29 agosto 2020

Como no cinema

Levantara-se cedo. Como habitualmente, abrira a janela e correra o estore. Mas fizera mal, disseram mais tarde os vizinhos. Tudo isto porque, numa feliz ou infeliz coincidência, a descida do estore até determinada altura, por causa do sol, fazia com o parapeito da varanda uma espécie de visor de câmara de filmar, daquelas dos filmes, num formato rectangular. E foi essa similitude que fez descambar definitivamente o juízo do vizinho, garantiram os condóminos, sobretudo a vizinha do 4.º direito, que já andava desconfiada que os fusíveis da personagem andavam prestes a fundir-se... E a partir daí foi o que já se antevia: uma compulsão para olhar para câmara simulada, a apontar para uma nespereira em frente, num plano contínuo, é certo, mas sujeito a cambiantes de luz à medida que sol se movia, a gritar «Acção!» e a barafustar, de forma veemente, às vezes, sempre que um pombo, um melro, ou o estender de roupa interferiam com o plateau. É claro que depois das primeiras sessões a coisa ficou descontrolada, cabendo ao condomínio decidir que fazer. E que o condomínio fez, como é apanágio destas figuras legais, convencendo o condómino realizador a fazer as malas, pois tinha sido seleccionado para um festival de cinema algures, na secção Avant-Garde - tendências que estão a dar, devendo apanhar o comboio das 15h15. Que não se preocupasse com a máquina de filmar, pois já tinham uso para ela, pelo menos enquanto estivesse bom tempo: matinés a um preço simbólico, com distanciamento físico e distribuição de milho para os pombos.

Etiquetas: