01 agosto 2020

A múmia era verde, mas a bicicleta não se sabe

Na minha profissão temos que ter cuidado com a credulidade. Também na vida de todos os dias, é certo, mas no exercício de uma profissão ligada às notícias o risco e a atenção têm que ser maiores. Não que não nos satisfaça o bizarro ou o inverosímil (muitas vezes o procuramos para o expor), nada disso. Dependendo do artista, a coisa até pode correr bem e ajudar a dar uma perspectiva invulgar daquilo de que se fala, descreve ou relata. Depende do artista, do contexto e também do público, que também aqui é soberano, mesmo que não se aperceba. Para o bem ou para o mal, a escolha por este tipo de matérias sempre me cativou e granjeou grande fama (pelo menos na minha rua, as manifestações são eloquentes e inequívocas desse entusiasmo e excitação sempre que está para sair uma peça, e tenho muitas!, algumas enterradas no quintal, num lugar secreto, que só eu sei, e destinadas a virem a ser um dia descobertas por povos alienígenas, mas dos bons e avançados, para ficarem a perceber um pouco melhor a nossa maneira de ser e de estar, talvez um primeiro passo para a paz e a concórdia universais, nunca se sabe...). Mas disperso-me, eu sei, pecadilho que a minha idade autoriza e os leitores aceitam com bonomia, já mo disseram e acredito. Adelante!
Corria um desencontrado boato de que uma múmia, vestida de verde, andava a passear de bicicleta algures pelos campos e afins, desconhecendo-se quem seria e o que quereria. Na altura, estas notícias não eram invulgares (vá lá a saber-se porquê...), mas que os espíritos cépticos e avançados olhavam de lado e com sobranceria para eles e isso ajudava pouco, para não dizer nada. Impunha-se que alguém com o meu perfil e tarimba (era um facto que tinha estado envolvido, jovem nos meus vinte e tal anos, em explorações arqueológicas realizadas numa necrópole algures ali para os lados de... agora tive uma branca, mas era longe, e onde, curiosamente, tinham sido encontradas múmias, não «paralíticas» (aqui não resisto a introduzir uma piada célebre de um show televisivo que passou pelas berças e arredores anos atrás), mas em perfeito estado de conservação). Mas as ligaduras não eram verdes! E isto já era um indício... Importante, como se verá.
Eu próprio um entusiasta de bicicletas, resolvi pegar na pasteleira e dar uma volta por montes e vales a ver se encontrava a dita múmia vestida de verde. Não foi difícil, confesso, mas tive que esperar que acabasse uma etapa de contra-relógio em que estava a participar. Acabado este, e ainda a bufar, resolvi abordá-la de rajada, para evitar fugas ou tergiversações, embora já sabia qual seria o resultado.
_ Então o amigo ciclista é que é a múmia de que se fala...?
_ Eu!?... Quem é lhe contou tal disparate?
_ Não fuja! Então e essas ligaduras todas à volta do corpo, para que é que servem?
_ Ah, isto!... Dei um tombo num dos treinos... Caí por uma ribanceira abaixo... Mas não parti nada. Foi só pele.
_ Então, confirma que não é uma múmia vestida de verde?
_ Sim, confirmo.
_ Então é o quê?
_ Sou artista de circo, em regime ambulante, e aspirante a ciclista, nas horas vagas. E gosto muito do verde, daí a cor das ligaduras. Não quer ir dar uma volta de bicicleta?
_ Claro! Mas posso levar a amarela?



(in Estava Lá, Mas por Acaso, pp.3428)



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