19 setembro 2020

À pala da semântica

Foi-se a ele e partiu-lhe o focinho. Dito assim, sem mais, a acusação não deixava dúvidas. Mas as coisas não são como parecem, às vezes. Havia que explorar os pormenores e tentar conhecer o contexto... Até então, davam-se bem. O que teria acontecido...? Uma desavença, pequena ou grande, não interessa. Para o que conta, os factos eram a agressão e a partidela do focinho. Haveria atenuantes...? Talvez... talvez... e aqui planta-se uma dúvida, uma suspeição de que os factos, as coisas, o que aconteceu pode não ter sido bem assim, que há nuances, partes ou pormenores da história que se desconhecem ou se conhecem imperfeitamente... Nada que nos surpreenda, note-se, mas que é conveniente ter sempre presente, à laia de um alerta. E o alerta tinha-se manifestado, o malandro!, da vez em que a pata do cavalo, vá-se lá a saber porquê?..., se esticou e fez uma rasante, uma tangente às fuças do parente, situado na prateleira de cima. Que se assustou e alertou para isso, pedindo atenção e contenção no esticar das patas. Que houvesse cuidado, da próxima, senão... Mas o senão não fora suficiente, constatava-se agora, que o mal estava feito. E já irremediável... Concluíram mais tarde os peritos no relatório, onde se afirmava, preto no branco: «a patada foi desferida, seca, mas precisa, no focinho em barro do cavalo comprado na feira, pelo cavalo de porcelana comprado em antiquário de renome, suspeita-se que por despeito, estilhaçando-o em pedaços».

Etiquetas: