Cerzidura

O trabalho parecia fácil. Tinha delineado o percurso mas surpreendida-se com a performance da agulha, aparentemente contrariada em deixar-se conduzir por ele. Não podia deixar-se levar pelo pensamento absurdo de que a agulha parecia ter vontade própria... Tentaria mais uma vez. O resultado ainda tinha sido pior do que o inicial, mostrando desta vez uma linha quebrada onde era suposto estar uma linha a direito. Talvez a agulha não estivesse em condições, admitia... «Ou talvez pôr os óculos», atrevera-se a costureira...

Não há estrelas no céu. Passa-se alguma coisa?

Se calhar é de dia. Confirme, por favor.

Currículo

Começara a alinhavar um currículo e apercebeu-se de que alguma coisa não estava bem, que não batia a bota com a perdigota. Era estranho, reconhecia, pois se havia coisa de que se gabava era de ser um cosedor e sapateiro de mão cheia. Seria da linha? Da sovela? Do modelo? Do artista? Não sabia. Quando passou à prova, queixaram-se: que era apertado; que era retrógado; que não ficava bem; que não era macio. A todas as objecções respondia com um resmungo. Afinal, queriam o currículo de pele ou não?

Sem tema

_ Não temos tema. E agora?...
_ Não sei... O tema tem que ser grande?
_ Não necessariamente... Pode ser pequeno. Mas tem que ter substância!
_ Ó diabo!... É mesmo necessário ter substância?
_ É. Disso não há dúvidas... Desculpa lá. Tem que ser.
_ Não se pode fazer de conta?
_ É melhor não.
_ Então, não temos tema...
_ Pois é...

Desapoio

A base de apoio rebelara-se. Tentou convencê-la às boas, mas não teve sorte. Mesmo assim, recusava as medidas radicais. Surpreendera-se pelas reivindicações. Algumas eram estapafúrdias, sem pés nem cabeça, mais daquela do que desta, por razões óbvias. Pausas para cigarros? Sapatos engraxados, dia sim dia não? Estava tudo maluco ou quê!? Iria fazer mais uma tentativa, só mais uma. Se não conseguisse, virava tudo! O que mais o intrigava era como é isto tinha acontecido. Teria sido a televisão? Os jornais? As redes sociais? Não sabia... Agora havia outra, desta vez o tratamento de unhas. Dos pés, pois claro! Não sabia que fazer. Talvez umas palmilhas, não?

Mudar

_ Temos que mudar isto tudo. Tudo!
_ Tudo? As instituições também...?
_ Tudo! Tudo, já disse.
_ Tá bem. E começamos por onde?
_ Por esta cadeira. Tire-a daqui.
_ E ponho aonde?
_ Sei lá!... Olhe, ponha-a aí. Depois logo se vê.

Nuas

Sempre lutara com as mãos nuas. Crescera assim. E vencia. Quando o pudor se intrometeu, tapou-as. Foi derrotada.

A página em branco pode ser pintada?

Pode. De preferência a preto ou a azul.

Duas notas

(1) Subsistem dúvidas sobre o que é que o autor pretendia com esta frase (2) e qual o verdadeiro alcance atribuído à utilização simultânea de uma vírgula, uma interrogação e um ponto de exclamação. Para alguns comentadores trata-se de uma gralha; de um atentado às regras, para outros; de um cuco, para os especialistas em passarada.

(2) Aconselha-se o leitor a não procurar a frase, pois ela ainda não existe (nem virtualmente). Se algum dia vier a existir, falamos então.

Apita o cuco

A open mind acordou e espreguiçou-se. Reviu o que tinha de fazer e não se impediu um bocejo. Sentiu-se melhor. Só tinha que abrir as portas por volta das 08h30. Até lá, podia fazer muita coisa. Por exemplo, dar corda à mind e ver até onde podia ir. Mas sem forçar. Depois, podia saltar à corda ou dar o salto. Os cereais ficariam para mais tarde. Pensaria na mistura na altura apropriada. Piscou o olho ao telemóvel e fez-lhe um aceno, como que a dizer «é só um momento». Perguntou ao cuco da parede que horas eram e dedicou-se aos alongamentos. Quando o cuco apitou três vezes, pegou no violino e foi-se com ele para o telhado. Ainda lá está.

Paterson

Paterson é nome de filme e de protagonista. Visto na televisão, mas com pena de não ter sido no cinema, é um filme sobre a poesia do quotidiano (e não, não se trata de um equívoco). Um hino a quem faz do seu quotidiano uma oportunidade para o transfigurar e se transfigurar. Um equívoco? Talvez não.

Ir ali e voltar

Saíra para comprar tabaco e regressou passados quinze dias. Entretanto, deixara de fumar.

Inédito

O inédito fora descoberto debaixo da cama. Talvez pela falta de sol ou pela acumulação de pó, apresentava-se um pouco amarelecido. Havia quem desconfiasse. Outros, porém, realçavam esse facto como indicador conclusivo. Chamada a responsável pela limpeza, confirmou o que se previa: não era nada com eles.

Precisão

_ E como é que faz a coisa?
_ Mais ou menos a olho.
_ A olho...? Mas é um trabalho de precisão!
_ E então...? Para que é serve «o mais ou o menos»?

Intercomunicação

_ E Vossa Excelência, o que é que pensa disso?
_ Não penso nada. Deixe-me em paz.