Regressara às origens. Agora queria descansar, ler, ouvir música, plantar batatas e reflectir. Tinha-se acabado o corrupio e as tácticas, para as quais já não tinha paciência. O mundo que abandonara parecia estar longe, muito longe. No entanto...
Não era habitual baterem-lhe à porta, mas era o que estava a acontecer. Estranhava que não usassem a campainha, gesto que constituía um hábito no mundo de onde se afastara, mas que batessem à porta como se a quisessem derrubar. A não ser...
Abriu a porta e não ficou surpreendido. De chapéu na cabeça, sorrindo, uma cara conhecida, mas envelhecida, abriu os braços e solicitou um abraço. Mais atrás, igualmente de chapéu, mais duas pessoas, uma presidente da junta e outra dona de um comércio, solicitando também os seus abraços, que foram dados, quer à primeira pessoa, quer às outras duas, as três convidadas a entrar e a beber qualquer coisa, que recusaram, pois estavam com pressa.
Vinham fazer-lhe um convite, disseram-lhe, em nome da terra e do seu clube representativo, que se encontrava mal, à beira da descida... Se ele não se importasse de lhe «dar uma mãozinha», agora, nesta hora difícil, dados a sua experiência e conhecimento, e porque era verdade que «o bom filho à casa torna»... Contavam com isso e tinham a certeza que iria aceitar, para eles era mais do que certo.
Ainda pensou em recusar, garantindo-lhes que estava reformado e desactualizado, sem vontade para retomar rotinas e hábitos de um mundo que deixara para trás e queria esquecer, reforçando a tentativa de recusa com um princípio que eles conheciam, embora fizessem por não se lembrar, mas que ele lhes recordou: «santos da casa não fazem milagres». Debalde...
Passaram dois meses. A equipa da terra, sem se saber muito bem como, mas a que os entendidos atribuíam o dedo do mestre e velha raposa das tácticas, recuperara do atraso e estava agora numa posição salvaguardada da descida, o que agradava a todos e era motivo de festa...
Meses depois, quando lhe perguntaram como é que conseguira, o velho treinador sorriu, pousou o livro e baixou a música, dispondo-se a revelar como.
«Deu algum trabalho», começou, «até porque não havia muito que enganar. Apesar de bons rapazes, a qualidade e o jeito para a bola não eram muitos. Compreendia-se, pois as suas vidas eram outras, e aí sim, tinham que mostrar qualidade para garantirem o seu sustento ou, caso o não tivessem, passariam mal... A bola era um divertimento, um esforço e um exemplo de amor pela terra, uns com jeito, outros nem por isso, mas todos eles conscientes de que faziam o melhor que sabiam e podiam... Havia que ter noção desta realidade e mandar para trás das costas os aspectos técnico-tácticos mais elaborados e ensinar-lhes o básico, de forma a perceberem minimamente o que fazer, quer a atacar, quer a defender. Lembrei-me de lhes ensinar uma lengalenga, pois acreditava que este expediente iria ser mais eficaz do que outros. E a lengalenga que lhes ensinei, até a saberem de cor, era esta: 4-3-3 p'ró ataque da primeira vez e 4-4-2 p'rá defesa todos depois... Milagrosamente, funcionou. E ainda tiraram um prémio nuns jogos... Florais, se não me falha a memória».
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