27 agosto 2020

À procura da paisagem interior - amostra 3

O tom da mensagem parecia inócuo, mas era só aparência. Conhecendo-a como a conhecia, a mensagem «Preciso de ti» era uma espécie de chamamento para apresentação ao serviço. O que não vinha nada a calhar, note-se, pois tinha pensado num dia de completo ripanço, daqueles «à séria», como os magnatas ou os especialistas do ripanço. Enfim, lá teria que ir...

Como já conhecia o caminho, não foi difícil pôr-me lá. Desta vez não levava nada, mas estava a contar que a Paisagem Interior tivesse preparado qualquer coisa. Quase de certeza que sim, que ela não deixava essas coisas por mãos alheias... Honra lhe seja feita!

Não a visitava há algum tempo, é certo, mas estava tranquilo e descansado, pois se tivesse havido qualquer problema ela tinha-me avisado. «Pas de nouvelles, bonnes nouveles», costumava-me ela dizer, naquela sua pronúncia de francês arrastado, digna de uma diva de tempos idos, mas ainda a causar alguma impressão nos utilizadores de óculos graduados, sobretudo estes, mais vocacionados para as referências francesas ou com elas relacionadas, incluindo a Torre Eiffel e o Festival de Cannes. Não que eu não a tivesse tentado desviar várias vezes (ainda não tinha perdido essa fé...) para as ondas e o look anglo-saxónico, mas sem êxito, até ao momento, pois a cada tentativa dessas ela vinha-me com a lengalenga que eu já ouvira e conhecia de ginjeira do: «Ha, toujours Paris... l'amour, le glamour, a Piaff!, etc., etc, etc....». Para mim uma pepineira, para ela um monumento de cultura, cosmopolitismo e saber viver. Nada a remediar por esta parte e por enquanto...

À medida que me aproximava da casa, uma pequena vivenda, com um jardim em estilo mediterrânico, ia-me apercebendo do pormenor das portas e janelas se encontrarem semi-abertas, com um ângulo de abertura em simetria entre elas, aparentemente de forma não casual. Era estranho, pois sempre me lembrara da tendência dela para o escancaramento completo, «Para arejar sem medos», dizia, e não nesta versão «semi». Teria que lhe perguntar.

Encontrava-se à porta, sorridente, de boina e de bata cheia de tinta, e deu-me três chochos, parece-me que uma moda francesa (lá está!) e convidou-me a entrar. Foi buscar uma garrafa de vinho (escusado será dizer de que nacionalidade), verteu-me uma porção para um copo de pé alto e revelou: «Dá os parabéns à tua amiga, que agora é pintora e vai fazer uma exposição. Não te importas de me encaixotar os quadros...? Depois convido-te». E pôs- se a andar, não sem antes dar um jeito num dos alinhamentos de uma das janelas, que se tinha deslocado do local exacto onde deveria estar. Parece que era algo que tinha a ver com feng shui, ou lá o que era, sob pena de isso poder escangalhar o karma... Mas isso ficaria para outras núpcias...


 



Etiquetas: