10 junho 2020

Pescado à linha (cenas da vida fluvial)

Convidado por um velho amigo, preparava-me para comer uma peixada preparada com todos os matadores: de modo tradicional, à linha, e com um tempero de fazer lamber os beiços, receita ancestral de família, com raízes que remontam aos próprios fenícios ou aos gregos, não me lembro bem, mas com selo de garantia e rótulo de autenticidade... Era um camarada muito vivido, com histórias mais mirabolantes do que as que se contam com esse rótulo, dignas de constarem num catálogo de raridades e do arco-da-velha, matéria que me atrai, e de que dei conta, por diversas vezes, nas minhas crónicas e ou reportagens. Por incrível que possa parecer, atendendo à zona de onde era oriundo, esse meu amigo ganhou fama e proveito como caçador de crocodilos em cursos de rio e ribeiros, arte aprendida em workshops com uma lenda na matéria, o Crocodilo Dundee, ele próprio, que num gesto de rara magnanimidade o rebaptizou com o epíteto carinhoso de Crocodilo Dundee II, ramo Rios, Ribeiros e outros. Adelante, que a barriga tem os seus ditames e exigentes!
À medida que me aproximava da cabana do Dundee II, meu amigo, os vestígios da sua actividade eram cada vez mais evidentes, espalhados pela vegetação ou expostos ao sol, suspeito que por uma qualquer opção espírita ou esconjuradora, suficientemente perturbantes ou intimidatórios para quem não conhecesse ou nunca tivesse ouvido falar desta personagem, mas uma espécie de santo e senha para os amigos e conhecedores da sua vida aventurosa, uma espécie de espaço sagrado, sim, mas profano. E os garrafões lá estavam para o certificar! Adelante! (era já o segundo, o que talvez prenunciasse coisa boa, veríamos…).
Chegara. Depois dos cumprimentos rituais, cada uma com a sua pele de crocodilo às costas, entrámos na cabana, onde a mesa já se encontrava posta. No expositor habitual, o colar de presas de crocodilo, confeccionado e oferecido pelo Crocodilo Dundee como prenda de casamento, mas que a esposa do meu amigo nunca tinha usado, por consideração e reverência para com quem a tinha oferecido, recebía-nos como uma espécie de mordomo e criava o clima apropriado para o desfiar de histórias, tantas ou muitas de que se lhes perdia a conta, mas saborosas, todas elas… Como esta, então muito em voga, mas que não chegou a ser muito divulgada, para evitar o alarme e o pânico nas pessoas. E não era para menos… Só me atrevi a revelá-la agora, passados estes anos, e nem toda, a pedido do meu amigo, pois houve coisas que se mantiveram em aberto e nunca, que se saiba, tenham sido fechadas...
A história era um pouco bizarra, reconheça-se, e pode resumir-se numa questão nada académica, que era esta: poderia um crocodilo ser confundido com uma lontra ou vice-versa? As opiniões divergiam, é claro, e havia-as para todos os gostos. Que sim, que não, que talvez… Mas a resposta estava à mão (de pescar, neste caso). E aí, entrou o meu amigo. Fixei o que então me disse:
_ Sabes. Tive de me impor, porque a rebaldaria era tanta, o desconhecimento era tão evidente, que já não aguentava mais!... E disse aos da Comissão, entretanto constituída para determinar se o bicho que tinha entrado no rio era um crocodilo, uma orca, uma lontra ou um hipopótamo, que se havia alguém que tinham de consultar era eu, o maior especialista das redondezas fluviais em crocodilos e afins, com provas dadas e vários colares de presas que oferecera às moças casadoiras e às mães para o comprovar, que nem se atrevessem a dar um pio que fosse ou teríamos o caldo entornado, neste caso, migas… E meteram o rabinho entre as pernas, despachados e ameaçados com uma cabeça de crocodilo cheia de dentes, a abrir e a fechar como as castanholas… E ala que se faz tarde, sem tempo para mais cumprimentos… E até hoje.
Ri-me e perguntei-lhe: Ainda há migas…?
_ Algumas, sim. Mas não são para ti, desculpa.
_ Estás à espera de alguém...?
_ Não, são para o crocodilo… A lontra come depois.


(in Estava Lá, Mas por Acaso, pp.188)

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