Toda a vida sonhara com isso. Em jovem, os livros e a literatura sobre a matéria tinham-no entusiasmado, inflamando-lhe a alma e a imaginação com a perspectiva de carreira e com o corrupio de peripécias.
A passagem pela tropa tinha-lhe cimentado a inclinação e a propensão, levando-o a embrenhar-se num mundo opaco, mas excitante.
Quando se colocou a oportunidade, nem olhou para trás e aceitou a proposta: tornar-se um agente secreto!
A sua carreira foi-se fazendo e decorria sem grandes sobressaltos, se tirarmos os directamente relacionados com o «ofício», até um dia em que, encontrando um antigo camarada da tropa, este lhe atira, de chofre:
- Então, pá, estavas na «secreta» e não dizias nada?!...
Treinado no rigor e na arte de passar despercebido, o agente secreto não se perturbou e perguntou ao seu amigo, que desempenhava as funções de porteiro num dos grandes clubes de futebol do país:
- Estás maluco, pá?! Na «secreta»?! Andas a beber ou quê?!...
E a conversa ficou por ali, feitas as despedidas e apalavrado um encontro entre as respectivas famílias. «Para recordar outros tempos», disse o amigo porteiro.
E o nosso agente secreto foi-se para o serviço, ruminando sobre o encontro e a pergunta do seu antigo colega e velho amigo. Estava preocupado, contudo, com a possibilidade de se ter verificado uma quebra de segurança. «Não era possível», procurava tranquilizar-se. Mas em vão.
Chegado ao seu gabinete, procurou fazer uma retrospecção acerca de pormenores e/ou ocorrências pouco habituais, que se tivessem verificado há relativamente pouco tempo. E aí, ao fazer esta retrospecção, sobressaltou-se: «Queres ver?!», exclamou.
De imediato, pegou no telefone e perguntou ao seu interlocutor:
- Olha lá, «aquilo» (dados pessoais) que me pediste há dias era para quê?
- Então não sabes?! - perguntou-lhe o outro - Para o livre-trânsito!
- Pois, o livre-trânsito... Olha lá, mas isso é para quê?
- Ora, para quê... Para ires ao cinema, ao futebol, para os transportes... Para isso tudo, pá. Afinal, és ou não és um «agente secreto»?!...
- Sim, isso eu percebo. Mas será que alguém, tirando a gente do «escritório», está a par do que eu faço?
- Nem penses uma coisa dessas! Não te esqueças que seguimos todas as cartilhas recomendadas. E só as boas...
- Pois... Penso que tens razão. Não deve ser nada.
Os meses passaram-se e tudo parecia estar na paz do Senhor. O nosso agente secreto continuava a fazer a sua «vida», secreta, é claro, e usava, com alguma parcimónia, o seu livre-trânsito: um filme, habitualmente, uma peça de teatro e um joguito de futebol, mais raramente. Fosse como fosse, não deixava de causar estranheza que, fosse qual fosse o lugar ou o espectáculo, qualquer porteiro não disfarçasse um olhar cúmplice e um piscar de olhos matreiro, sempre que ele apresentava o cartão. E passaram-se meses nisto. Um dia, ao final da tarde, recebeu uma correspondência oficial, proveniente do organismo que supervisionava os espectáculos naquele país, que dizia, basicamente o seguinte: «Senhor Agente Secreto Fulano de Tal..., Para os devidos efeitos, fica V. Ex.ª notificado de que deverá remeter a este organismo, para efeitos de renovação do seu livre-trânsito, comprovativo do nome, posto e remuneração usufruídos, destinados à emissão de documento próprio, com a referência tal..., ».
E fez-se luz, finalmente, na cabeça do pobre agente secreto...
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