!... Ora, essa!...
_ Tem que lhes pagar mais. É de lei.
_ Ai é?!... Tome lá a caneta e o papel e ature-as você!... E pague-lhes mais, não se esqueça...




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09 julho 2020

História de bê-á-bá

_ E a sua história, qual é...?
_ Não é como a dos outros...
_ Claro, isso nem chega a ser novidade... O que é que a distingue?
_ É recente. Muito recente.
_ Acredito que sim, mas continua a ser banal... Mais alguma coisa?
_ Expilo letras.
_ É compositor, está visto... E então?
_ Não está a entender. Não tem a ver com música... Expilo letras... do abecedário. Literalmente!
_ E quando é que começou a notar isso?
_ Hoje, depois do café. Perguntei quanto era e as letras da frase foram incrustar-se na caixa registadora, uma a seguir à outra, alinhadinhas, como se fosse um leque. Um espanto, só lhe digo!
_ Está a brincar comigo, não está...? Se isso fosse assim, porque é que não saiu nenhuma agora, que estamos a falar?
_ Porque estou a usar a máscara.


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Escolha de espécies

Decidira abrir uns parágrafos para plantar malmequeres. Iria usar de duas qualidades: a bem e a mal. Mas tinha uma dúvida, desde os tempos dos namoricos: por qual começar primeiro? Lançou uma moeda ao ar e saiu a qualidade mal. Por via das dúvidas, lançou a moeda outra vez. Mesmo resultado. Achou que era melhor rosas.


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05 julho 2020

Vida de pastor

Estava na hora do recolher e o assobio soou pelos montes. Lentamente, os textos começaram a regressar: à frente, os robustos ou aparentados, atrás as historietas e os filhos, os mini-contos, um ou outro nano, ainda a mamar nas tetas da mãe. Chegados os cães, fechei a cerca. E ateia-a com um arame.

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Pode ter-se à lareira

_ E quais são as suas credenciais?
_ Sou plagiador.
_ Tem carteira?
_ Não uso. Guardo os trocos no bolso.
_ Não é essa, é a profissional. Tem?
_ Está aqui.
_ Está um bocadinho atamancada... Não arranja melhor...?
_ Mostre lá a sua... Ah, esta sim: um plagiador de 1.ª classe!... É outra coisa, sim senhor. É outra coisa...

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Enxertado em corno de cabra (até ver a luz)

Tenho todo o respeito do mundo por quem assume ou está a pensar assumir uma vida de asceta. Acredito que não seja fácil e não é por falta de tentativas do Belzebu, que habitualmente se empenha nestas coisas e faz apelo a um conjunto de expedientes que não estão ao alcance do comum dos mortais. Mas mesmo que não cheguemos ao patamar belzebuiano (acabei de criar um neologismo, não me posso esquecer de o registar e apochar mais uns cobres para arredondar as contas ao final do mês…), muitas vezes são os simples mortais que se aliam para infernizar a vida e a paz destas santas almas (que outro nome é que se lhes dá, não me dizem, ó almas do Diabo?…). Como vêem os leitores, vivo numa permanente tensão entre o sagrado e o profano, entre o visível e o invisível, entre o claro e o obscuro. Adelante!
Já há algum tempo que andava intrigado com uma dica, de fonte fidedigna, acerca de um eremita que viveria algures no meio da mata, afastado do mundo conhecido e fiel a um voto de silêncio. Como não falava, desconhecia-se o motivo do permanecer calado, mesmo que provocado, insultado e ridicularizado. Que cobardia, meus leitores!... Era por cenas destas que cada vez mais descria do mundo e dos homens… Raça danada, esta!
As pistas não eram muitas. Para encontrar o eremita tinha de dar ao pedal, estava visto. E depressa, antes que hibernasse! Já tinha uma ideia de como poderia aproximar-me dele. E quem me ia ajudar era o meu amigo australiano, pisteiro emérito. Apesar de reformado, ainda era capaz de detectar um rasto só de olhar para o chão e cheirar o ar. Nunca falhava. Amanhã dávamos com o homem.
Como era de prever, a localização do eremita nem chegou para o meu amigo se cansar. Aproximámo-nos, eu e o pisteiro, e levantámos a mão, em sinal de paz. O homem olhou para nós e era como se não nos tivesse visto. Ia ser duro, estava visto. Mas eu estava preparado e tinha uma arma secreta. Veria como o eremita reagiria a ela.
_ Consta-se que o meu amigo, antes de se ter tornado eremita e feito um voto de silêncio, era enxertado em corno de cabra! Confirma isto…?
O eremita parecia que tinha sido picado por alguma coisa desagradável, mas conseguiu conter-se. A custo, mas conteve-se. Mesmo assim, largou um audível «Maldizentes! Impenitentes! Cabrões!». E falou dez horas seguidas…

(in Estava Lá, Mas por Acaso, pp.1221)

 

 

 

 

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