31 maio 2020

Dedal de escrita

Abriu a porta do armário e escolheu um fato e dois parágrafos. Chegou a ter dúvidas sobre as exclamações, mas manteve-se fiel à primeira escolha. O fato assentava bem, mas os parágrafos nem por isso... Ainda pensou em pedir ajuda ao alfaiate, mas estava fechado. Teria que ir assim, com um parágrafo mais comprido do que o outro. Quem não fosse do ofício, não notava. Mas as modistas, que tinham o olho treinado e dominavam o cerzir como ninguém, é que eram o problema... Tentaria conquistá-las com um monograma feito de vírgulas e mostrar que a diferença de tamanhos dos parágrafos era a nova moda. À cautela, deveria preparar-se para uma sessão de corte e costura...

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Processo criativo, modo de usar

Amarfanhou a folha e atirou-a para o caixote. Repetia-se. Estagnara como escriba, mas melhorara como basquetebolista.
A recolha fez-se à hora do costume. Espreitou para o caixote e meteu a mão. Retirou-a com a folha e espalmou-a com a outra. Era a última.
Mesa e cadeiras compostas, começa a ouvir-se uma voz feminina, que apresenta. Continua com a do editor e termina com a dos autores.

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Grosseria

A natureza morta estava na sala há gerações. Viu e ouviu muito, começando a ficar com verdete. Transferiram-na para a estufa.

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30 maio 2020

Qual é a melhor maneira de rematar?

No fim.

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Vida de mini-conto

De repente, viu-se emparedado entre o acrílico que separava o romance e o que separava a novela (mais delgado, é certo, mas ainda assim ocupando espaço). Tentou mexer um pouco as suas letras e ganhar algum conforto, sufocado que se sentia. Antes que fosse tarde, decidiu enviar um alerta a um conhecido bibliófago, que ajudaria pro bono

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Saudação

Tinha uma mania: dar bons-dias, boas-tardes, boas-noites com quem se cruzasse. Como nesse dia.
Deu um, dois, três bons-dias. Ninguém respondeu. Ficou furioso. Não por si, mas pelo dia, que estava mesmo bonito. Que desconsideração… E logo três vezes! Iam ver como era.
Tentou uma quarta vez. Dirigiu-se à pessoa com que então se cruzou e disse «Bons-dias!». Esta também não responde aos bons-dias, mas em contrapartida entrega logo a carteira e pede que não lhe faça mal e se podia ficar com os documentos. Que levasse o dinheiro e os cartões, mas a identificação e o passe não...

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Patranha

Considerava-se um podão. Era peta. A quem não acreditava, podava-a.

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Em directo

_ Estamos em directo. Por favor, algumas palavras…
_ Quantas quer…?
_ Desculpe, estamos em directo… O que é que nos diz?
_ E como é que quer…?
_ ?!...
_ Demora muito...? Não tenho a sua vida...

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Com estilo

Senupe levantou a pata e deixou a sua marca. Desta vez, em estilo monograma.

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24 maio 2020

Par de parêntesis

Como em tudo na vida, há projectos mais arriscados do que outros. No jornalismo, minha paixão e opção profissional, nem sempre foi fácil fazer vingar os meus, umas vezes por dificuldades inultrapassáveis, outras por opção editorial. Nada de novo, no entanto. Feitas as contas, a maioria fez o seu caminho. Às vezes tem que haver uma espécie de instinto para avaliar se um tema, uma reportagem, uma entrevista, um episódio, um facto insólito, possuem aquele gás necessário para motivar a curiosidade dos leitores, o apoio dos patrocinadores e a validação dos editores ou dos proprietários. E temos sorte (eu, pelo menos, tenho tido, sobretudo a partir do momento em que consegui obter um exclusivo com o técnico responsável pelo sistema de ventilação que fez levantar as saias da Marylin Monroe, no filme de Billy Wilder, O Pecado Mora ao Lado - cena mais icónica do que esta não há, direi eu, convicto), há que reconhecê-lo, muitas vezes por coincidências extraordinárias e impensáveis, por exemplo usar um palito para palitar os dentes, muito em voga naquele tempo na região por onde andava, e prática de limpeza dental característica de um certo tipo de profissionais,  como o meu editor dessa altura, a quem tinha acabado de propor um tema ousado e provocador (reconheço) de homenagear os gémeos Parêntesis, membros de pleno direito da Confraria dos Sinais Ortográficos, mas muitas vezes relegados para um papel secundário (quando não desdenhoso) na desenvoltura da frase ou do discurso, podendo ser vistos como coisas supérfluas ou desnecessárias, atravancando um caminho que se deseja linear, directo, objectivo, fugindo aos esclarecimentos e comentários intrusivos de terceiros ou terceiras, fontes ou não, autoridades muito ou pouco, às vezes uns devaneios (porque não?) lírico-poéticos, histórico-filosóficos, humorísticos, onomatopeicos, etc., etc. e tal... que em vez de emperrar a frase podem encaminhá-la e conduzi-la a outras direcções, responsáveis pelas célebres epifanias das boas ou nem por isso (o leitor o dirá quando se vir confrontado com isso)... E basicamente foi isto que argumentei para fazer vingar a minha proposta, enquanto o editor trincava o palito com força e abanava a cabeça, dizendo «Tu vais ser a desgraça do jornal! Tu vais ser a desgraça do jornal! Mas que raio de ideia!... Estás maluco, pá! Só pode!». A coisa parecia não correr bem... Já tendo apalavrado a entrevista com os gémeos, que me esperavam numa esplanada e a quem tinha dito para irem bebendo uns finos enquanto ficavam à minha espera, não sabia muito bem como ia descalçar esta bota... Achei que o melhor era fazer a coisa à traição (desculpem, mas tinha que ser) e dizer que estava bem, que ia pensar no assunto... Mais tarde lhe diria (já sabia qual o desfecho: a neura iria passar-lhe e sabia que ele se recordaria das vezes em que eu tinha ganho o equivalente caseiro do Prémio Pulitzer: uma pratada de cozido no Abílio das Tripas, com vinho à discrição, sobremesa caseira do dia, terminada com um cálice de bagaço da garrafa do patrão e um café)... Até lá, o trabalho urgia. Mas uma dúvida existencial (pois o que havia de ser...?) atormentava-me: afinal, que gémeos Parêntesis é que iria entrevistar, os Curvos ou os Rectos?...


(in Estava Lá, Mas por Acaso, pp.222)

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23 maio 2020

Dilema em passant

_ É o que lhe digo: há malucos para tudo!
_ Não me diga?!
_ T'ou-lhe a dizer. P'ra tudo!
_ Não haverá aí algum exagero...?
_ Qual exagero, qual quê!... Olhe p´rá ali.
_ Para onde?
_ Ali adiante, antes de chegar às casas.
_ Quais...? Aquelas antes do oásis?
_ Oásis...!? Qual oásis?...
_ Aquele ali: não vê as palmeiras, a água, as odaliscas?!...
_ Não... desculpe. Não vejo nada. Só os camelos...
_ Os camelos?!... O amigo não está maluco, não...?
_ Eu não, julgo... Não será o amigo que está...?

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Estou a beber um leite de coco e queria dizer isto: o livro que li é bom, mas não é sublime! Que é que acham?

Estamos a beber uma cerveja e não achamos nada.


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Talvez com ajuda, não...?

«E como é que vai enfiar a coisa?...». A pergunta não lhe saía da cabeça. Era uma pergunta de um milhão de dólares, daquelas feitas para dar voltas à cabeça. E não apenas pelos números. Fosse como fosse, era uma pergunta para se lhe dar resposta. Era ou não era engenheiro? Espreitou e analisou por todos os ângulos, incluindo o morto. Nada! Internet, Google...? Nem por sombras! Alguém sugerira um profissional (que vergonha!), era o melhor. Acabou por se render, desiludido e cabisbaixo. Mas não ia desistir, isso era certo. Até lá, continuaria a passear o camelo...


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