Receitas trocadas
Uma fugaz memória recordava-me qualquer coisa relacionada com o convite para apresentação de um livro, em local e data determinados, de autor (autora, soube depois) da região e a indicação de um número de telefone para confirmar a aceitação. Sempre disponível para as coisas da cultura, imediatamente disquei o número e confirmei a presença. E nunca mais me lembrei... Mas Deus escreve direito por linhas tortas, lá diz o ditado, e uma epifania pode sempre apanhar-nos numa curva ou numa recta da vida... Aliás, agora que falo disto, não me posso esquecer de transcrever para este cardápio de memórias o meu trabalho de reportagem numa comunidade de epifânicos, mais ou menos a meio da minha carreira jornalística, que me valeu um prémio nuns jogos florais, secção reportagem e vida real. A não esquecer.
Tinha almoçado bem. Hábito antigo, o passeio impunha-se. À medida que galgava metros e quilómetros, o espírito libertava-se das grilhetas terrenas e começava a planar mais ou menos a três metros, tentando chegar aos cinco, quando a luz intermitente de um semáforo me despertou a atenção para um painel em papel, encostado ao poste, com o desenho de uma seta e a palavra 'Lançamento' inscrita, em caracteres a fazerem lembrar pequenas iluminuras, pelo que podia perceber... Era um sinal, viria a reconhecer depois, mas também um desafio para a minha insaciável curiosidade e instinto jornalísticos... Decidi seguir a direcção apontada pelo sinal e cheguei a um pátio, cheio de vasos e flores, e a uma porta onde se ajuntara uma pequena multidão, rodeando uma freirinha, com o seu hábito, e cujos olhos sorriram assim que me viu. Não a reconheci, é certo, mas sorri também, por educação, finura, urbanidade e tique profissional. Convidando-me a entrar na sala, pois fora para aí encaminhado, deparo-me com mais pessoas sentadas em frente de uma mesa, com cadeiras e um pano por cima, risonhas também e a comentarem, extasiadas, «Sempre veio! Sempre veio! E pontual! Não te dizia, Zefa!?...». Era certo que estavam à minha espera. Ainda ligeiramente atordoado pelo acolhimento, mas sensibilizado, ouvi então um velhinho, no centro da mesa, a dirigir-se ao auditório improvisado:
_ Amigas e Amigos, boa tarde e obrigado pela vossa presença nesta cerimónia, singela mas cheia de significado, para celebrarmos o aparecimento de uma jovem autora da nossa praça, nas suas viçosas 85 primaveras, que hoje se comemoram, e congratularmo-nos pelo lançamento do seu primeiro livro, a que outros se seguirão, estou certo e um dedo que adivinha já me afiançou (sorria, ao dizer isto)... Mas não vou alongar-me mais, pois quem vocês querem ouvir é a pessoa que amavelmente se disponibilizou, como é seu timbre, aliás, a apresentar o livro da nossa irmã. E deu-me a palavra.
Acabara de me lembrar do convite! E agora, que fazer...? Não dizer nada estava fora de questão. Faria apelo à minha anterior experiência no seminário e às sucessivas vezes em que me tinha deparado com os fenómenos e a mística epifânica, condimentada com o traquejo e o know-how profissionais. A coisa arranjava-se. Tudo iria dar certo (andrà tutto benne, recordava-se das suas aulas de italiano com a actriz Sofhia Loren, mas isso eram outras histórias... era melhor não se dispersar). Por outro lado, sentia-se inspirado. E as palavras sobre o livro da autora saíram, fluídas e cristalinas, com muitas referências aos arroubos místicos e à generosidade e à dedicação da autora no abraçar da sua vida religiosa, um apelo, um chamamento e um destino, terminando por lhe endereçar os meus parabéns e votos de nos continuar a presentear com a sua prosa bela e plena de significado, sublime, até, acabei por declarar.
Fez-se silêncio. Depois, uma apoteótica salva de palmas, vivas e até meia dúzia de olés!... Educadamente pedi desculpa por não ficar para o beberete, com um licorzinho, mas compromissos inadiáveis obrigavam-me a abandonar tão distinto auditório e autora... Talvez no próximo lançamento, quem sabe...? Ainda consegui apanhar uma voz a comentar: «Este pregador era dos bons, sem dúvida!... Não percebi nada do que disse, mas quando estiver a fazer uma das receitas do livro da nossa madre vou-me lembrar-me dele... Ai vou, vou!..».
(in Estava Lá, Mas por Acaso, pp.387)
Tinha almoçado bem. Hábito antigo, o passeio impunha-se. À medida que galgava metros e quilómetros, o espírito libertava-se das grilhetas terrenas e começava a planar mais ou menos a três metros, tentando chegar aos cinco, quando a luz intermitente de um semáforo me despertou a atenção para um painel em papel, encostado ao poste, com o desenho de uma seta e a palavra 'Lançamento' inscrita, em caracteres a fazerem lembrar pequenas iluminuras, pelo que podia perceber... Era um sinal, viria a reconhecer depois, mas também um desafio para a minha insaciável curiosidade e instinto jornalísticos... Decidi seguir a direcção apontada pelo sinal e cheguei a um pátio, cheio de vasos e flores, e a uma porta onde se ajuntara uma pequena multidão, rodeando uma freirinha, com o seu hábito, e cujos olhos sorriram assim que me viu. Não a reconheci, é certo, mas sorri também, por educação, finura, urbanidade e tique profissional. Convidando-me a entrar na sala, pois fora para aí encaminhado, deparo-me com mais pessoas sentadas em frente de uma mesa, com cadeiras e um pano por cima, risonhas também e a comentarem, extasiadas, «Sempre veio! Sempre veio! E pontual! Não te dizia, Zefa!?...». Era certo que estavam à minha espera. Ainda ligeiramente atordoado pelo acolhimento, mas sensibilizado, ouvi então um velhinho, no centro da mesa, a dirigir-se ao auditório improvisado:
_ Amigas e Amigos, boa tarde e obrigado pela vossa presença nesta cerimónia, singela mas cheia de significado, para celebrarmos o aparecimento de uma jovem autora da nossa praça, nas suas viçosas 85 primaveras, que hoje se comemoram, e congratularmo-nos pelo lançamento do seu primeiro livro, a que outros se seguirão, estou certo e um dedo que adivinha já me afiançou (sorria, ao dizer isto)... Mas não vou alongar-me mais, pois quem vocês querem ouvir é a pessoa que amavelmente se disponibilizou, como é seu timbre, aliás, a apresentar o livro da nossa irmã. E deu-me a palavra.
Acabara de me lembrar do convite! E agora, que fazer...? Não dizer nada estava fora de questão. Faria apelo à minha anterior experiência no seminário e às sucessivas vezes em que me tinha deparado com os fenómenos e a mística epifânica, condimentada com o traquejo e o know-how profissionais. A coisa arranjava-se. Tudo iria dar certo (andrà tutto benne, recordava-se das suas aulas de italiano com a actriz Sofhia Loren, mas isso eram outras histórias... era melhor não se dispersar). Por outro lado, sentia-se inspirado. E as palavras sobre o livro da autora saíram, fluídas e cristalinas, com muitas referências aos arroubos místicos e à generosidade e à dedicação da autora no abraçar da sua vida religiosa, um apelo, um chamamento e um destino, terminando por lhe endereçar os meus parabéns e votos de nos continuar a presentear com a sua prosa bela e plena de significado, sublime, até, acabei por declarar.
Fez-se silêncio. Depois, uma apoteótica salva de palmas, vivas e até meia dúzia de olés!... Educadamente pedi desculpa por não ficar para o beberete, com um licorzinho, mas compromissos inadiáveis obrigavam-me a abandonar tão distinto auditório e autora... Talvez no próximo lançamento, quem sabe...? Ainda consegui apanhar uma voz a comentar: «Este pregador era dos bons, sem dúvida!... Não percebi nada do que disse, mas quando estiver a fazer uma das receitas do livro da nossa madre vou-me lembrar-me dele... Ai vou, vou!..».
(in Estava Lá, Mas por Acaso, pp.387)
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