02 maio 2021

Seguindo o rasto...

Contrariamente ao que se possa pensar, hoje era daqueles dias em que a falta de assunto olha para nós e pisca o olho, como quem diz: «Então, não dizes nada...?».

Um bocejo, um dedo do meio esticado, quando não um sapato que se atira na direcção visada, são a resposta ao piscar de olho e à provocação da pergunta, talvez entremeado com um rosnar entre dentes: «Não perdes pela demora...». Que chega logo, honra lhe seja feita, como se estivesse aguardar a sua vez para subir ao palco, talvez com efeitos especiais e sonoros alaridos. Adelante!

As fontes tinham dado o alerta. Diziam-me: mantém-te atento que a coisa acontece. Até lá, bebe um fino ou dois, vá lá, três, se estiveres com companhia e a conversa puxar por isso, nunca esquecer que a saliva é pouca nestes momentos de cavaqueira ou de debate ao correr do tempo, mas não passes dessa conta, que é aquela que Deus fez. 

Era uma das vantagens deste tipo de fontes, as moderadas e temperadas, certas e certinhas no pingar de uma cacha ou outra, habitualmente uma coisa suave, sempre com conta, peso e medida. Mas às vezes com algum picante, como esta, de que o personagem que devia entrevistar tinha contactos privilegiados nas altas esferas militares de um país estrangeiro, mas de que não posso revelar o nome, por razões deontológicas e de segurança, de certo compreendem esta relutância...

Perguntado onde estaria asilado tal personagem, foi-me dito que seguisse o rasto dos caças-bombardeiros, era disto que se tratava, e que, à cautela, levasse um capacete na cabeça, sob pena de não ter autorização para entrar no «bunkére» (sic).

Intrigado, perguntei o que fazer se por acaso o rasto se tivesse perdido e se havia alguma forma alternativa de poder dar com o «bunkére». Olhando para todos os lados, pareceu-me que com algum receio, suspeitei, a fonte fez-me sinal e apontou para uma casa, mais ou menos a 50 metros do sítio onde estávamos e desapareceu, desatando a fugir e aos berros de que não era responsável por nada e que não me conhecia de lado nenhum, o que não deixava de ser estranho, pois tínhamos acabado de beber quatro ou cinco finos, pagos por mim, fazia questão, pois era trabalho...

Por sorte, tinha trazido o meu capacete de espeleologista, que andava sempre comigo, e pus-me a andar para a casa que a fonte me apontara e, lá chegado, bati à porta, três toques curtos e um longo, aprendera esta senha nos filmes e nos livros de espionagem, sabia que funcionava e era uma espécie de código certificado.

Quem me abriu a porta não estranhou a minha presença, pondo-me à vontade e dizendo-me que já estava à minha espera, pois um dos pilotos dos caça-bombardeiros mandara-lhe uma mensagem, codificada, é claro, alertando-o de que eu estava a aparecer. 

Estava visto que ter conhecimentos destes não era para toda a gente, foi a conclusão a que cheguei, e que talvez lhe pudesse fazer uma entrevista, caso o protocolo de segurança e a comunicação com os caça-bombardeiros não fosse colocada em risco, a minha intenção era apenas a de informar os leitores e dar a conhecer este apontamento de reportagem.

O homem olhou para mim e disse que não, lamentava, mas que eram horas de ir para o «bunkére». Como estava a contar ficar lá até ao próximo bombardeamento, não podia ser nada, que tentasse mais tarde. E fechou a porta, pondo-me na rua.

Começava  a ouvir-se o troar dos aviões. Apertando o capacete na cabeça, procuro refúgio, por via das dúvidas. Do céu, em pára-quedas, desce um objecto. Aperto mais o capacete e começo a sentir suores frios. O objecto em pára-queda pousa: era uma cola. Não estava má.


(in Estava Lá, Mas por Acaso, pp.887)

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21 fevereiro 2021

Para o ano há mais...

Nem sempre as histórias estão disponíveis. Ou estão, só que não se lhes presta a atenção que deviam ter. Não sei explicar a razão pela qual isso acontece, mas é verdade que isso se verifica. Mesmo que seja omitido pelos pares ou entendidos, as razões estão lá, ainda que escondidas. Seja como for, encontrava-me ou estava a passar por um período desses, de pousio ou de pouca atenção para notícias ou acontecimentos um pouco estrambólicos, que era o core business onde me tinha especializado e ao qual gostava de me dedicar com mais interesse. Na falta disso, ia passando pelas brasas e dedicava-me a meditar, com um ou outro rouco pelo meio, é certo, mas tudo dentro de limites aceitáveis, era uma preocupação minha, que cedo tinha incorporado uma atenção aos efeitos e as implicações provocados pelo ruído, ainda que provindos do nosso corpo. Adelante

Ainda que em pousio, mantinha-me em contacto permanente com as fontes. Para facilitar o contacto, à falta de pombos, que estavam em pousio, também, tinha desenvolvido um original processo recorrendo a problemas de palavras cruzadas, uma curiosidade de que me tinha lembrado ao constatar que muitas delas eram praticamente viciadas neste passatempo, o que era uma boa notícia e contribuía para cimentar alguns conhecimentos de ortografia e gramática, sem esquecer também os de cultura geral, sempre úteis, nos dias que correm, é a minha convicção.

E foi precisamente na resposta ao enigma do exercício do dia, «alma do outro mundo», 8 letras, vertical, que se fez luz na minha cabeça e percebi que a explicação para a ausência de notícias das que gostava afinal era fácil, só tinha que seguir a pista que a fonte, nome de código, 'Ave trepadora cuculídea, frequente na Primavera', horizontal, quatro letras, me apontava, assim como quem vai mais para cima, mas nem tanto, um bocadinho ao lado, sabia perfeitamente onde era.

Ia prevenido, claro. Sabia o que me esperava. O lençol tinha as dimensões adequadas e as aberturas para os olhos estavam alinhadas, não havia problemas. Como suspeitava, cheguei à hora em que a confraria dos fantasmas se encontrava reunida em Assembleia-Geral, era o dia aprazado, e existia quórum. Não suspeitavam quem eu era, lógico, até porque me sentei nos lugares destinados aos jovens associados, pagadores de quotas, está bem de ver. Aprovado o Relatório de Actividades e o de Contas, com a minha abstenção, pois achei estranho que a verba para aquisição de lençóis tivesse aumentado na ordem dos 200000%, apesar dos subsídios, mas disseram-me que estava tudo bem, se não gostasse das conclusões que apresentasse uma lista e me sujeitasse ao veredicto dos sócios... Não estava disponível, infelizmente, daí ter que me reservar para a discussão dos 'Outros assuntos de interesse para a Confraria'. Que chegou, já ia adiantada a hora. Tomando a palavra, e esvoaçando um pouco o lençol, para dar um tom dramático e apelativo à intervenção, perguntei se a confraria era a responsável pela ausência de notícias estrambólicas e se isso estava previsto nos Estatutos. Fez-se um silêncio sepulcral!... Tinha acertado na mouche, estava certo!... Queria ver como se iriam desenrascar desta... Esperei, pacientemente. Talvez meia-hora. Ao não ouvir resposta nem movimento, estranhei. À minha volta, pousados nas respectivas cadeiras, mas bem dobrados, um número de lençóis correspondente ao número de associados presentes, mas sem os seus utilizadores. Na mesa da presidência da Assembleia-Geral, um cartaz manuscrito, a marcador, com o aviso: 'Por favor, entregar na lavandaria Abentesma'. 

(in Estava Lá, Mas por Acaso, pp.197)

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07 novembro 2020

O meu nome é...

Não era por falta de alertas que as coisas não se sabiam... Aliás, era uma das minhas principais preocupações quando procurava ensinar aos estreantes as regras básicas do ofício de escrevinhador: o cinema é o cinema e a vida é a vida. Misturar os dois era desaconselhável, por mais tentador que fosse... E era, sem dúvida, como tive oportunidade de o verificar amiúde, seja pelos convites frequentes para que aceitasse participar em filmes, mesmo não sendo protagonista, às vezes só a servir de cenário, mas noutras em que os papéis tinham sido escritos e pensados para mim, disseram-mo várias vezes realizadores com quem tive o privilégio de contactar e conhecer, do Tati ao Allen, sem esquecer o Fellini, grande amigo, que me honrava com a sua amizade e, também, com uma ou outra sugestão sobre um plano, um enquadramento, um guião, uma personagem, a escolha de um vinho apropriado para uma ocasião de festa, fosse um evento, um festival ou uma simples patuscada de presunto, pão e azeitonas... Adelante!

Mas a tentação para misturar os dois mundos era grande, já o disse, e quase inescapável, tinha passado por isso dias atrás, num momento (raro) de poucas preocupações com reportagens, artigos e ou crónicas, em que me tinha dedicado uma pausa e a fruição de um filme de aventuras, dos do James Bond, na televisão do costume, quando tocou o telefone, de forma mais repenicada do que o habitual, o que me obrigou a atender. Era uma fonte. Ainda procurei dissuadi-la, dizendo que estava a ver um filme em que tinha de me concentrar para fazer uma crítica, numa revista da especialidade, se era urgente e se não poderíamos falar noutra altura... Mas, conhecendo-me ela muito bem, perguntou-me se não estaria antes a ver o filme do James Bond que estava a dar na televisão àquela hora, preparado para o ripanço, e a despachá-la com toda a força, mas fazendo mal, pois tinha uma coisa que me interessava, e muito!... E aqui, o meu instinto não perdoava: tinha que ouvir a fonte!

E o que ela me dizia, pensando bem, alertara-me para uma das questões centrais nos filmes do Bond, que era a da enunciação do nome, a mítica «Bond. James Bond!», aplicada como chapa quinze em todos eles, fosse qual fosse o protagonista. E aqui, a coisa fiava (piava...?, era uma dúvida clássica, teria que ver isto num prontuário ou numa gramática, não podia deixar passar) mais fino, nem de propósito, pois me permitia dar sequência a uma dica que me tinha sido sugerida por um duplo, manipulador de profissão, sobre um caso que ele conhecia, de alguém que vivia obcecado com a falta de impacto causado pela enunciação do seu nome quando comparado com a do James Bond, designadamente nas partes relacionadas com o glamour, as moças bonitas, os carros e os cenários de arregalar o olho... Tinha que entrevistar o personagem que o duplo me indicara, que se suspeitava frequentava uma tasca perto de minha casa, e que me podia dar um furo de todo o tamanho! Já estava a caminho...

(continua...)



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09 agosto 2020

Fixemo-nos no número

 «325!». É este o número mágico. Não me perguntem porquê, mas é o número mágico que se perpetua de geração em geração, remontando a uma filiação ancestral que vai até ao filósofo Pitágoras, jurava a pés juntos uma tia, tia-avó. Como fonte é o que temos. Seja como for, apesar da tia-avó, que também afirmava que mantinha contactos extra-sensoriais com vozes do Além e também de mundos mais próximos, mesmo que afastados por distâncias medidas em anos-luz, a verdade é que esse número, o 325, assumiu sempre para mim conotações místicas, em especial naqueles dias mais apropriados a essas manifestações, os chamados «dias místicos», como hoje, dia em que redijo esta memória futura para o manuscrito, esse futuro best-seller... Adelante! E essa conotação evidenciou-se logo na escola primária, sobretudo a partir do momento em que descobri o fascínio e as implicações da utilização sapiencial da prova dos nove, não é para todos, reconheço, mas uma espécie de propedêutica para quem tenha propensão mística. No caso do 325, «era só fazer as contas», como dizia o outro, e aplicá-la de acordo com as regras que se perpetuavam: 3+2=5+5=10, noves fora=1, lá está, a unidade, não havia nada que enganar e era um sinal!... Para bom entendedor nestas coisas das místicas, o caminho para o misticismo tinha-se aberto... Mas há mais sequências com esse resultado, afirmarão os mais cépticos (os menos são mais flexíveis), uma rapaziada difícil de contentar, na verdade, mas com os seus méritos, há que reconhecê-lo. Na sua objecção, esqueciam-se do pormenor do equilíbrio, facilmente detectável no 325, mas já não no 721, por exemplo, ou no 901, no 820, e por aí fora... E, convém não esquecê-lo, qualquer um deles sem uma tia-avó a garanti-lo...


(in Estava Lá, Mas por Acaso, pp.325)

Nota: qualquer utilização do número 325 para fins não apropriados à mística ou ao misticismo não podem ser imputados ao autor destas linhas manuscritas, que em tempo oportuno registou a respectiva patente e se comprometeu, segundo o código pitagórico, a só o utilizar para esses fins.

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01 agosto 2020

A múmia era verde, mas a bicicleta não se sabe

Na minha profissão temos que ter cuidado com a credulidade. Também na vida de todos os dias, é certo, mas no exercício de uma profissão ligada às notícias o risco e a atenção têm que ser maiores. Não que não nos satisfaça o bizarro ou o inverosímil (muitas vezes o procuramos para o expor), nada disso. Dependendo do artista, a coisa até pode correr bem e ajudar a dar uma perspectiva invulgar daquilo de que se fala, descreve ou relata. Depende do artista, do contexto e também do público, que também aqui é soberano, mesmo que não se aperceba. Para o bem ou para o mal, a escolha por este tipo de matérias sempre me cativou e granjeou grande fama (pelo menos na minha rua, as manifestações são eloquentes e inequívocas desse entusiasmo e excitação sempre que está para sair uma peça, e tenho muitas!, algumas enterradas no quintal, num lugar secreto, que só eu sei, e destinadas a virem a ser um dia descobertas por povos alienígenas, mas dos bons e avançados, para ficarem a perceber um pouco melhor a nossa maneira de ser e de estar, talvez um primeiro passo para a paz e a concórdia universais, nunca se sabe...). Mas disperso-me, eu sei, pecadilho que a minha idade autoriza e os leitores aceitam com bonomia, já mo disseram e acredito. Adelante!
Corria um desencontrado boato de que uma múmia, vestida de verde, andava a passear de bicicleta algures pelos campos e afins, desconhecendo-se quem seria e o que quereria. Na altura, estas notícias não eram invulgares (vá lá a saber-se porquê...), mas que os espíritos cépticos e avançados olhavam de lado e com sobranceria para eles e isso ajudava pouco, para não dizer nada. Impunha-se que alguém com o meu perfil e tarimba (era um facto que tinha estado envolvido, jovem nos meus vinte e tal anos, em explorações arqueológicas realizadas numa necrópole algures ali para os lados de... agora tive uma branca, mas era longe, e onde, curiosamente, tinham sido encontradas múmias, não «paralíticas» (aqui não resisto a introduzir uma piada célebre de um show televisivo que passou pelas berças e arredores anos atrás), mas em perfeito estado de conservação). Mas as ligaduras não eram verdes! E isto já era um indício... Importante, como se verá.
Eu próprio um entusiasta de bicicletas, resolvi pegar na pasteleira e dar uma volta por montes e vales a ver se encontrava a dita múmia vestida de verde. Não foi difícil, confesso, mas tive que esperar que acabasse uma etapa de contra-relógio em que estava a participar. Acabado este, e ainda a bufar, resolvi abordá-la de rajada, para evitar fugas ou tergiversações, embora já sabia qual seria o resultado.
_ Então o amigo ciclista é que é a múmia de que se fala...?
_ Eu!?... Quem é lhe contou tal disparate?
_ Não fuja! Então e essas ligaduras todas à volta do corpo, para que é que servem?
_ Ah, isto!... Dei um tombo num dos treinos... Caí por uma ribanceira abaixo... Mas não parti nada. Foi só pele.
_ Então, confirma que não é uma múmia vestida de verde?
_ Sim, confirmo.
_ Então é o quê?
_ Sou artista de circo, em regime ambulante, e aspirante a ciclista, nas horas vagas. E gosto muito do verde, daí a cor das ligaduras. Não quer ir dar uma volta de bicicleta?
_ Claro! Mas posso levar a amarela?



(in Estava Lá, Mas por Acaso, pp.3428)



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18 julho 2020

À boleia para a linha da frente

Nem será uma novidade, penso, mas todos os jornalistas ou os que o ambicionam ser desejam, pelo menos uma vez que seja, vir a ser repórteres de guerra. Apesar do epíteto de malucos, loucos, destravados, passados dos carretos, inconscientes,aventureiros, destemidos, heróis, que lhe venha a ser aposto, a verdade é que esse anseio está alojado no coração do repórter e, nalguns casos, difícil de desalojar. Também foi o meu caso. Lembro-me perfeitamente desse dia, uma sexta-feira, véspera de fim-de-semana grande, em que comuniquei ao meu pai e à minha mãe a minha intenção. Também estava calor. Mesmo assim, estava com arrepios. Depois do almoço, aproximei-me dos velhotes e disse-lhes que queria falar com eles, que tinha uma coisa importante a comunicar-lhes. A minha mãe disse um «Ai, Jesus, Maria Santíssima!...» e o meu pai limitou-se a franzir o sobrolho (um clássico em quem desempenha a função de pai), levantando os olhos da leitura do jornal, curiosamente uma reportagem sobre as ideias que motivam a juventude em tempos de crise existencial ou desgosto de amor na Lapónia profunda, lembro-me perfeitamente. Entretanto, a minha mãe começava a recitar a oração que costuma usar em tempo de trovoada, a de «Santa Bárbara bendita...», já não me recordo do resto, apenas do excerto em que se refere uma «cobra com 27 filhos a mamar...», vá-se lá a perceber porquê esta recordação específica, talvez pelo simbolismo ou pela conotação visual de ver uma cena desta natureza, digna de um plano de Arrabal, meu amigo e mestre, isto não desmerecendo outros, como os dos cowboys, das comédias, de guerra, dramas, e por aí fora, estaria aqui uma vida inteira e mais algumas a desfiar memórias, episódios, picarices e outras coisas... Adelante!
A conversa com os meus pais ficou-me gravada na memória, e ainda bem. Passo a reproduzi-la aqui, consciente do efeito que ela pode ter na mente de um jovem ou menos jovem futuro repórter, de guerra ou não, pois ela é de aplicação transversal. Funciona como uma espécie de cartilha, assim se queira saber ler ou interpretá-la, a escolha é tua, jovem repórter. Não se identifica quem disse o quê, primeira regra para um entendimento abalizado e fundamentado, deixando espaço para a criatividade, outra das regras, mas sempre cingidos aos factos!
_ Queria pedir uma coisa...
_ Fala com a mãe.
_ Ai, minha Nossa Senhora!...
_ Então, perdeste a língua...?
_ Eu, eu, eu ...
_ Pai Nosso...
_ Eu quero ser repórter de guerra!
_ ?...
_ ?...
_ E como é que queres fazer isso...?
_ Tenho que te fazer a mala... Ai, e a merenda...!? Porque é que só me avisaste agora, que está tudo fechado?!... Valha-me Deus. E agora...?
_ Então... escolho uma. É simples.
_ Atiras uma moeda ao ar, é...?
_ Não, que ideia!... Escolho uma em que se combata pela liberdade, contra a opressão, pela dignidade. Não deve ser difícil escolher...
_ Queres levar t-sirts ou pólos?...
_ T-shirts e jeans.
_ Quando é que estás a pensar ir?
_ Agora. Já! É urgente.
_ E como é que vais?
_ À boleia. Faz parte.
_ Queres levar uma omelete?
_ Pode ser. Fruta também.
_ Pensaste bem nisto, não pensaste...?
_ Claro!... Também, logo vejo: se não estiver a dar, regresso... E escrevo um livro!

(in Estava Lá, Mas por Acaso, pp.4)

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05 julho 2020

Enxertado em corno de cabra (até ver a luz)

Tenho todo o respeito do mundo por quem assume ou está a pensar assumir uma vida de asceta. Acredito que não seja fácil e não é por falta de tentativas do Belzebu, que habitualmente se empenha nestas coisas e faz apelo a um conjunto de expedientes que não estão ao alcance do comum dos mortais. Mas mesmo que não cheguemos ao patamar belzebuiano (acabei de criar um neologismo, não me posso esquecer de o registar e apochar mais uns cobres para arredondar as contas ao final do mês…), muitas vezes são os simples mortais que se aliam para infernizar a vida e a paz destas santas almas (que outro nome é que se lhes dá, não me dizem, ó almas do Diabo?…). Como vêem os leitores, vivo numa permanente tensão entre o sagrado e o profano, entre o visível e o invisível, entre o claro e o obscuro. Adelante!
Já há algum tempo que andava intrigado com uma dica, de fonte fidedigna, acerca de um eremita que viveria algures no meio da mata, afastado do mundo conhecido e fiel a um voto de silêncio. Como não falava, desconhecia-se o motivo do permanecer calado, mesmo que provocado, insultado e ridicularizado. Que cobardia, meus leitores!... Era por cenas destas que cada vez mais descria do mundo e dos homens… Raça danada, esta!
As pistas não eram muitas. Para encontrar o eremita tinha de dar ao pedal, estava visto. E depressa, antes que hibernasse! Já tinha uma ideia de como poderia aproximar-me dele. E quem me ia ajudar era o meu amigo australiano, pisteiro emérito. Apesar de reformado, ainda era capaz de detectar um rasto só de olhar para o chão e cheirar o ar. Nunca falhava. Amanhã dávamos com o homem.
Como era de prever, a localização do eremita nem chegou para o meu amigo se cansar. Aproximámo-nos, eu e o pisteiro, e levantámos a mão, em sinal de paz. O homem olhou para nós e era como se não nos tivesse visto. Ia ser duro, estava visto. Mas eu estava preparado e tinha uma arma secreta. Veria como o eremita reagiria a ela.
_ Consta-se que o meu amigo, antes de se ter tornado eremita e feito um voto de silêncio, era enxertado em corno de cabra! Confirma isto…?
O eremita parecia que tinha sido picado por alguma coisa desagradável, mas conseguiu conter-se. A custo, mas conteve-se. Mesmo assim, largou um audível «Maldizentes! Impenitentes! Cabrões!». E falou dez horas seguidas…

(in Estava Lá, Mas por Acaso, pp.1221)

 

 

 

 

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27 junho 2020

Sobre o respeitável aconchego de uma lona ou de uma manta...

Depois de muito pensar e meditar, hoje resolvi ser bombástico. E isto porquê? Por causa dos títulos. É uma palavra matreira esta, «títulos», suficientemente semântica para enganar os simples ou os incautos. Mas também os complexos ou os experientes. Sei do que falo, pois a minha carreira literária e profissional tem vivido, quase que exclusivamente de títulos. Mesmo assim, desconheço quantos títulos arranjei, publicitei ou acumulei, como constatei ao abrir um baú, daqueles do tempo dos afonsinos, com chave e pano de renda em cima, talvez resquícios de um enxoval ou de alguma partilha de heranças. A conclusão era óbvia: mais do que o conteúdo, o que motiva a maior parte das pessoas são os títulos. Aliás, fazendo uma sumaríssima  sondagem pelos próximos ou menos próximos facilmente se concluirá que os títulos ocupam uma substancial parcela daquilo que é valorizado, contabilizando também aqui uma parte, não menos substancial, de encadernação e acabamento. Mas não se iludam os que pensam que este intróito corre o risco de ir para um caminho que não nos é familiar, como é o cultural, o intelectual e o vivencial, universo de referência para os leitores das minhas crónicas e ou reportagens, sem contar com os livros publicados, actuais ou futuros, que escreverei logo que tiver tempo de me ocupar deles, situação que não irá ocorrer tão breve...
Mas tínhamos começado com o bombástico e, até agora, não temos feito nada mais do que dar uns estalinhos, era melhor começar a dar guita à história antes que ela nos rebente na boca. E isso, ninguém quer. Por isso, Adelante.
Como referi no parágrafo anterior, a descoberta do baú e do que ela continha motivou-me a equacionar uma pequena experiência a propósito da questão dos títulos e da minha tese a respeito deles, não se perderia nada em tentar e eventualmente ainda poderia ganhar uns trocos, sempre necessários, é certo, mas que a mim pouco me dizem, desprendido como sou... Iria ver como a experiência decorreria num ambiente propício, uma espécie de feira da ladra que decorria de quinze em quinze dias num dos bairros da terra mais dados as estas coisas do pitoresco e das trocas em regime aberto, expostas em cima de respeitáveis lonas ou mantas, o que se poderia querer mais...? (antes que me esqueça, tomar nota do título que encontrei para a reportagem/reflexão e que acabei de descobrir: «Sobre o respeitável aconchego de uma lona ou de uma manta», ainda com dúvidas se com reticências ou sem elas, depois vejo e decido).
Para garantir e testar a validade da minha tese, não iria ser muito selectivo nas escolhas. Por isso, fechei os olhos e retirei do baú uma mão cheia de títulos, mais ou menos dois quilos, e meti-os dentro da mochila. À parte, já tinha a lona e a manta, caso fosse necessário, e meti os pés ao caminho, pensando na melhor maneira de promover o artigo e de que forma. Já tinha uma ideia, não me parecia difícil. Para além do mais, convém não esquecê-lo, conhecia a mente e a alma humanas. Era só juntar as coisas...
Lá chegado, montei a tenda. Espetei o cartaz que tinha idealizado numa árvore, qual armadilha, onde se dizia: «Escolha um título sem esforço. Não custa nada, mas se puder dar um contributo...». Era suficientemente apelativo, parecia-me, e estava certo. Tinha acabado de dispor os títulos ao longo da lona e da manta (ainda bem que a trouxera), quando me apareceu uma alma meio esquadrilhada  a manifestar interesse num dos títulos em exposição, aquele que titulava: «Prolegómenos eternos», e se tinha a ver com literatura erótica, dispondo-se a pagar o que fosse preciso... Aqui, tive um rebate. Sabia que era um título de iniciação à Filosofia, mas vista segundo algumas perspectivas e com o acordo do leitor poderia talvez encaixar-se no tipo de literatura que aquela alma pretendia, mas o que era justo era pagar o preço que estava marcado, não pactuava com a especulação. E lá o levou o título. E foi isto toda a santa manhã... Para a estatística e registo para a posteridade, aqui ficam alguns dos exemplos de títulos que confirmavam, à saciedade, a minha tese: «Em cima do trevo», título de poesia erótica arrematado por um entusiasta da agricultura biológica; «Máquinas absurdas», título de uma colectânea de contos, levado por estudante da área das engenharias mecânicas; «O legal guião», título de um argumento de cinema que caiu que nem ginjas no bolso de um jurista; «Despojamento, modo de usar», comprado por um gestor dos bons para ter em cima da secretária; «Com palha, mas sem corantes», título de iniciação à retórica, abarbatado por um chefe de cozinha, e muitos e muitos outros, escolham os leitores de que tratavam e quem os levou a arregalar o olho e a esfregar as mãos de contente: «Abre bem essa pétala», sob o tema da jardinagem, «Hoje, bati numa porta fechada», relacionada com o mundo fascinante dos carteiros, «Amanhã, talvez, falaremos disso», sob as mil e uma formas de catequização e conversão, «Humor para sisudos», um sempre útil e estimável título de auto-ajuda...


(in Estava Lá, Mas por Acaso, pp.199)



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10 junho 2020

Pescado à linha (cenas da vida fluvial)

Convidado por um velho amigo, preparava-me para comer uma peixada preparada com todos os matadores: de modo tradicional, à linha, e com um tempero de fazer lamber os beiços, receita ancestral de família, com raízes que remontam aos próprios fenícios ou aos gregos, não me lembro bem, mas com selo de garantia e rótulo de autenticidade... Era um camarada muito vivido, com histórias mais mirabolantes do que as que se contam com esse rótulo, dignas de constarem num catálogo de raridades e do arco-da-velha, matéria que me atrai, e de que dei conta, por diversas vezes, nas minhas crónicas e ou reportagens. Por incrível que possa parecer, atendendo à zona de onde era oriundo, esse meu amigo ganhou fama e proveito como caçador de crocodilos em cursos de rio e ribeiros, arte aprendida em workshops com uma lenda na matéria, o Crocodilo Dundee, ele próprio, que num gesto de rara magnanimidade o rebaptizou com o epíteto carinhoso de Crocodilo Dundee II, ramo Rios, Ribeiros e outros. Adelante, que a barriga tem os seus ditames e exigentes!
À medida que me aproximava da cabana do Dundee II, meu amigo, os vestígios da sua actividade eram cada vez mais evidentes, espalhados pela vegetação ou expostos ao sol, suspeito que por uma qualquer opção espírita ou esconjuradora, suficientemente perturbantes ou intimidatórios para quem não conhecesse ou nunca tivesse ouvido falar desta personagem, mas uma espécie de santo e senha para os amigos e conhecedores da sua vida aventurosa, uma espécie de espaço sagrado, sim, mas profano. E os garrafões lá estavam para o certificar! Adelante! (era já o segundo, o que talvez prenunciasse coisa boa, veríamos…).
Chegara. Depois dos cumprimentos rituais, cada uma com a sua pele de crocodilo às costas, entrámos na cabana, onde a mesa já se encontrava posta. No expositor habitual, o colar de presas de crocodilo, confeccionado e oferecido pelo Crocodilo Dundee como prenda de casamento, mas que a esposa do meu amigo nunca tinha usado, por consideração e reverência para com quem a tinha oferecido, recebía-nos como uma espécie de mordomo e criava o clima apropriado para o desfiar de histórias, tantas ou muitas de que se lhes perdia a conta, mas saborosas, todas elas… Como esta, então muito em voga, mas que não chegou a ser muito divulgada, para evitar o alarme e o pânico nas pessoas. E não era para menos… Só me atrevi a revelá-la agora, passados estes anos, e nem toda, a pedido do meu amigo, pois houve coisas que se mantiveram em aberto e nunca, que se saiba, tenham sido fechadas...
A história era um pouco bizarra, reconheça-se, e pode resumir-se numa questão nada académica, que era esta: poderia um crocodilo ser confundido com uma lontra ou vice-versa? As opiniões divergiam, é claro, e havia-as para todos os gostos. Que sim, que não, que talvez… Mas a resposta estava à mão (de pescar, neste caso). E aí, entrou o meu amigo. Fixei o que então me disse:
_ Sabes. Tive de me impor, porque a rebaldaria era tanta, o desconhecimento era tão evidente, que já não aguentava mais!... E disse aos da Comissão, entretanto constituída para determinar se o bicho que tinha entrado no rio era um crocodilo, uma orca, uma lontra ou um hipopótamo, que se havia alguém que tinham de consultar era eu, o maior especialista das redondezas fluviais em crocodilos e afins, com provas dadas e vários colares de presas que oferecera às moças casadoiras e às mães para o comprovar, que nem se atrevessem a dar um pio que fosse ou teríamos o caldo entornado, neste caso, migas… E meteram o rabinho entre as pernas, despachados e ameaçados com uma cabeça de crocodilo cheia de dentes, a abrir e a fechar como as castanholas… E ala que se faz tarde, sem tempo para mais cumprimentos… E até hoje.
Ri-me e perguntei-lhe: Ainda há migas…?
_ Algumas, sim. Mas não são para ti, desculpa.
_ Estás à espera de alguém...?
_ Não, são para o crocodilo… A lontra come depois.


(in Estava Lá, Mas por Acaso, pp.188)

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06 junho 2020

A gesta e a giesta

Pode um grupo de pândegos constituir-se como sociedade secreta?... Não sei. Mas não me surpreende, devo dizê-lo. Esta questão assaltava-me de vez em quando. Não sabia tipificar uma periodicidade, mas aparecia com alguma frequência, às vezes em momentos inesperados. Como este, em que me desloco campo fora a ver no que param as modas e aproveito para fazer um passeio higiénico antes de deitar. Na verdade, porque é que um grupo de pândegos não pode constituir-se como sociedade secreta ou associação de outra natureza: será pela inexistência de estatutos? De códigos específicos? De indumentária apropriada? Da rambóia como lema orientador?... Muitas questões, poucas respostas... Adelante!
Estava eu assim com as minhas cogitações (devo rever esta parte, pois cheira-me que posso a estar a citar alguém de que me não lembro agora - não esquecer!), quando me apercebo de estar a aproximar da carreira de tiro e começo a detectar sinais inquestionáveis de presença humana (não é impunemente que se passa um período determinante da vida na guerrilha...), não de períodos antanhos (deixo isso para os especialistas), mas bem presentes e objectivos: um trilho de garrafas, de várias cores e feitios, indícios de fogueiras diversas e uma curiosa sinalética de paus e verdascas a dar ideia de pictogramas ou hieróglifos, motivos mais do que suficientes para ficar alerta e, melhor do que isso, espicaçar a minha curiosidade... Pé ante pé, aproximei-me, recorrendo às medidas de segurança que tinha aprendido e que se mantinham activas e actuantes, acabando por desembocar numa pequena clareira, semi-oculta pela vegetação (como camuflagem não estava mal, não senhor, o que era um indício de que quem a tinha escolhido dominava, com algum à-vontade, a técnica). Aproximei-me mais. Mas a aproximação não tinha sido prudente (reconheço-o agora), e a quebra de um galho de uma giesta fez-se ouvir no silêncio da noite, sobressaltando um pouco o grupo que se encontrava reunido à volta da fogueira. Ouve-se uma voz: «Entra, se vieres por bem. Come, bebe e manda uns bitaites sobre a vida e o mundo. À saída, deixas uns trocos para o depósito das garrafas». Entrei, claro. Ia ver no que dava.



(Decidi publicar isto por capítulos. Já tenho o acordo do editor. Mas vou ter que me documentar sobre este tipo de sociedades, não quero ir às cegas... Apesar da recepção ter sido boa e acolhedora, notei alguma tensão quanto à minha presença (conheciam-me bem, é claro). Teria que ganhar a confiança do grupo e ver como as coisas evoluíam... Mas marquei logo pontos quando lhes revelei uma espécie de cacha, um termo jornalístico para exclusivo: a realização, dentro de dias e a poucos quilómetros de onde se reuniam, de um solstício de Verão protagonizado por Ninfas de várias nacionalidades.).





(in Estava Lá, Mas por Acaso, pp.444)

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24 maio 2020

Par de parêntesis

Como em tudo na vida, há projectos mais arriscados do que outros. No jornalismo, minha paixão e opção profissional, nem sempre foi fácil fazer vingar os meus, umas vezes por dificuldades inultrapassáveis, outras por opção editorial. Nada de novo, no entanto. Feitas as contas, a maioria fez o seu caminho. Às vezes tem que haver uma espécie de instinto para avaliar se um tema, uma reportagem, uma entrevista, um episódio, um facto insólito, possuem aquele gás necessário para motivar a curiosidade dos leitores, o apoio dos patrocinadores e a validação dos editores ou dos proprietários. E temos sorte (eu, pelo menos, tenho tido, sobretudo a partir do momento em que consegui obter um exclusivo com o técnico responsável pelo sistema de ventilação que fez levantar as saias da Marylin Monroe, no filme de Billy Wilder, O Pecado Mora ao Lado - cena mais icónica do que esta não há, direi eu, convicto), há que reconhecê-lo, muitas vezes por coincidências extraordinárias e impensáveis, por exemplo usar um palito para palitar os dentes, muito em voga naquele tempo na região por onde andava, e prática de limpeza dental característica de um certo tipo de profissionais,  como o meu editor dessa altura, a quem tinha acabado de propor um tema ousado e provocador (reconheço) de homenagear os gémeos Parêntesis, membros de pleno direito da Confraria dos Sinais Ortográficos, mas muitas vezes relegados para um papel secundário (quando não desdenhoso) na desenvoltura da frase ou do discurso, podendo ser vistos como coisas supérfluas ou desnecessárias, atravancando um caminho que se deseja linear, directo, objectivo, fugindo aos esclarecimentos e comentários intrusivos de terceiros ou terceiras, fontes ou não, autoridades muito ou pouco, às vezes uns devaneios (porque não?) lírico-poéticos, histórico-filosóficos, humorísticos, onomatopeicos, etc., etc. e tal... que em vez de emperrar a frase podem encaminhá-la e conduzi-la a outras direcções, responsáveis pelas célebres epifanias das boas ou nem por isso (o leitor o dirá quando se vir confrontado com isso)... E basicamente foi isto que argumentei para fazer vingar a minha proposta, enquanto o editor trincava o palito com força e abanava a cabeça, dizendo «Tu vais ser a desgraça do jornal! Tu vais ser a desgraça do jornal! Mas que raio de ideia!... Estás maluco, pá! Só pode!». A coisa parecia não correr bem... Já tendo apalavrado a entrevista com os gémeos, que me esperavam numa esplanada e a quem tinha dito para irem bebendo uns finos enquanto ficavam à minha espera, não sabia muito bem como ia descalçar esta bota... Achei que o melhor era fazer a coisa à traição (desculpem, mas tinha que ser) e dizer que estava bem, que ia pensar no assunto... Mais tarde lhe diria (já sabia qual o desfecho: a neura iria passar-lhe e sabia que ele se recordaria das vezes em que eu tinha ganho o equivalente caseiro do Prémio Pulitzer: uma pratada de cozido no Abílio das Tripas, com vinho à discrição, sobremesa caseira do dia, terminada com um cálice de bagaço da garrafa do patrão e um café)... Até lá, o trabalho urgia. Mas uma dúvida existencial (pois o que havia de ser...?) atormentava-me: afinal, que gémeos Parêntesis é que iria entrevistar, os Curvos ou os Rectos?...


(in Estava Lá, Mas por Acaso, pp.222)

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17 maio 2020

Demócrito, sim, mas de raspão

Acabara de executar um tango numa conhecida casa de baile da nossa praça, quando a minha parceira me colocou dentro do bolso um papel. Não quis logo ler o que dizia, e convidei-a para um refresco debaixo da latada. Ficámos logo amigos e tive que lhe prometer que lhe ensinaria meia dúzia de passos que tinham feito esbugalhar os olhos da assistência enquanto dançávamos, consequência de uma aprendizagem que tivera numa afamada casa de tangos na Argentina, quando por lá ganhava a vida no exercício dessa arte nobre e ritmada... Devo dizer, aliás, que o Carlos Gardel, o próprio, entusiasticamente um dia me veio felicitar pela performance, «Asombrosa, asombrosa!», dizia para quem o quisesse ouvir... Adiante.
Abri o papel. Dizia: «Há voltas e voltas. Todas iguais, todas diferentes. A revelação do segredo espera-te em tal parte (omitido, por deontologia profissional), na transição de um dia para o outro». Não estava assinado. Mas nem era preciso, pois o tom esotérico e obscuro da mensagem eram suficientes para despertar o meu instinto. Não recuaria!
Conhecia o local, claro. Para estar preparado, chegaria um pouco antes da hora indicada na mensagem. Queria conhecer bem o cenário onde teria que me integrar, possivelmente recorrendo a regras básicas de camuflagem, básicas, mesmo, daquelas que se aprendiam logo nas primeiras 24 horas do curso de espião por correspondência, nível 1, que frequentava nas horas livres das minhas imensas actividades culturais. Seria canja!
Chegara lá. A princípio, nenhum movimento. Não se ouvia um ruído, pequeno que fosse. De súbito, um leve arrastar na calçada deixava entender que alguém se aproximava. Vinha de uma das ruas, a localizada a norte. Depois, ruído semelhante, desta vez provinda da rua a sul. Por último, um ruído igual aos dois anteriores, saído de nascente. Juntaram-se a meio do espaço circular (um indício claro). Eram três. Não trocaram mais do que cumprimentos breves e alinharam-se ao lado uns dos outros. O que estava no meio ergueu a mão e fez um sinal (pareceu-me) e começaram a andar, cadenciada e ritmadamente, falando de coisas e loisas várias, a maioria delas sérias e profundas, pelo que podia ouvir, pois sobressaíam palavras como «profundidade», «seriedade», «despojamento», «organização», «átomos», «realidade» «universo», «acaso», «necessidade», e mais terminadas em «ade» (eram muitas), misturadas com umas mais obscuras, como «copos», «vagueirada», «tainadas» e outro sucedâneos assim terminados, como «patuscadas», que eu facilmente interpretei como códigos cifrados para quem pudesse estar a ouvir, era evidente, e um sinal inequívoco de que se estava em presença de uma seita ou similar, mas sociedade secreta, no mínimo!... Teria que estar atento ao desenvolvimento da cerimónia, já não tinha dúvidas nenhumas. E se elas existissem, rapidamente as dissipei quando me apercebi do que fizeram ao chegar ao fim do troço: a troca de posições, como se de um baile ritual se tratasse, entre o que tinha ocupado o centro e um do das pontas. À vez, ritualmente. Ao ver como se processava a sequência da marcha e da troca de posições, confesso que comecei a sentir um misto de desconforto e de euforia..Nem queria acreditar! Acabara de descobrir um dos segredos mais bem guardados do universo: os extraterrestres existiam, reuniam-se naquele lugar e comunicavam com o seu local de proveniência, algures numa galáxia distante!... E a prova era o ritual do passeio, em que a troca de posições correspondia ao mudar de linha ou de parágrafo de uma qualquer mensagem... Mas só se via do espaço.


(in Estava Lá, Mas por Acaso, pp.513)



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09 maio 2020

Receitas trocadas

Uma fugaz memória recordava-me qualquer coisa relacionada com o convite para apresentação de um livro, em local e data determinados, de autor (autora, soube depois) da região e a indicação de um número de telefone para confirmar a aceitação. Sempre disponível para as coisas da cultura, imediatamente disquei o número e confirmei a presença. E nunca mais me lembrei... Mas Deus escreve direito por linhas tortas, lá diz o ditado, e uma epifania pode sempre apanhar-nos numa curva ou numa recta da vida... Aliás, agora que falo disto, não me posso esquecer de transcrever para este cardápio de memórias o meu trabalho de reportagem numa comunidade de epifânicos, mais ou menos a meio da minha carreira jornalística, que me valeu um prémio nuns jogos florais, secção reportagem e vida real. A não esquecer.
Tinha almoçado bem. Hábito antigo, o passeio impunha-se. À medida que galgava metros e quilómetros, o espírito libertava-se das grilhetas terrenas e começava a planar mais ou menos a três metros, tentando chegar aos cinco, quando a luz intermitente de um semáforo me despertou a atenção para um painel em papel, encostado ao poste, com o desenho de uma seta e a palavra 'Lançamento' inscrita, em caracteres a fazerem lembrar pequenas iluminuras, pelo que podia perceber... Era um sinal, viria a reconhecer depois, mas também um desafio para a minha insaciável curiosidade e instinto jornalísticos... Decidi seguir a direcção apontada pelo sinal e cheguei a um pátio, cheio de vasos e flores, e a uma porta onde se ajuntara uma pequena multidão, rodeando uma freirinha, com o seu hábito, e cujos olhos sorriram assim que me viu. Não a reconheci, é certo, mas sorri também, por educação, finura, urbanidade e tique profissional. Convidando-me a entrar na sala, pois fora para aí encaminhado, deparo-me com mais pessoas sentadas em frente de uma mesa, com cadeiras e um pano por cima, risonhas também e a comentarem, extasiadas, «Sempre veio! Sempre veio! E pontual! Não te dizia, Zefa!?...». Era certo que estavam à minha espera. Ainda ligeiramente atordoado pelo acolhimento, mas sensibilizado, ouvi então um velhinho, no centro da mesa, a dirigir-se ao auditório improvisado:
_ Amigas e Amigos, boa tarde e obrigado pela vossa presença nesta cerimónia, singela mas cheia de significado, para celebrarmos o aparecimento de uma jovem autora da nossa praça, nas suas viçosas 85 primaveras, que hoje se comemoram, e congratularmo-nos pelo lançamento do seu primeiro livro, a que outros se seguirão, estou certo e um dedo que adivinha já me afiançou (sorria, ao dizer isto)... Mas não vou alongar-me mais, pois quem vocês querem ouvir é a pessoa que amavelmente se disponibilizou, como é seu timbre, aliás, a apresentar o livro da nossa irmã. E deu-me a palavra.
Acabara de me lembrar do convite! E agora, que fazer...? Não dizer nada estava fora de questão. Faria apelo à minha anterior experiência no seminário e às sucessivas vezes em que me tinha deparado com os fenómenos e a mística epifânica, condimentada com o traquejo e o know-how profissionais. A coisa arranjava-se. Tudo iria dar certo (andrà tutto benne, recordava-se das suas aulas de italiano com a actriz Sofhia Loren, mas isso eram outras histórias... era melhor não se dispersar). Por outro lado, sentia-se inspirado. E as palavras sobre o livro da autora saíram, fluídas e cristalinas, com muitas referências aos arroubos místicos e à generosidade e à dedicação da autora no abraçar da sua vida religiosa, um apelo, um chamamento e um destino, terminando por lhe endereçar os meus parabéns e votos de nos continuar a presentear com a sua prosa bela e plena de significado, sublime, até, acabei por declarar.
Fez-se silêncio. Depois, uma apoteótica salva de palmas, vivas e até meia dúzia de olés!... Educadamente pedi desculpa por não ficar para o beberete, com um licorzinho, mas compromissos inadiáveis obrigavam-me a abandonar tão distinto auditório e autora... Talvez no próximo lançamento, quem sabe...? Ainda consegui apanhar uma voz a comentar: «Este pregador era dos bons, sem dúvida!... Não percebi nada do que disse, mas quando estiver a fazer uma das receitas do livro da nossa madre vou-me lembrar-me dele... Ai vou, vou!..».


(in Estava Lá, Mas por Acaso, pp.387)
 

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02 maio 2020

Bucolismo (em lá menor)

Fazendo e ganhando a vida da escrita, nem sempre as coisas correm com a fluidez necessária. Mas disso qualquer leitor se pode queixar. Não que esteja a sugerir que os meus estimados leitores façam ou ganhem a vida da escrita, nada disso, mas puxando-os para o meu lado ao tornar implícito que há muitas formas de «escrita»: requerimentos, documentos administrativos, composições diversas, cartas aos entes queridos, divagações, receitas, inventários, listas, etc., mais ou menos apuradas ou inspiradas.
Esta reflexão ocorreu-me enquanto fumava «um pensativo cigarro» (parece-me que isto foi dito por alguém mas não me lembro por quem e, como não quero incorrer em problemas de cópia, é melhor meter a expressão entre aspas, para me precaver, e fazendo desde já um alerta para que quem lê não venha a ser apanhado também) e me preparava para entrevistar uma personagem singular, pastor, compositor de assobio, criador do manual sobre o lançamento seguro de pedradas, e poeta no intervalo das ordenhas ou das prenhezes, homem de montes e vales, mas também do mundo, a quem ocultaremos o nome a pedido do próprio e da família, que graciosamente nos facultou o azimute para o encontrarmos.
_ Comecemos pelo princípio: porquê, a pastorícia?
(A questão pareceu surpreendê-lo, mas rapidamente se recompôs).
_ Ora, porquê?!... Desígnio, propósito, motivação, intenção, vontade, projecto, epifania, lua, acaso... quem sabe?...
(Desta vez, a profusão e a cadência de motivos surpreendera-me a mim... Teria que estar preparado e ver até onde isto nos levaria. Iria ver).
_ Podemos supor, então, que esta actividade lhe moldou a sensibilidade, o espírito e a mente, colocando-o numa posição privilegiada para discernir sobre as coisas da vida e do mundo, certo?
_ Errado!
_ Como assim?
_ O meu negócio são as ovelhas, como anteriormente foram as cabras. O que me interessa é se comem e como, se parem bem e se os cães fazem o seu trabalho. Depois, havendo tempo e disposição, fazemos as outras coisas.
_ As coisas da vida e do mundo, suponho...?
_ Não.
_ Não...?!
_ Sim, não. Percebeu tudo mal.
_ Se calhar... Não quer explicar-nos, a mim e aos leitores?
_ As outras coisas são as composições para assobio, com orquestra e à capela, e o manual da pedrada, já na quarta edição.
_ Sem esquecer as composições em verso, também. Não nos quer falar delas?
_ Hoje não.
_ E sobre as músicas e o livro, não quer acrescentar nada...?
_ Não sei se está preparado...
_ Diga, diga, não se envergonhe!
_ Foram-me ditados...
_ Ditados?!... E por quem, por quem?!...
_ Pelo espírito santo... de orelha.

A paisagem que me rodeia é deslumbrante. De tirar o fôlego. Talvez da altitude... Nos vales, com o rio a serpentear, escutam-se os rumores da natureza. Junto de mim, o rebanho mantém-se aquietado e tranquilo. Ouve-se um silvo de pedra, lançado por mão experimentada. O estrondo de vidro a quebrar-se ecoa pelos montes e vales...



(in Estava Lá, Mas por Acaso, pp.38)




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26 abril 2020

Heróis em latitude e longitude algures (escolha você)

O que é um herói? Esta pergunta já foi e continuará a ser feita milhões, trilhões de vezes. O número não é exagerado. Basta pensar no número de vezes que cada um já a terá feito e multiplicar pelo número de almas que se quiser. É só fazer as contas...
Sendo assim, há muitos tipos de heróis ou heroínas (olá, se há!). A maioria ficará anónima e deles ou delas não se saberá mais, se vier a saber-se, do que memórias esparsas e difusas de factos, momentos, ocasiões, mais ou menos épicas, podendo vir a dar lugar a um apontamento, uma nota de rodapé, um epigrama, uma inscrição, uma referência nos álbuns, no nome de um canelho (curiosa, esta memória do canelho, que apareceu ao correr da pena, e atira para uma outra, esta sim, mais vívida: canelha! Um dia, quando as memórias forem aparecidas  - quando, meu Deus!... - terei que me debruçar sobre esta confluência entre a escrita e a memória. Mas adianto já um cheirinho - mal não fará, penso...).
Estamos em plena Primavera. Se fosse dado ao bucolismo ou à poesia, diria qualquer coisa a propósito das fragrâncias, das cores e dos seus matizes, sobre vida e tudo o que lhe costuma estar associado. Mas sou da prosa e do jornalismo, da tentativa de compreender e procurar explicar o mundo, mesmo que o entorte para melhor o perspectivar. Por isso, há que ter cuidado com os devaneios reflexivos: não é para isso que me pagam os editores e os leitores esperam... Voltemos, pois, ao tema dos heróis, sempre em voga e do agrado da rapaziada, independentemente da época ou da idade.
As indicações tinham sido precisas o suficiente: junto ao pinheiral, um bocadinho mais para baixo de quem desce, perto de uma casa com uma chaminé, atravessando duas ladeiras, uma maior do que a outra, mas do mesmo dono, costumava-se ouvir o sino da igreja quando o vento soprava do norte, logo pela manhã. Não havia que enganar... Achei melhor perguntar.
Cheguei ao local perto do meio-dia. Assim que me deparei com o meu entrevistado resolvi ir logo directo ao assunto (uma das imagens de marca das minhas entrevistas) e não lhe dar tempo a que reflectisse (outra das minhas assinaturas).
_ Pelo que vejo, a sua posição mantém-se inabalável. Como é que isso acontece?
_ É fácil: estou espetado!
_ Mas... não o assalta uma dúvida, uma angústia, um remoque, que seja?
_ Agora, já não... Com o tempo, acabei por aceitar isto como um desígnio.
_ Não quer explicar...?
_  Tenho muito gosto, sim. Sempre ambicionei ser mestre de orquestra... Cheguei a comprar o fraque de abas de grilo, que ainda mantenho, como se vê, mas tive que abandonar a carreira que ambicionava logo após ter iniciado o estudo do solfejo... Nem me quero lembrar disso...
_ Talvez por ser traumático...
_ Não, que ideia!... Tive que tomar conta do negócio de família. Só isso. Não me custou nada.
_ Mas, há bocado, não tinha dado a entender que havia alguma nostalgia, uma tristeza, por não ter podido seguir a carreira de maestro...?
_ Estava brincar consigo, não ligue... Foi só para dar um toque melodramático... Uma brincadeira. Sinto-me realizado com o que faço. 
_ Não quer pormenorizar...?
_ O grosso do trabalho manifesta-se após as sementeiras. Até lá, pode dizer-se que a vida até nem é má...
_ Como assim?
_ Muito tempo livre, muito pousio... Fruir as coisas simples: ouvir o vento, sentir a chuva, a neve, o sol. Olhar os montes, os rios e as ribeiras, o céu estrelado.  Regressar à natureza, percebe?...
_ Sim, percebo... Mas agora reparo: então, e os pássaros?!
(Ao ouvir isto, o entrevistado esbugalhou os olhos.  De uma forma tão estranha que pensei que estivesse a sentir-se mal ou não tivesse ouvido a pergunta. Por isso, voltei a repeti-la):
_ Então, e os pássaros...?
_  O que é que tem?... Se é para me provocar, é melhor acabarmos a entrevista... Não me quer ceder o seu relógio?
_ Não posso. É de estimação. Mas, se pudesse, para que é que o queria?
_ Para ver as horas. Para que é que havia de ser?
_ Ainda não aprendeu a vê-las pelo sol ou pelas estrelas...?
_ És maluco ou quê!? Claro que sei. Pensavas o quê, que eras tu que me ias ensinar...? Toma juízo, pá!
_ Ok., não se abespinhe. Como é que quer que o identifique: pelo nome ou por um pseudónimo?
_ Porquê? Achas que não são capazes de me identificar...? Olha que sou muito conhecido... Vai por mim.
_ Espantalho, então?
_ Perfeito!

O que é um herói? Que a entrevista sirva para, mais uma vez, voltarmos a colocar a questão. Ele ou ela poderão estar ao virar da esquina ou nos montes, praias e vales por aí fora. Talvez seja você, quem sabe?...


(in Estava Lá, Mas por Acaso, pp. 12)



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