Demócrito, sim, mas de raspão
Acabara de executar um tango numa conhecida casa de baile da nossa praça, quando a minha parceira me colocou dentro do bolso um papel. Não quis logo ler o que dizia, e convidei-a para um refresco debaixo da latada. Ficámos logo amigos e tive que lhe prometer que lhe ensinaria meia dúzia de passos que tinham feito esbugalhar os olhos da assistência enquanto dançávamos, consequência de uma aprendizagem que tivera numa afamada casa de tangos na Argentina, quando por lá ganhava a vida no exercício dessa arte nobre e ritmada... Devo dizer, aliás, que o Carlos Gardel, o próprio, entusiasticamente um dia me veio felicitar pela performance, «Asombrosa, asombrosa!», dizia para quem o quisesse ouvir... Adiante.
Abri o papel. Dizia: «Há voltas e voltas. Todas iguais, todas diferentes. A revelação do segredo espera-te em tal parte (omitido, por deontologia profissional), na transição de um dia para o outro». Não estava assinado. Mas nem era preciso, pois o tom esotérico e obscuro da mensagem eram suficientes para despertar o meu instinto. Não recuaria!
Conhecia o local, claro. Para estar preparado, chegaria um pouco antes da hora indicada na mensagem. Queria conhecer bem o cenário onde teria que me integrar, possivelmente recorrendo a regras básicas de camuflagem, básicas, mesmo, daquelas que se aprendiam logo nas primeiras 24 horas do curso de espião por correspondência, nível 1, que frequentava nas horas livres das minhas imensas actividades culturais. Seria canja!
Chegara lá. A princípio, nenhum movimento. Não se ouvia um ruído, pequeno que fosse. De súbito, um leve arrastar na calçada deixava entender que alguém se aproximava. Vinha de uma das ruas, a localizada a norte. Depois, ruído semelhante, desta vez provinda da rua a sul. Por último, um ruído igual aos dois anteriores, saído de nascente. Juntaram-se a meio do espaço circular (um indício claro). Eram três. Não trocaram mais do que cumprimentos breves e alinharam-se ao lado uns dos outros. O que estava no meio ergueu a mão e fez um sinal (pareceu-me) e começaram a andar, cadenciada e ritmadamente, falando de coisas e loisas várias, a maioria delas sérias e profundas, pelo que podia ouvir, pois sobressaíam palavras como «profundidade», «seriedade», «despojamento», «organização», «átomos», «realidade» «universo», «acaso», «necessidade», e mais terminadas em «ade» (eram muitas), misturadas com umas mais obscuras, como «copos», «vagueirada», «tainadas» e outro sucedâneos assim terminados, como «patuscadas», que eu facilmente interpretei como códigos cifrados para quem pudesse estar a ouvir, era evidente, e um sinal inequívoco de que se estava em presença de uma seita ou similar, mas sociedade secreta, no mínimo!... Teria que estar atento ao desenvolvimento da cerimónia, já não tinha dúvidas nenhumas. E se elas existissem, rapidamente as dissipei quando me apercebi do que fizeram ao chegar ao fim do troço: a troca de posições, como se de um baile ritual se tratasse, entre o que tinha ocupado o centro e um do das pontas. À vez, ritualmente. Ao ver como se processava a sequência da marcha e da troca de posições, confesso que comecei a sentir um misto de desconforto e de euforia..Nem queria acreditar! Acabara de descobrir um dos segredos mais bem guardados do universo: os extraterrestres existiam, reuniam-se naquele lugar e comunicavam com o seu local de proveniência, algures numa galáxia distante!... E a prova era o ritual do passeio, em que a troca de posições correspondia ao mudar de linha ou de parágrafo de uma qualquer mensagem... Mas só se via do espaço.
(in Estava Lá, Mas por Acaso, pp.513)
Abri o papel. Dizia: «Há voltas e voltas. Todas iguais, todas diferentes. A revelação do segredo espera-te em tal parte (omitido, por deontologia profissional), na transição de um dia para o outro». Não estava assinado. Mas nem era preciso, pois o tom esotérico e obscuro da mensagem eram suficientes para despertar o meu instinto. Não recuaria!
Conhecia o local, claro. Para estar preparado, chegaria um pouco antes da hora indicada na mensagem. Queria conhecer bem o cenário onde teria que me integrar, possivelmente recorrendo a regras básicas de camuflagem, básicas, mesmo, daquelas que se aprendiam logo nas primeiras 24 horas do curso de espião por correspondência, nível 1, que frequentava nas horas livres das minhas imensas actividades culturais. Seria canja!
Chegara lá. A princípio, nenhum movimento. Não se ouvia um ruído, pequeno que fosse. De súbito, um leve arrastar na calçada deixava entender que alguém se aproximava. Vinha de uma das ruas, a localizada a norte. Depois, ruído semelhante, desta vez provinda da rua a sul. Por último, um ruído igual aos dois anteriores, saído de nascente. Juntaram-se a meio do espaço circular (um indício claro). Eram três. Não trocaram mais do que cumprimentos breves e alinharam-se ao lado uns dos outros. O que estava no meio ergueu a mão e fez um sinal (pareceu-me) e começaram a andar, cadenciada e ritmadamente, falando de coisas e loisas várias, a maioria delas sérias e profundas, pelo que podia ouvir, pois sobressaíam palavras como «profundidade», «seriedade», «despojamento», «organização», «átomos», «realidade» «universo», «acaso», «necessidade», e mais terminadas em «ade» (eram muitas), misturadas com umas mais obscuras, como «copos», «vagueirada», «tainadas» e outro sucedâneos assim terminados, como «patuscadas», que eu facilmente interpretei como códigos cifrados para quem pudesse estar a ouvir, era evidente, e um sinal inequívoco de que se estava em presença de uma seita ou similar, mas sociedade secreta, no mínimo!... Teria que estar atento ao desenvolvimento da cerimónia, já não tinha dúvidas nenhumas. E se elas existissem, rapidamente as dissipei quando me apercebi do que fizeram ao chegar ao fim do troço: a troca de posições, como se de um baile ritual se tratasse, entre o que tinha ocupado o centro e um do das pontas. À vez, ritualmente. Ao ver como se processava a sequência da marcha e da troca de posições, confesso que comecei a sentir um misto de desconforto e de euforia..Nem queria acreditar! Acabara de descobrir um dos segredos mais bem guardados do universo: os extraterrestres existiam, reuniam-se naquele lugar e comunicavam com o seu local de proveniência, algures numa galáxia distante!... E a prova era o ritual do passeio, em que a troca de posições correspondia ao mudar de linha ou de parágrafo de uma qualquer mensagem... Mas só se via do espaço.
(in Estava Lá, Mas por Acaso, pp.513)
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