24 maio 2020

Par de parêntesis

Como em tudo na vida, há projectos mais arriscados do que outros. No jornalismo, minha paixão e opção profissional, nem sempre foi fácil fazer vingar os meus, umas vezes por dificuldades inultrapassáveis, outras por opção editorial. Nada de novo, no entanto. Feitas as contas, a maioria fez o seu caminho. Às vezes tem que haver uma espécie de instinto para avaliar se um tema, uma reportagem, uma entrevista, um episódio, um facto insólito, possuem aquele gás necessário para motivar a curiosidade dos leitores, o apoio dos patrocinadores e a validação dos editores ou dos proprietários. E temos sorte (eu, pelo menos, tenho tido, sobretudo a partir do momento em que consegui obter um exclusivo com o técnico responsável pelo sistema de ventilação que fez levantar as saias da Marylin Monroe, no filme de Billy Wilder, O Pecado Mora ao Lado - cena mais icónica do que esta não há, direi eu, convicto), há que reconhecê-lo, muitas vezes por coincidências extraordinárias e impensáveis, por exemplo usar um palito para palitar os dentes, muito em voga naquele tempo na região por onde andava, e prática de limpeza dental característica de um certo tipo de profissionais,  como o meu editor dessa altura, a quem tinha acabado de propor um tema ousado e provocador (reconheço) de homenagear os gémeos Parêntesis, membros de pleno direito da Confraria dos Sinais Ortográficos, mas muitas vezes relegados para um papel secundário (quando não desdenhoso) na desenvoltura da frase ou do discurso, podendo ser vistos como coisas supérfluas ou desnecessárias, atravancando um caminho que se deseja linear, directo, objectivo, fugindo aos esclarecimentos e comentários intrusivos de terceiros ou terceiras, fontes ou não, autoridades muito ou pouco, às vezes uns devaneios (porque não?) lírico-poéticos, histórico-filosóficos, humorísticos, onomatopeicos, etc., etc. e tal... que em vez de emperrar a frase podem encaminhá-la e conduzi-la a outras direcções, responsáveis pelas célebres epifanias das boas ou nem por isso (o leitor o dirá quando se vir confrontado com isso)... E basicamente foi isto que argumentei para fazer vingar a minha proposta, enquanto o editor trincava o palito com força e abanava a cabeça, dizendo «Tu vais ser a desgraça do jornal! Tu vais ser a desgraça do jornal! Mas que raio de ideia!... Estás maluco, pá! Só pode!». A coisa parecia não correr bem... Já tendo apalavrado a entrevista com os gémeos, que me esperavam numa esplanada e a quem tinha dito para irem bebendo uns finos enquanto ficavam à minha espera, não sabia muito bem como ia descalçar esta bota... Achei que o melhor era fazer a coisa à traição (desculpem, mas tinha que ser) e dizer que estava bem, que ia pensar no assunto... Mais tarde lhe diria (já sabia qual o desfecho: a neura iria passar-lhe e sabia que ele se recordaria das vezes em que eu tinha ganho o equivalente caseiro do Prémio Pulitzer: uma pratada de cozido no Abílio das Tripas, com vinho à discrição, sobremesa caseira do dia, terminada com um cálice de bagaço da garrafa do patrão e um café)... Até lá, o trabalho urgia. Mas uma dúvida existencial (pois o que havia de ser...?) atormentava-me: afinal, que gémeos Parêntesis é que iria entrevistar, os Curvos ou os Rectos?...


(in Estava Lá, Mas por Acaso, pp.222)

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