28 agosto 2020

Marketing literário

Embora pequena, nunca lhe passara pela cabeça que a sua coroa de glória enquanto escritor obscuro seria a divulgação de um livro seu numa revista cor-de-rosa, nas páginas dedicadas às sugestões de leitura, paredes meias com as receitas e a preparação de mezinhas caseiras. Se essa proximidade lhe dava um certo conforto, agora que começávamos a aproximar-nos de tempos mais frescos, por outro lado também lhe causava alguma angústia, daquelas para que não costuma haver mezinha, caseira ou não, provocada por uma alma sensível às coisas das literaturas e um apurado sentido crítico sobre os critérios que determinam esta classificação das obras, uns dias emparelhadas com uma receita de lombo de porco e, noutros, quase a sentir o aroma fresco e desinfectante de uma tisana de camomila e mel, com uns pozinhos de erva cidreira. É certo que nunca estamos contentes, característica inata ao ser humano, mas que já se aceitava uma redefinição dos critérios de selecção era verdade, atestavam-no as receitas e as mezinhas, também elas, porque receavam que a proximidade do seu livro pudesse interferir com o espírito e essência dos leitores da revista. Talvez por isso, pela manifestação desse desconforto, ficara estabelecido uma solução de consenso: o livro iria para a secção de cosmética e não se falava mais nisso. Mais a mais, estava muito maciço. Um pouco de creme adelgaçante não lhe faria mal.


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