27 setembro 2020

Matinal rebate

A batidela na porta soou de fininho, como se estivesse muito longe. Mesmo assim, suficientemente audível para um ouvido apurado, daqueles em que a técnica se refinou através do colocar a mão por detrás da orelha, em forma de campânula artesanal. Como descrição não era nada mal e dava uma percepção visual a quem lê, preocupação de quem escreve, embora muitas vezes esquecida. Mas com a mania do embelezamento e de deixar correr os dedos pelo teclado, à laia de pianista, corria o risco de deixar pendurado quem batera à porta, mais minuto, mais hora, e isso não estava certo. Iria ver quem era e, se lhe agradasse, abriria a porta.

Abriu-a e a custo conteve um «Oh!», pois não estava preparado para quem viu, mais a mais a hora tão matinal - o Rebate!, esse mesmo, que lhe aparecia com má cara e envergando um sobretudo, daqueles de surrobeco, mas impressionante! E que entrou logo a matar, perguntando-lhe se não tinha vergonha!...

Enquanto procurava a vergonha, que o Rebate não gostava de esperar, perguntei-lhe se já tinha tomado o pequeno-almoço e se queria ficar para almoçar, pois ia fazer pataniscas e sabia que ele se perdia por elas... Mas ele, moita!, não dizia nada e perguntou se lhe arranjava um copo de água, pois precisava de tomar um comprimido para a tensão que eu, grande ordinário!, me comprazia em ser o principal responsável pela subida, sabia-o ele bem, e voltava a perguntar-me se eu não tinha vergonha pelo que lhe fazia e os embaraços que frequentemente lhe causava, sempre com a mania das piadas e das alusões, sempre a descambar para os ínvios caminhos da indefinição e do duplo sentido, das palavras e das cenas cinematográficas, pois também já lhe tinha chegado aos ouvidos mais esse novo delírio, essa fantasia louca, como eram sempre as que acalentava, com mais ou menos picante, azeite, vinagre ou qualquer especiaria de trazer por casa, uma vergonha!... Mas ia-se acalmando, aos poucos, e porque o comprimido começava a fazer efeito, também, preparando-se para se aninhar no sofá e passar pelas brasas. Quando acordasse, já nem se lembraria do que dissera...


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