05 julho 2020

Enxertado em corno de cabra (até ver a luz)

Tenho todo o respeito do mundo por quem assume ou está a pensar assumir uma vida de asceta. Acredito que não seja fácil e não é por falta de tentativas do Belzebu, que habitualmente se empenha nestas coisas e faz apelo a um conjunto de expedientes que não estão ao alcance do comum dos mortais. Mas mesmo que não cheguemos ao patamar belzebuiano (acabei de criar um neologismo, não me posso esquecer de o registar e apochar mais uns cobres para arredondar as contas ao final do mês…), muitas vezes são os simples mortais que se aliam para infernizar a vida e a paz destas santas almas (que outro nome é que se lhes dá, não me dizem, ó almas do Diabo?…). Como vêem os leitores, vivo numa permanente tensão entre o sagrado e o profano, entre o visível e o invisível, entre o claro e o obscuro. Adelante!
Já há algum tempo que andava intrigado com uma dica, de fonte fidedigna, acerca de um eremita que viveria algures no meio da mata, afastado do mundo conhecido e fiel a um voto de silêncio. Como não falava, desconhecia-se o motivo do permanecer calado, mesmo que provocado, insultado e ridicularizado. Que cobardia, meus leitores!... Era por cenas destas que cada vez mais descria do mundo e dos homens… Raça danada, esta!
As pistas não eram muitas. Para encontrar o eremita tinha de dar ao pedal, estava visto. E depressa, antes que hibernasse! Já tinha uma ideia de como poderia aproximar-me dele. E quem me ia ajudar era o meu amigo australiano, pisteiro emérito. Apesar de reformado, ainda era capaz de detectar um rasto só de olhar para o chão e cheirar o ar. Nunca falhava. Amanhã dávamos com o homem.
Como era de prever, a localização do eremita nem chegou para o meu amigo se cansar. Aproximámo-nos, eu e o pisteiro, e levantámos a mão, em sinal de paz. O homem olhou para nós e era como se não nos tivesse visto. Ia ser duro, estava visto. Mas eu estava preparado e tinha uma arma secreta. Veria como o eremita reagiria a ela.
_ Consta-se que o meu amigo, antes de se ter tornado eremita e feito um voto de silêncio, era enxertado em corno de cabra! Confirma isto…?
O eremita parecia que tinha sido picado por alguma coisa desagradável, mas conseguiu conter-se. A custo, mas conteve-se. Mesmo assim, largou um audível «Maldizentes! Impenitentes! Cabrões!». E falou dez horas seguidas…

(in Estava Lá, Mas por Acaso, pp.1221)

 

 

 

 

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